O Tempo Que Não Passa Nessa Cidade escrita por Youth


Capítulo 3
Marcus - Austen e Lynch




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         3

                Quando Marcos voltou a ver Marcus, o garoto do sorriso de raposa e cabelos coloridos, já havia se passado uma semana, desde aquele degradável momento em que ele lhe fez um gesto obsceno — mas ele não se arrependia. Aliás, todos os dias eles meio que se esbarravam entre o momento que abriam suas respectivas lojas e os que fechavam. Cada um do seu lado da rua, do seu jeito, das suas cores, com seus fones, ouvindo suas músicas e segurando os exemplares de suas coisas favoritas: filmes em DVD ou livros antigos, mas, em razão do mal começo, não se falavam. Marcos corriqueiramente fechava a cara para Marcus e desviava o olhar o mais rápido que podia, evitando qualquer tipo de contato visual. Marcus, todavia, tentava exaustivamente fazer um “segundo encontro” acontecer, acenando timidamente, dizendo oi — dessa vez, todavia, sem intenções dignas da quinta série — e até fazendo barulhos e gestos espetaculosos, na expectativa de atrair a atenção do garoto que até aquele momento não sabia nada.

                Num dia assim, com um mormaço irritante que inclinava o tempo para a chuva, Marcus viu Marcos entrar na locadora da janelinha de dentro do sebo. Estava lendo “Emma” da sua escritora favorita, Jane Austen. O garoto que usava preto, do rock e dos filmes não aparentava estar no seu melhor momento. Dali da janelinha do mundo — que não passava do sebo da tia —, Marcus era como um deus, onisciente, enxergando o além de toda aquela cidadezinha, mas, mesmo com tantas possibilidades de coisas para fuxicar, ele preferia vigiar o rapaz que não sabia o nome e estava há cinco metros de si. Observou de sua janela ele entrando na locadora, se jogando num sofá velho e envolvendo as mãos no rosto, como alguém próximo a chorar.  Aquilo fez Marcus ficar misteriosamente tocado, sentia uma grande compaixão — e uma certa obrigação — pelo rapaz, mas, no instante que decidiu tomar uma atitude... Choveu. Simples assim: o céu desabou em lágrimas, tal qual Marcos desabou em chuva. Ou seria o contrário? No fim, ambas aconteceram ao mesmo tempo — e Marcus ficou ilhado ali, no sebo, da sua janelinha para o mundo.

                A chuva caía. Gota por gota. Gota. Gota. Gota por gota. Gota. Gota.

                Marcus suspirou, decepcionado com a própria inércia. Tentou voltar a leitura e concentrar em sua história, mas seus pensamentos não se desprendiam do garoto de preto. Voltou seu olhar para ele novamente e, curiosamente, encontrou seus olhos no meio de toda aquela chuva, desbravando o mundo molhado além das paredes da locadora. Eles se olharam. Nada disseram. Cinco metros de distância os separavam. Eles se olhavam. Se olhavam. Olhos nos olhos. Corações acelerados. Marcus sorriu. Marcos piscou os olhos e suspirou.

                Marcus pegou um papel em branco, uma caneta, rabiscou alguma coisa e levantou para que Marcos pudesse ver:

                — Começamos de novo? — era o que estava escrito. Por alguma razão misteriosa, Marcos sorriu, mesmo com tanta tristeza abalando seu coração, e anuiu. Marcus pegou outro papel e escreveu — Ei. Como se chama?

                Marcos pegou um caderno, uma caneta e escreveu:

                — Lynch. E você? — ele ergueu a folha de papel, que tinha uma caligrafia bem, sabe, ortodoxa. Marcus sorriu e decidiu entrar no jogo.

                — Austen — eles se entreolharam, novamente, e trocaram sorrisos amigáveis.

                A chuva ainda caía. Gota por gota. E essa era a desculpa perfeita para manter a distância criada pela timidez mutua. Marcus — ou Austen — de cá, Marcos — ou Lynch — de lá, trocando mensagens por sinais e folhas de papel, como dois prisioneiros numa prisão de segurança máxima. Cada um no conforto de seu mundo, seu universo, seu ninho. Ouvindo as músicas que gostavam, cercados das coisas que amavam e fazendo as coisas que lhes agradavam, ali, naquela cidade onde o tempo parecia não passar — e, realmente, quando Marcos conversava com Marcus, o tempo parecia congelar.


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