O Lorde das Rosas escrita por Youth


Capítulo 5
O tutor: folhas do passado




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                Thomas Blonte, alguns dias atrás, foi chamado à sala do reitor da London Street Academy, Sr. Perry, tal como os demais tutores e professores do instituto, para uma conversa séria e, possivelmente, delicada acerca do futuro e renome da academia.

                Uma sala redonda de pedra arcaica, quase como uma masmorra medieval, inclusive pela uma escuridão fruto da ausência de janelas, fria como a noite e cheirando à velhice e charutos foi preenchida por uma dúzia, talvez duas, de barbas brancas. Homens altos e distintos, todos na meia idade, com ares de superioridade, arrogância e sapiência, trajando togas negras e chapéus da última moda à inglesa.

                Sr. Perry, o reitor, falava aos demais, numa reunião que já havia começado há alguns minutos. Thomas foi pego desprevenido — ou talvez venha estado completamente absorto desde que recebera aquela carta, ficando alheio a tudo e a todos, em especial ao tempo, que passava e ele sequer percebia. O assunto da reunião já parecia estar nas considerações finais. O homem chegou, ofegante, com sua maleta pesada, cheia de papeis enfiados de mal jeito e livros envelhecidos, com os óculos tortos no rosto e meio despenteado. Se ajeitou num canto aos fundos, não pretendendo chamar muita atenção, e ouviu atentamente:

                — Então está decidido? — o reitor Perry disse, com muito pesar — Faremos mesmo essa desfeita à Lady Evayne? Lembrem-se que ela é uma das maiores contribuidoras e benfeitoras da Street Academy há anos, bem como seus antepassados e os Lordes da Rosa anteriores a ela foram — os demais homens velhos conversaram entre si e debateram. Thomas se sentia desleixado, sem saber exatamente o assunto.

                — Sr. Perry, Lady Evayne sabe que temos por ela muito respeito — um dos homens disse, um com cara de fuinha e olhos esbugalhados como um lêmure —, mas nenhum de nós se dispõe à lecionar para um rapaz nas condições que nos foram apresentadas.

                Sr. Perry alisou o rosto, irritado, vermelho como um pimentão.

                — É uma humilhação sem tamanho! Um rebaixamento sem precedentes! — outro homem gritou — London Street Academy é conhecida por guiar e construir o caráter de lordes, ladies e nobres maiores por toda Grã-Bretanha! Não podemos nos dar a vergonha de lecionar para um... para um... — ele tinha receio de dizer o que estava explícito. Thomas Blonte não compreendia, mas viu ali a oportunidade de sua vida. Então, sem muito pensar a respeito, uniu o útil e o agradável e num rompante de emoção ergueu o braço e pediu a palavra.

                — Não sei de quem falam, mas se os senhores não se dispõem a assumir essas aulas — os homens lhe encararam com um olhar de desprezo... e inveja. Todos invejavam Thomas pela imagem que ele construirá sozinho: de um jovem genial, observador, crítico e amplamente aberto para as mudanças do mundo. Havia chegado à Londres há poucos anos e conquistou seu espaço naquela sociedade com uma destreza sem igual, de aluno à mestre em um terço do tempo que a maioria daquelas naquela sala levaram, o que os fazia menosprezar o conhecimento e a própria pessoa que o detinha. Mas isso não o intimidava... Aquela carta... Aquilo sim o intimidava — Eu posso. O que de tão mal tem essa pessoa para que os senhores não o queiram prestar os serviços?

                Os homens se entreolharam, mas nada disseram, extremamente envergonhados, tentando não transparecer os preconceitos que guardavam. Para eles era importante manter a imagem de racionalidade e inteligencia — e mesmo eles sabiam que preconceitos tornam as pessoas idiotas e limitadas, mas isso não os impedia de perpetuá-lo.

                — Não aceitam lecionar pois é um rapaz negro — Sr. Perry disse, por fim, extremamente irritado. Thomas arregalou os olhos, surpreso, mas não arrependido — e brasileiro. Mas obviamente que não vão confirmar isso nessas exatas palavras, pois seu orgulho e sua necessidade de se mostrarem tolerantes e “modernos” é grande demais, maior que ter coragem o suficiente para sustentar suas próprias convicções — ele disse, por fim, cruzando os braços. Os demais professores deram de ombros e nada mais disseram, com olhares amargos de reputação e ego manchados. Thomas engoliu seco, aguardando alguma resposta (Que não veio). O reitor Perry olhou para o jovem — Então posso confiar a você essa tarefa, Thomas? Talvez Lady Evayne sequer o aceite, por ser tão jovem, mas podemos fazer uma tentativa. Sim. Sei que será capaz. Conheço suas atribuições. Sim, eu sei que você fala sete línguas... todos sabem. Passe na minha sala mais tarde para acertarmos os detalhes, por favor.

                Thomas bateu na porta do escritório do reitor, com sua malinha na mão e uma roupa mais apresentável. Devia ir naquela noite mesmo, pois Lady Evayne tinha pressa com os serviços para seu sobrinho.

                Encontrou o reitor acocorado à janela, observando Londres pelo vidro e fumando cachimbo. A sala cheirava a fumo. A lareira estava acesa e clareava toda extensão do cômodo. Thomas se sentou na cadeira acolchoada e observou o sr. Perry enquanto ele terminava de fumar.

                — Tem certeza que é uma boa ideia? — ele questionou, por fim, sem tirar os olhos da cidade em movimento. Fumaça saia das chaminés das fábricas e poluíam o céu da tarde. Thomas engoliu seco e alisou o rosto. Ele não queria ter aquela conversa, mas sabia que teria.

                — É minha melhor opção — ele suspirou — Recebi uma outra carta. Eles sabem que estou em Londres... É questão de tempo para rastrearem o senhor e me encontrarem também — afirmou, preocupado. O reitor Perry se afastou das janelas e fechou as cortinas, sentando-se na mesa e retirando alguns papéis de uma gaveta. — O melhor é me manter distante.

                — Não encontrariam você por aqui tão facilmente. — ele afirmou, por fim — Não se esqueça que agora você é Thomas Blonte... E eles não procuram por alguém chamado assim — disse, mostrando ao jovem algumas anotações com nomes e palavras que ele queria esquecer. Thomas engoliu seco, flexionando seu maxilar com um olhar entristecido — Mas tem razão... Eu ainda tenho ligação com seu pai. Aqui seria o primeiro lugar que procurariam...

                — Em Collins poderei me restabelecer. É um lugar calmo, afastado de tudo e de todos. Ninguém saberia sobre mim e ninguém se importaria comigo — ele afirmou, por fim, pegando os papéis do Sr. Perry e enfiando na mala — Como sempre foi e como sempre deve ser — disse, num tom mais entristecido, quase que lamentável.

                — Continua no mesmo melodrama, não? — Sr. Perry riu — Você pode não ter muitas pessoas no mundo, Thomas, mas sempre tem a mim. Prometi para seu pai que seria também o seu pai no dia que ele faltasse... E aqui estou eu, sendo. Não sei, talvez nessa Collins encontre alguém especial... Seja para amizade, amor, ou qualquer coisa assim... Só tem que deixar de ser orgulhoso e galanteador. Não precisa agir como se o mundo de mantivesse eternamente sozinho.

                — Tarefa quase impossível, padrinho — ele afirmou com um sorriso sádico. Sr. Perry riu novamente e deu um tapinha em seu ombro.

                — Então pelo menos evite problemas: fuja das virgens, das casadas — ele olhou para os lados, se aproximou do afilhado, e sussurrou — e principalmente dos rapazes — ele se afastou e tragou um pouco do cachimbo. Thomas coçou a nuca, desconcertado — Ouça o que te digo, Thomas, não traga mais desgraça para sua vida. Tente começar de novo... E não cometa os mesmos erros do passado.

                — Eu não mando no meu coração, padrinho, não posso escolher por quem vou sentir algo — ele afirmou, por fim, entristecido. Sr. Perry suspirou e olhou o afilhado no fundo dos olhos — Se vier a sentir...

                — Então pelo menos ignore quando for algo que possa te botar numa situação de risco — respondeu de imediato, levemente irritado — E tente se controlar um pouco! Pelo amor de deus, rapaz! Mantenha sua calça fechada e sua camisa abotoada, pelo menos até se estabelecer bem em Collins! Lady Evayne será um grande empecilho, pode ter certeza! Torça para que seu sobrinho seja mais agradável!

                Thomas suspirou e coçou os cachos.

                — Bem, se ela não me aceitar, não poderei voltar à Londres — afirmou. O reitor franziu as sobrancelhas, entristecido, mas nada disse. Thomas engoliu seco, suspirou, pegou sua mala e pulou para longe da cadeira, dando as costas ao sr. Perry antes que ele pudesse perceber — Vou me controlar, padrinho. Não trarei mais preocupações para o senhor! — disse, por fim, antes de sair sem deixar que o padrinho dissesse algo em resposta.

                Thomas odiava despedidas.

                Odiava mais ainda quando sentia que saía em dívida com alguém.

                Não foi recebido com rosas e chocolates pela ácida Lady de Gardenhall. Macbeth Evayne resguardava tanta raiva e indignação nos olhos que Thomas sentiu que estava próximo a ser arremessado pela janela assim que se apresentou como o enviado pela London Street Academy. Não que por um segundo ele houvesse pensado que seria fácil — afinal, não conseguia nenhum trabalho verdadeiro em razão de sua tenra idade desde sempre, se renegando a aulas substitutivas em academias e de reforço escolar por preços mínimos e vergonhosos... Mas nunca se abateu. Sempre sonhou em ser o professor de alguém importante e, quando viu a chance, a agarrou de imediato (Mesmo que todos os seus concorrentes fossem orgulhosos e preconceituosos demais para lutar pela mesma oportunidade). Thomas não tinha renome, não tinha experiência e, principalmente, não tinha idade de um professor competente.

                A raiva da senhora só foi atenuada com a chegada de seu sobrinho. Era um rapaz curioso, Thomas pensou assim que botou os olhos sobre ele. Tinha uma pele com aspecto sedoso e delicado, um sorriso repleto de dentes brancos como pérolas e olhos escuros extremamente expressivos. Seu rosto era perfeitamente alinhado, não era exageradamente bonito, mas também nunca chegaria a considera-lo feio. Era... belo. Definitivamente. Não tinha trejeitos de um Lorde, o que era evidente e esperado, afinal, cresceu como um plebeu. Thomas esperava poder agradar o rapaz, já que com a tia não teve sucesso, então, sorriu e se apresentou.

                Quando seus olhos se encontraram, com rapaz tendo que erguer o rosto para olhar Thomas em sua magnânima e distinta altura, um sorriso involuntário invadiu seu cumprimento ensaiado e um calor aconchegante acelerou seu coração. Definitivamente. Ele era lindo.

Mas Thomas havia feito uma promessa... e não queria ter mais problemas. Então, se censurou, rompeu com os próprios sentimentos e se limitou a uma apatia fria e meramente profissional, emparedando seus sentimentos para que não se pegasse agindo contra a própria honra (novamente).

                Lady Evayne aceitou ouvi-lo em particular.

                — Peço desculpas, milady — ele disse, quando todos já haviam se retirado. Macbeth Evayne havia se sentado, alisando as têmporas saltadas e tentando não ter um piripaque — Devia ter escrito, mas a senhora disse que tinha urgência...

                — Urgência por um professor, não por um rapaz que mal saiu das calças! Por onde anda sr. Stonegde? Walter Poltian? Morgan? Perry? — ela respondeu com certo ódio enraizado, mas também com boa dose de preocupação.

                Thomas franziu as sobrancelhas, envergonhado, e se sentou na cadeira a frente da Lady, tentando transparecer calmaria e paz, para que assim pudessem manter o nível da conversa. Ele suspirou.

                — Milady, posso não ter idade, é certo, mas sou mais que capaz de assumir as aulas de seu sobrinho — Lady Evayne riu em deboche — Posso não ter muita experiência, mas, modéstia à parte, sou considerado uma das pessoas mais inteligentes de Londres. Me formei na Academia com dezessete anos, com vinte já era professor formado em Oxford com pontuação máxima em todas as estâncias. Falo sete línguas, todas aprendidas por conta própria. Sou autodidata, tenho memória fotográfica — ele olhou ao redor da biblioteca, apontando para as prateleiras — E posso dizer que já li todos os livros que existiam na Street Academy... Digamos que eu tinha bastante tempo, já que, bem... — ele suspirou — Ninguém me dava uma única chance de demonstrar minhas capacidades — ele disse, num tom de lamentação. Lady Evayne não estava convencida (E parecia menos ainda inclinada para desabafos emocionais). Thomas engoliu seco e alisou o rosto, recordando-se que se fosse mandado embora já não teria mais para onde ir, pois voltar a Londres estava fora de cogitação.

                Lady Evayne permanecia em silêncio há alguns instantes, pensativa, com um olhar de irritação imutável. De quando em quando Thomas flexionava o maxilar, demonstrando toda consistência de seu nervosismo, esperando a resposta da senhora. Próxima a dar seu veredito, o homem a interrompeu agoniado e disse:

                — Eles não aceitaram dar aulas para José Eugênio — ele botou tudo para fora, por fim, como se vomitasse palavras dolorosas e asquerosas. A expressão da condessa mudou de imediato, se tornando mais branda.

                — Como?

                — Exatamente isso que eu disse, milady — ele reafirmou, corando de vergonha — Disseram que seria uma humilhação para a academia aceitarem a tarefa de serem tutores de um rapaz... bem...

                — Negro? Brasileiro? — ela respondeu, em desdém. Uma nova tempestade odiosa se formava dentro da mente daquela distinta senhora. Thomas, todavia, sentiu um alivio ao perceber que não era ele o alvo daquele sentimento. Ele anuiu. A condessa riu em tom de nervosismo, extremamente irritada e desacreditada. O homem conseguiu ver, inclusive, algumas lágrimas tomarem os olhos da senhora, que se levantou e lhe deu as costas de imediato, encarando o além da biblioteca pela janela — Então é isso que me resta? Os professores não acham meu sobrinho digno o suficiente para ter uma educação decente por conta de sua origem? Por conta de sua pele? — ela riu em descrença — É impressionante como diziam que a ciência era mais moderna, avant guard que a religião... Mas, então, se estes senhores se mostram tão terrivelmente conservadores... Desgraçados hipócritas — ela encarou Thomas com um olhar misto em sentimentos — E você? Foi obrigado a vir? Imagino o quanto devem ter zombado de Eugênio nos paredões de pedra da Street Academy... E pensaram: “para não ficar evidente nossos posicionamentos arrogantes e orgulhosos, mande aquele rapazinho que ninguém conhece, afinal, não é importante o suficiente para ser requisitado” e...

                — Eu me voluntariei, na verdade, antes mesmo de saber para quem era o serviço — Thomas disse, cortando Lady Evayne. Numa situação normal, a condessa teria comido o coração de qualquer um que lhe fizesse tamanha indelicadeza, mas, naquele instante, se calou de imediato, suspirou, pensativa e observou o homem. Não havia mentira em suas palavras, ela podia perceber, mas mesmo assim ele ainda parecia esconder algo.

                — Muito bem — ela disse, após muito deliberar. Thomas ergueu os olhos, esperançoso. Lady Evayne se sentou — Lhe dou um mês. Se você for realmente competente pode continuar com seus serviços... Que vão muito mais além que os de um professor comum, pode ter certeza — ela afirmou, numa aura diabólica — Obviamente, Eugênio não precisa só de aulas de literatura, história e afins. Ele precisa ser moldado para se tornar um verdadeiro Lorde. Seu caráter, sua reputação, sua honra, sua hombridade... Tudo isso também estará entre seus deveres e tarefas. Acha que pode arcar? Ou é jovem demais para um desafio tão grande? — ela questionou, num tom de desafio que seria vergonhoso recusar. Thomas sorriu, se levantou e estendeu a mão para a Lady.

                — Será um prazer, milady — respondeu confiante. Lady Macbeth sorriu e apertou a mão dele.

                — Mas saiba você que essa história não ficará assim. Quem aqueles imbecis pensam que são para me fazer uma desfeita tão grande? — ela questionou, retomando sua irritação de outrora — Quando terminar com a London Street Academy, aqueles idiotas virão de joelhos pedir perdão para Eugênio. E isso será extremamente agradável e reconfortante — afirmou, mais para si mesma que para Thomas, que engoliu seco, levemente intimidado.

Lady Macbeth e Cassandra Kieran regressaram da visita à Lady Bellemont ao cair da noite. O automóvel da garota já a esperava para ir embora — e sua criada parecia extremamente indisposta para continuar em Gardenhall, tendo se trancado na biblioteca em um momento e não saído mais de lá. Thomas Blonte também havia se recolhido, alegando uma drástica dor de cabeça que o fizera perder, inclusive, o apetite para o jantar daquela noite. José Eugênio acreditou que sua interrupção enquanto ambos jaziam em segredo, fazendo coisas libertinas, havia surtido efeito, então sorriu, satisfeito consigo mesmo, e se recolheu para o quarto, levemente embriagado, também pedindo licença para o jantar daquela noite.

                No outro dia não pode evitar o discurso interminável de Lady Evayne sobre a indelicadeza de se dispensar um jantar, se não por motivos médicos, ainda na mesa do café da manhã. Thomas Blonte concordava massivamente com a Lady, mas não expunha seus motivos verdadeiros pela tal indisposição, deixando Eugênio levemente curioso — afinal, um simples susto não teria surtido tanto efeito ao ponto de indispor o tutor, menos ainda seria capaz de provocar alguma dor de cabeça.

                — Lady Bellemont estava inconsolável — Lady MacBeth disse, mudando o assunto. Thomas ergueu seus curiosos olhos sobre a mesa e observou sua Lady. Eugênio permaneceu cabisbaixo, desinteressado — Já não bastava o fato, agora temos a fofoca sobre o fato para destruir ainda mais a dignidade da pobre mulher... — ela suspirou — Cassandra disse que não se fala de outra coisa na cidade, como era de se esperar.

                — As pessoas de Collins me assustam com sua inclinação para a fofoca — Thomas disse, tentando se tornar parte do assunto. Lady Evayne concordou.

                — O tempo que não gastam cuidado da vida alheia não é um tempo útil para as pessoas daqui — ela afirmou, por fim — Por isso essa cultura deplorável do “painel dos segredos”. Que bobagem! Não passa de linchamento público! Um horror!

                — Mas o que aconteceu de tão grave para ela, titia? — Eugênio questionou, involuntariamente. — Sabe, só estão falando dela... Em alguns dias isso vai parar... — afirmou. Lady Evayne encarou o sobrinho, incrédula.

                — Obviamente a honra, do lugar que você veio, não é levada a sério como aqui, na Grã-Bretanha — ela afirmou, irritada — Uma mancha, ainda que pequena, ainda que ínfima, ainda que miserável... Um simples ponto escuro numa reputação... — a Lady gesticulava freneticamente enquanto discursava — Vai definir tudo na sua vida: desde as amizades que você vai perder, às amizades que você não vai fazer; desde as oportunidades que você vai perder, até as que nunca vão chegar a serem ofertadas. Uma má reputação destrói completamente uma pessoa, a isola da sociedade, a torna uma cativa, sem classe, sem expectativas. A torna indesejável — ela fez uma pausa e bebeu um pouco de chá, delicadamente — e ninguém quer ser indesejável. Todos querem ser amados... E é óbvio, todos querem te amar... Mas, num ninho de cobras como Collins, mesmo quem te faz as mais louváveis declarações de amor, espera seu mínimo deslize para, bem, te tratar como uma criatura doente e contagiosa e te expulsar da própria convivência — Lady Evayne fez uma ligeira pausa — E, é óbvio, sua reputação te persegue aonde quer que vá. É algo impossível de se fugir. Então, não. Não é só por “estarem falando dela”, é pela maneira que vão a tratar daqui em diante. Todos vão enxergar Lady Bellemont como a mulher que foi enganada e nem sequer conseguiu segurar o próprio homem.

                Eugênio engoliu seco e riu num tom de deboche.

                — Então é assim que funciona a honra na Inglaterra? — Eugênio disse, num tom de desafio, extremamente descontente — Os tais “escândalos”: uma mulher paga por um destino que ela não fez por merecer, uma vítima de um crápula sendo exposta como a parte que deve ter vergonha... E um homem que só uma almeja uma coisa que lhe é direito sendo enxergado como um monstro usurpador sem que sequer as pessoas lhe conheçam antes, tudo por conta de sua cor da pele e sua ascendência — Eugênio riu, debochado — E eu que achava que a América era hipócrita.

                Lady Evayne encarou o sobrinho sem nada dizer. Thomas Blonte quase engasgou com o que comia, extremamente surpreso com a observação de Eugênio.

                —  Concordo — Lady Evayne disse, para a surpresa de ambos, que arregalaram os olhos, surpresos. A senhora bebericou mais um pouco de chá e deixou a xícara de lado — Uma velha amiga sempre me dizia que nas veias dos ingleses não corre sangue, mas sim chá e hipocrisia. Sempre concordei — e riu baixinho. Eugênio suspirou.

                — Mas é assim que são as coisas — disse, mais para si mesmo que para os demais, levemente entristecidos — Por enquanto, pelo menos — pensou. Lady Evayne limpou o rosto com um guardanapo.

                — Como vão as aulas? — ela questionou, por fim. Thomas Blonte deixou o chá que bebia de lado, limpou a garganta e se empopou para falar, mas foi interceptado por Eugênio.

                — Bem — ele respondeu, lançando um olhar furtivo para Thomas — Ontem, inclusive, a senhoria Diana, dama de Lady Cassandra, participou de nossa classe de... anatomia, não? — Thomas arregalou os olhos, desconcertado e assustado. Lady Evayne encarou o professor, aguardando uma resposta.

                — Astronomia, senhor — ele respondeu, com o nervosismo estampado em suas palavras. Seu rosto ficou vermelho como veludo e os pensamentos enublados como numa tarde chuvosa. Seu coração estava acelerado como uma locomotiva — A senhoria Diana foi muito...

                — Prestativa! — Eugênio cortou novamente, com um sorriso sagaz e zombador. Thomas riu de nervoso e concordou. O rapaz encontrou o olhar do professor sobre aquela mesa e sorriu de modo a deixar todo seu sadismo evidente.

                — Ótimo. Amanhã terei de ir à Londres, algum de vocês deseja me acompanhar? — ela questionou. Eugênio sorriu, animado, pronto para assentir, Thomas murchou, assustado, e Lady Evayne cortou antes que qualquer um pudesse dizer algo: — Ninguém? Excelente. Prefiro viagens solitárias — afirmou, num tom amargo como de costume — Espero que tenham um dia produtivo. Cassandra, inclusive, deve passar aqui pela tarde. Se forem sair não se esqueçam do casaco, José Eugênio e Thomas, amanhã será um dia frio.

                Thomas ainda estava desconcertado pelo comentário indelicado de Eugênio, bem como por suas insinuações nada discretas sobre suas liberdades com Diana no outro dia. O colarinho da camisa, de repente, passou a enforcar seu pescoço, e os poros do corpo se abriram e fizeram sua pele coçar. Aquilo divertia Eugênio.

                — E o que vai fazer em Londres, tia?

                — Conversar com velhos amigos e fazer planos para o futuro de uma certa instituição de ensino — e sorriu. Thomas estava tão absorto na própria ansiedade e nos próprios medos que nem se deu conta de que ela falava da London Street Academy.

                Naquela noite após o jantar, depois de se despedirem de Lady Evayne, Thomas e Eugênio se viram sozinhos no corredor dos quartos.

                Eugênio observava, em silêncio, o delineado do corpo de Thomas sob suas roupas elegantes. O corpo do professor era tão forte e bruto que mal cabia nas próprias vestimentas, sempre tão apertadas, as tornando chamativas, por mais simples e discretas que fossem. Thomas Blonte era um espetáculo completo — e atraía toda atenção que tentava cativar com sua inteligência pela sua beleza e curvas esculturais. Cada vez que ele erguia um livro parecia que seus braços rasgariam as mangas das camisas e todas as vezes que respirava profundamente, um botão de sua camisa gritava por ser libertado, depois de ser obrigado a segurar seu peitoral.

                — O que foi aquilo? — Thomas questionou, despertando Eugênio do seu transe inesperadamente. O rapaz ficou sem palavras, de olhos arregalados e sobrancelhas erguidas, tentando disfarçar o que fazia outrora.  — José Eugênio? — ele disse, cruzando os braços e encarando o rapaz após o ter deixado sem palavras.

                Seus olhares se cruzaram. Fogo e querosene. A reação perfeita: sentimentos ardentes e desconhecidos começaram como uma brasa em seus subconscientes, se elevando como incêndios do mais puro e insano impulso. Nenhum deles entendia a extensão dos próprios desejos, mas lutaram contra eles mesmo assim. Se mantiveram firmes.

                — Foi só uma brincadeira — Eugênio respondeu, meio a nervosos gaguejos. Engoliu seco e sentiu um peso enorme nas costas, além, é claro, de borboletas voando no estômago. — Não fiz por mal. Não leve tão a sério — Thomas esboçou um olhar de irritação, envolvendo suas mãos no rosto e suspirando em seguida.

                O professor se aproximou do aluno, o encurralando contra as paredes de Gardenhall, ficando a poucos centímetros de tocá-lo. Eugênio conseguia sentir o calor do corpo do professor, seu cheiro salgado e adocicado e a aura eletrizante que o envolvia.

                — Eu sou seu professor, José Eugênio — afirmou, irritabilíssimo — Posso não ser o que você esperava, posso não ser perfeito e não ter cabelos brancos e uma barba quilométrica, mas exijo todo o respeito que você teria se qualquer um dos outros tutores da academia estivessem aqui, no meu lugar — disse, olhando o rapaz no fundo dos olhos. Eugênio engoliu seco. Ele era tão alto, então, ao mesmo tempo que era intimidador, era... bem, difícil de explicar.

                — Mas nenhum deles está aqui — ele respondeu, sem saber exatamente o que dizer, levemente perdido nas próprias palavras — não quis te ofender. Sinto muito — afirmou num tom exageradamente arrependido, com um olhar entristecido. Thomas engoliu seco e alisou a nuca, compadecido.

                — Tudo bem... Eu também não estou certo nessa história — afirmou — Devia ter te agradecido por não contar do que fiz para sua tia e não implicado por uma bobagem... — ele sorriu — Eu que te devo desculpas, então. Só entenda que esse emprego é tudo que eu tenho no momento, Eugênio, e não vou fazer nada que o arrisque.

                Eugênio engoliu seco, se questionando o que ele queria insinuar com aquilo, visto que o olhar que o professor lançou sobre si evidentemente significava alguma coisa. Os pelos da nuca do rapaz se ouriçaram.

                — Então é melhor evitar seduzir as damas de companhia da afilhada de tia Macbeth — Eugênio brincou, com um sorriso tímido. Thomas riu com um olhar de reprimenda.

                — Esqueçamos disso, tudo bem? Amanhã teremos outro dia.

                — É. Amanhã seremos só nós dois em Gardenhall — Eugênio afirmou, com um sorriso sagaz. Thomas engoliu seco, desconcertado.

                — Então, seremos amig...— e, antes que pudesse terminar a pergunta e entrar para o quarto, foi interceptado por José Eugênio, que lhe envolveu num caloroso abraço, aproveitando cada milésimo de segundo daquela carícia para sentir toda extensão do corpo do professor, bem como para se entorpecer com seu perfume doce e salgado e o calor natural que emanava de seus braços. Thomas ficou sem expressão e sem reação, atônito enquanto recebia o carinho. — Eugênio?

                José Eugênio riu e se afastou.

                — É assim que os brasileiros se despedem. Adeus! — ele disse, mas em português, antes de entrar pro quarto. — Amigos! — ele disse, ao passo que pensou: “ou quase isso”.

                Thomas ficou bastante tempo acordado, pensando em tudo, sem dormir.


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