O Lorde das Rosas escrita por Youth


Capítulo 6
A francesa: etiqueta e hipocrisia




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                Catharine Coucou era canastrona, caricata e exagerada como uma boa francesa. Seu sotaque era datado e seu inglês arrastado, lhe obrigando a falar lentamente para não dificultar a compreensão de quem ouvia. Trajava roupas pesadas, levemente antiquadas para o novo século, e tinha ares de primadona, extremamente “diva” e levemente arrogante. Os cabelos dourados presos em trança, olhos azuis profundos e sorriso com alguns dentes tortos. Já era de meia idade, mas tentava, absurdamente, aparentar ser mais jovem, seja exagerando na maquiagem ou forçando os próprios trejeitos.

                Chegou à Gardenhall só alguns minutos após Lady Evayne ter saído, a caminho de Londres, frustrando todas as expectativas de Eugênio de ter um dia a sós com Thomas Blonte — o professor, todavia, se viu aliviado pela presença da matrona.

                Para uma professora de etiqueta, Catharine era ligeiramente indelicada. Falava alto, tinha olhares de desprezo, toques indesejados e muita força de vontade para tecer críticas desnecessárias. Mal entrou em Gardenhall e já estava criticando as paredes “muito floridas” e o “exagerô de pólen no ar”. Quando viu Eugênio, sorriu como se velhos amigos fossem, dando-lhe dois beijinhos em cada lado do rosto e o abraçando. Ela cheirava à vinho.

                — A posturá! — ela reprimiu segundos depois de se desvencilhar do abraço, dando uma leve golpeada nas costas de Eugênio com seu leque de rendas. — É melhor ajeitar, caso não queirá ficar corcunda antes dos trinta! — exclamou, já com um olhar mais autoritário e ditatorial, caminhando por Gardenhall e observando tudo. — Sou a srta. Catharine di Coucou, professorá de etiqueta. Imagino que você seja monsieur José Eugêniô! — exclamou.

                — Eu também acho, pelo menos — Eugênio respondeu, meio desconcertado e levemente assustado com a presença da francesa. Catharine parou por um instante, diante do vitral do salão principal, aos pés das escadarias, olhou ao redor e sorriu.

                — Aqui será perfeitô! — exclamou sorridente — Lady Evayne disse para não ter pena de você. Para ser bem exigente... — ela sorriu, diabolicamente. Eugênio engoliu seco — Mas eu, não costumo se exigente — Eugênio suspirou aliviado. Catharine riu em deboche — Eu prefirô ser uma tirana, malvada, minuciosa, inflexível, diabólica e extremamente perfectionistte — ela se sentou num sofá, cruzou as pernas e observou Eugênio — Ande pará mim. Vamos ver melhor seu porte — ordenou.

                Remsy chegou à sala, trazendo chá e biscoitos e servindo à Catharine.

                Eugênio, levemente desconcertado e confuso, olhou aos arredores, com o olhar rapino e feroz de Catharine sobre si, e começou a caminhar como o fazia normalmente. Mal deu três passos a mulher gritou:

                — Terrível!! Horrible! Mon Dieu! — ela gritou, extremamente desgostosa, chegando a assustar Remsy — Parece que você está com uma navalha enfiada na virilha! — ela afirmou, sem nenhum eufemismo, enquanto bebericava do chá e atacava os biscoitos. Eugênio e Remsy ficaram levemente desconcertados, de olhos arregalados e rostos corados. — Surpresos por eu falar virilha? Pois saibam que falarei palavras muito mais deselegantês se seus modos não melhorarem.

                Eugênio coçou a nuca, envergonhado, e percebeu Archie rindo e o observando na sala ao lado.

                — Monsieur? Quer se juntar a nós? — Catharine convidou, com um olhar sádico. Archie arregalou os olhos, surpreso, e se aproximou da francesa, com um caminhar gracioso e forçosamente delicado. Catharine sorriu e aplaudiu — Bravo! Sim! Exatamente! Este é o caminhar de um Lord! Replique-o, Eugêniô! — ela ordenou.

                Eugênio revirou os olhos, irritado, e tentou imitar o caminhar de Archie, mas saiu pior do que se tivesse andando normalmente. O olhar de Catharine disse todas as palavras que ela não quis expressar.

                — Terrei muito trabalho, muito trabalho... — ela resmungou e suspirou — Peguem um livro bem pesado e coloquem na cabeça de Eugêniô. Se não aprendeu do modo dos lordes, aprenderá como fazem as damas — afirmou, convicta.

                Remsy trouxe um exemplar assustadoramente grande de O Conde de Monte Cristo e entrou nas mãos de Eugênio. Catherine o encarou, aguardando o óbvio.

                — É pra colocar na cabeça literalmente? — ele questionou.

                — Exato! E dar um jeito de mantê-lo equilibradô enquanto caminha — ela afirmou, com um ar diabólico — Equilíbrio e posturá são a chave para um bom caminhar.

                Eugênio, meio desconcertado, colocou o exemplar do livro sobre a cabeça e se esforçou para mantê-lo lá, erguendo os braços e balançando os ombros no ritmo que ele chacoalhava. Catharine manteve seu olhar crítico, com um leve tom de deboche. Archie se ajeitou num canto e ficou observando.

                O rapaz tentou dar os primeiros passos e o livro caiu, como era esperado. Catherine colocou a xícara diante do rosto. Archie se afastou para segurar o riso, encontrando Thomas no virar da escada.

                — Observe Catherine de Coucou — ele sussurrou — Está colocando a xícara na frente do rosto para não ficar evidente que está rindo — afirmou à Thomas, antes de deixar a sala e poder resolver seus problemas.

                Eugênio pegou o livro do chão e colocou novamente na cabeça, obstinado, e voltou a caminhar, agora o mantendo por um tempo superior — dois segundos. Catherine alisou o rosto e chacoalhou a cabeça em desdém.

                — Muito trabalho para pouco dinheiro — sussurrou para si mesma, se controlando para não rir.

                Thomas Blonte se aproximou timidamente e beijou a mão de Catharine, que permitiu a delicadeza com certo desdém e desconfiança. Eugênio continuava na sua luta para manter a postura e caminhar com o livro na cabeça.

                — Thomas Blonte, é um prazer, senhora — ele disse, com um sorriso galanteador. Catharine puxou sua mão e esboçou um olhar de desprezo.

                — Senhorita — ela corrigiu — Catharine de Coucou. O senhor deve ser...? — ela questionou, com um olhar desinteressado. Thomas afastou-se, levemente envergonhado pela reação da mulher.

                — Sou o tutor de José Eugênio — ele disse. Catharine arqueou as sobrancelhas numa surpresa forçosa, resmungando um “hum” desinteressado e usando da xícara de chá em sua mão como desculpa para não prolongar a conversa, extremamente descontente. Thomas deu de ombros, levemente constrangido.

                — Devo lembrar que temos aula à tarde, José Eugênio, não se atrase — ele disse, rigidamente, antes de deixar o salão, constantemente observado pelos olhos críticos de Catharine Coucou. Não fez alguns segundos que ele saiu para que ela deixasse a xícara de chá de lado, suspirasse e segredasse à Eugênio:

                —  Esse tipo de gentleman é o pior que existe — ela afirmou, convicta — Sedutor, inteligente, muito bonito. Sinto o cheiro do problema de longe, como um perfume francês falso — afirmou — Se prende no corpo e não sai nem com muitos banhôs — nesse instante Eugênio parou para poder ouvi-la, curioso, pensando em sua análise sobre Thomas baseada apenas em um galanteio sem precedentes e duas palavras trocadas. Catharine o encarou em reprimenda — Não disse que devia parar! Andê! Andê! Só sairemos daqui quando estiver com sua coluna ereta como poste de gás! — afirmou irritada, obrigando o rapaz a retomar seu exercício.

                No finzinho da manhã, como já era esperado, Cassandra Kieran e Diana vieram fazer sua visita diária à Gardenhall. Trouxeram um cesto com frutas frescas e pães e convidaram Eugênio e Catharine Coucou para um lanche no jardim, que foi aceito com muita amabilidade.

                Lady Cassandra tinha um rosto rosado e redondo, com cachos graciosos de cabelo escuro e olhos marrons como madeira. Tinha sardas entre o nariz e os olhos e um sorriso com dentes meio tortos. Era gentil, mas extremamente fofoqueira. Qualquer novidade em Collins acabava chegando aos seus ouvidos, para que pudesse, religiosamente, transmitir a madrinha, Lady Evayne, e sempre a manter a par das ocorrências na cidade. Agora, com a adição de Eugênio em Gardenhall, ela tinha uma pessoa a mais para dividir suas grandíssimas indiscrições.

                — Talvez a mais alarmante novidade desde que soubemos de Lady Bellemont — ela disse, com toda graça de uma lady espalhando fuxicos, enquanto bebia chá e forçava uma expressão de compadecimento, como todo bom e hipócrita inglês — Mal pude acreditar quando vi e, tenho certeza, se não tivesse visto com meus olhos não acreditaria se me contassem — afirmou com um olhar assustado — Bem, estive por Stearby para visitar o velho Lorde Moorebunch, como sabem, mamãe e papai prezam muito pela saúde dele... No caminho encontrei com Jacelyn e a carruagem de Gilles Scarland... — afirmou. Eugênio não fazia ideia de quem ela falava, mas se sentiu curioso pelo mexerico mesmo assim. — E eles me contaram que voltavam para reabrir Thornheart. Lorde Scarland está regressando, agora que passou seu luto.

                As moças sorriram e comemoram. Eugênio ficou sem palavras, encarando o trio e tentando entender o que tinha de tão divertido ou interessante naquilo e, involuntariamente, pensando: “brancas malucas!”.

                — Sabe o que isso significa, José Eugênio? — Cassandra questionou, com um sorriso diabólico. Eugênio negou, com um olhar curioso — Que teremos um solteiro extremamente cobiçado andando por Collins — ela afirmou, com um olhar cômico. José Eugênio não podia ver o que tinha de tão agradável em ser um solteiro cobiçado (Menos ainda quando se era um viúvo, não um solteiro).

                —   O que houve com a esposa dele? — questionou. Cassandra e Diana trocaram olhares preocupados.

                — Bem... É complicado — Diana afirmou.

                — Não é nada complicado — Catharine di Coucou interviu, convicta — Todas nós sabemos que a vida em Thornheart é infernal para qualquer mulher. Dizem ser assombrada pelas vítimas da peste que morreram por lá — ela sorriu e bebericou um pouco de vinho — Bom, e mesmo com tantos mistériôs, não conheci mulher que não desejasse o título de Lady Scarland — e riu em tom de deboche.

                — Essa é a história mais maluca que já ouvi — Eugênio disse, por fim. Cassandra comeu um morango e observou os arredores, sentados sob um sabugueiro em flor, com pétalas brancas caindo sobre seus cabelos.

                — Já vai completar um ano de luto — Cassandra completou, tentando justificar os próprios desejos — E Thornheart não podia continuar fechada por mais tempo. É uma abadia enorme e antiga, necessita de seus senhores lá — e sorriu. — Acho que o regresso foi em boa hora. Serviu para abafar tanto a sua chegada, como a fuga de Lorde Bellemont e a desgraça de Georgina Bellemont.

                José Eugênio não tinha muito a acrescentar naquele debate extremamente desinteressante, então fez algum comentário educado e tentou provar o chá que serviam. Foi horrível. Detestável. Excruciante. Ele sentiu como se bebesse lágrimas de um demônio. Sua careta foi inevitável, seguida por uma reprimenda de Catharine.

                — Mon dieu! Os modos! Os modos! Está na presença de damas! — ela afirmou, irritada, acertando o ombro do rapaz com seu leque rendado. Cassandra e Diana riram em sincronia.

                 Thomas Blonte fez uma breve passagem pelo grupo no jardim exterior, apenas para cumprimentar Lady Cassandra Kieran e sua dama — que torceu o nariz na sua presença, o respondendo de maneira ríspida e sequer deixando que beijasse sua mão. Eugênio riu baixinho se perguntando o que de tão grave teria ocorrido para que eles, que até outrora trocavam beijos ardentes e carícias indecentes, passassem a se tratar com tanta amargura — e convocar José Eugênio para as aulas de ciência que ocorreriam naquele instante.

                Assim que deixou o grupo teve a certeza de que as senhoritas finalmente poderiam ter a liberdade verdadeira para criticar e fofocar — e algo o dizia que Thomas Blonte seria a principal vítima das críticas, enquanto à Lorde Scarland só restariam as fofocas. No caminhou deparou-se com Theobald, ou Theo, um dos criados da casa, levando um cesto de maçãs para as moças— ou pelo menos foi essa a explicação que ele deu, extremamente nervoso, enquanto caminhava para os jardins. Mais tarde Eugênio se lembrou de que em nenhum momento maçãs foram requisitas à cozinha, até porque havia frutas até demais trazidas por Cassandra Kieran.

                As lições de ciência eram extremamente desgastantes. Eugênio já tinha péssimas lembranças dessas aulas na academia em Salvador, onde fora obrigado a dissecar animais, fazer experimentos perigosos e ser “voluntário” em tarefas insalubres — afinal, ele não era bem-quisto entre os alunos e professores, talvez por ser o único negro, filho de “sabe-se lá quem”, num internato de Elite brasileiro, então, no fim, era sempre a vítima das maldades cotidianas. Com Thomas Blonte não era diferente, todavia, tirando o fato que suas classes eram sempre a mesmíssima coisa: narizes e olhos enfiados nos livros e longos discursos entediantes que só serviam para inflar seu próprio ego — e deus sabe como Thomas Blonte era orgulhoso de si mesmo.

                Chegava a ser fofo, mas levemente irritante, a maneira entusiasmada e orgulhosa com que ele se apresentava em cada ensinamento que trazia aquela salinha de Gardenhall, iluminada pela luz que atravessava o vitral florido vinda de um dia ensolarado e de céu azul. José Eugênio passava a maior parte do tempo admirando os traços do professor, em vez de se concentrar nas próprias lições — que ele achava irrelevantes, pois, tirando história e literatura inglesa, tudo era igual o que ele já tinha aprendido no Brasil. No fim das contas, matemática, astronomia e ciência não mudavam de acordo com o continente que se estava.

                Num momento nem Thomas conseguia mais fingir que acreditava que José Eugênio estava prestando atenção, então suspirou e propôs uma pausa. Sentou-se na cadeira diante do aluno e coçou seus olhos cansados.

                — Diana falou algo de mim? — Thomas questionou, surpreendendo Eugênio, que achava que nunca mais ouviria menção da dama de Cassandra na boca do professor.

                — Ela não disse muita coisa hoje — ele respondeu, tentando ser dúbio só para provocar Thomas.

                — Sim, mas falou sobre mim?

                Eugênio sorriu.

                — Sim — Thomas arregalou os olhos, assustado — Oh! Não! Confundi... Na verdade falávamos sobre um outro Thomas. Thomas Garthland, sabe, o cantor de ópera — afirmou. Thomas Blonte esboçou raiva no olhar, mas nada disse. Eugênio se compadeceu e sorriu — Não, ela não falou sobre você. Bem, Cassandra fala a maior parte do tempo, e se elas têm uma fofoca muito interessante, não tem porque falar de coisas que as irritam.

                Thomas encarou Eugênio com um olhar melancólico.

                — Você acha que isso a irrita?

                — Bem, para eu responder que sim eu deveria ter a certeza sobre o que “isso” se refere — ele afirmou, num tom mais sarcástico — Mas, como não tenho, fico só com as minhas suposições... — disse, com um sorrisinho de canto de rosto impagável. Thomas lambeu o lábio, com uma ruga de preocupação na testa. Eugênio revirou os olhos — Sim, ela parecia bem irritada... — ele suspirou — Bem, se for para falar dos sentimentos de uma garota que eu mal conheço e de acontecimentos que não me são exatos, preferia continuar falando de genética — afirmou, levemente enciumado e irritado. Thomas alisou os olhos.

                — Sim, claro, me desculpe — respondeu — Só estava preocupado com algumas coisas.

                — Thomas Blonte — Eugênio disse, olhando o professor no fundo dos olhos — Tudo bem? Por que está tão assustado com isso? O pior que poderia acontecer era que minha tia soubesse o que vocês dois fizeram, mas eu já disse que não contaria e eu duvido que Diana... — nesse instante Eugênio percebeu um olhar conflituoso e confuso no rosto de Thomas, que explicou muitas coisas — Vocês não fizeram nada, essa é a questão — ele pensou, mas nada disse — Duvido que ela contaria. Não correria o risco de expor a própria honra a desgraça assim, ainda mais numa cidade como Collins — ele completou, tentando não deixar evidente suas deduções. Thomas suspirou.

                — Essa cidade — ele afirmou, irritado — Nós dois mal chegamos e já somos os atores principais nessa peça calculista e venenosa chamada Collins. Que diabos. Sinto que não posso usar meu urinol sem que alguém espalhe isso na igreja — reclamou, gesticulando com certa raiva. José Eugênio não pode deixar de sentir um burburinho no estômago quando ouviu a palavra “urinol”, deixando sua timidez evidente até para Thomas — Desculpe por isso. Mademoiselle Catharine me bateria com o leque pelas minhas palavras, com certeza. 

                Eugênio riu, deixando o clima mais leve. Retomaram os estudos e assim ficaram até o fim da tarde, quando Lady Evayne regressou de Londres, inabalável, numa aura satisfeita e realizada. Pediu que servissem o jantar mais cedo, pois receberiam uma visita que não podia chegar tarde em casa, e pediu elegância máxima do sobrinho e de seu tutor para a noite.

                Archie terminava de auxiliar Eugênio a trocar de roupas para o jantar. Vinham conversando há algum tempo, debatendo, principalmente, sobre o regresso de Lorde Scarland, o painel dos segredos e especulando quem poderia ter sido o convidado que não poderia chegar tarde.

                — Talvez esse Lorde Scarland — Eugênio supôs, com um olhar pensativo. Archie negou enquanto fechava os botões de sua camisa.

                — Difícil, senhor — respondeu convicto — Gilles Scarland se tornou relativamente recluso desde a morte de Lady Marine Scarland. Nos primeiros meses de luto mal saía do próprio quarto, precisou ser obrigado pelos familiares a ir passar alguns meses em Yorkshire e tratar sua saúde — afirmou — Acabou que esses meses se convergiram em quase um ano. Penso que pelo mesmo motivo: não devia deixar sua casa em Yorkshire, tal qual não deixava Thornheart por nada.

                — E quem mais Lady Evayne poderia convidar? — ele questionou, curioso — Sei que ela não pretende me deixar na presença de pessoas importantes enquanto não considerar que meus modos à mesa são bons... E, bem, comecei só hoje as aulas de etiqueta. — Archie terminou de abotoar a camisa e já começou a vesti-lo com o blazer de linho vermelho. Eugênio ainda ficava desconfortável por ter alguém lhe vestindo assim.

                — Não tenho ideia, senhor. Se fossem os Kieran ela não havia de fazer tanto mistério... Lorde Moorebunch está fora de cogitação, seu reumatismo não o permite sair de Stearby, Lady Bellemont — ele suspirou compadecido — Bom, ela não está muito disposta a fazer aparições sociais por enquanto... Mas, sobre as aulas de etiqueta... Conseguiu?

                Eugênio suspirou e negou, entristecido.

                — O máximo que consegui ficar com o livro na cabeça e caminhar, mantendo a postura, foram dois minutos — afirmou, com um olhar murcho. Archie sorriu em deboche — Consegui alguns roxos do leque de Catharine também, aliás.

                — A pratica levará a perfeição — respondeu convicto — No começo é sempre difícil. Meu pai me mandava manter a postura, caso contrário ele me punia... — ele disse, com um tom carismático no começo, mas melancólico no final. Eugênio engoliu seco — Melhor nem pensar nas coisas que ele me fazia... Digo, o leque de Lady Catharine parece bem mais agradável que os métodos nada ortodoxos dele.

                Eugênio ficou levemente assustado com as palavras de Archie, bem como com seu tom melancólico e traumatizado, mas o valete fez o possível para mudar o assunto o mais rápido que pôde e terminar a troca de roupas.

                Atrasado como sempre, Eugênio sentou à mesa já na presença do misterioso convidado: um homem de olhos grandes e penetrantes, barba branca rala e um sorriso medonho. Usava roupas muito pretas e um colarinho alto e branco. Era um pastor, mas Eugênio não sabia (ainda). De sorrisos fáceis e exageradamente simpáticos, o Sr. Doyle não parecia uma pessoa muito inclinada à silêncios constrangedores ou meias palavras, falando pelos cotovelos, ao ponto de deixar Lady Evayne sem graça.

                Eugênio chegou calado e assim permaneceu. Só Thomas Blonte estava inclinado a manter uma conversa com o pastor. No fim, dois homens orgulhosos se entendiam muito bem.

                Num momento entre o prato principal e a sobremesa, o pastor Doyle deixou escapar, por um azar de sua afiada e desmedida língua, as razões que o fizeram ir até Gardenhall.

                — Os paroquianos estavam curiosos sobre as pretensões de seu sobrinho quanto a igreja daqui — ele disse, por fim. Seu tom, todavia, denotava interesses ocultos, mascarados e emplacados num eufemismo barato. Lady Evayne percebeu de cara, mas se manteve plena e atenta — Se pretende ir, ou se tem sua própria religião.

                Eugênio teve a chance de falar pela primeira vez desde que se sentou à mesa. Olhou para os três, meio desconcertado, e disse:

                — Eu sou católico — afirmou, com um sorriso tímido. O olhar do pastor Doyle denotou um alívio grandioso, que não agradou a senhora de Gardenhall — Mas não vejo problemas em ir à igreja protestante — respondeu, num tom carismático — Deus é um só, no fim. Só tenho muita fé em Nossa Senhora Aparecida — ele não sabia como traduzir esse nome para inglês, então manteve em português, deixando os presentes confusos, com exceção de Thomas que o entendia bem, e sorriu com as dificuldades do aluno — e não abandonaria por nada.

                Lady Evayne observava criticamente cada feição mudada no rosto do pastor, aguardando o momento certo para questionar. Sr. Doyle parecia levemente nervoso como um rato encurralado. Tentou dissuadir Eugênio, com o melhor dos eufemismos e a maior das falsidades (“Não traia sua fé! Não há por que se afastar dela se aproximando dos anglicanos” ele repetia, até o ponto que ficou suspeito), que não havia problema em não frequentar a igreja de Collins. Chegou num momento que as intenções dele eram óbvias para qualquer um. Lady Evayne alisou uma ruga na testa.

                — Sr. Doyle — ela disse, por fim, com um olhar irritado e desgostoso, calando o pastor pela primeira vez — Por que não diz logo suas intenções? — ela suplicou. O Sr. Doyle se fez de desentendido. Lady Evayne estalou os dedos, irritada — Por que não diz logo que veio dizer que José Eugênio não é bem-vindo na igreja? Já que sua intenção está mais que evidente — ela afirmou, sem pudor algum. Eugênio engoliu seco, meio envergonhado, mas inabalável, e encarou o pastor com um olhar crítico. Thomas se calou e esperou o pior.

                — Milady... Imagine, que bobagem, eu só... — ele tentou argumentar, mas era óbvio que não surtiria efeito. Lady Evayne era irredutível. Ele suspirou, decepcionado — Foi sugerido isso na última reunião dos paroquianos. Só uma sugestão, nada mais que isso.

                — A sugestão era que uma pessoa, que vocês nem sequer conhecem, não seria bem-vinda na casa de deus? — Eugênio questionou, irritado. O Sr. Doyle começou a suar frio. — Nem imagino o porquê — ironizou.

                — Pela sua religião, é claro — ele tentou argumentar, acreditando falsamente nos próprios pensamentos — não queremos que se sinta deslocado e...

                — Certas pessoas ficam mesmo cegas pelas próprias inverdades — Thomas Blonte comentou. Lady Evayne sorriu de canto de rosto, chacoalhando a cabeça em desdém. Eugênio estava absolutamente irritado e desgostoso, além de extremamente decepcionado com toda hipocrisia naquela mesa. Jogou o guardanapo na cadeira, pediu licença aos presentes e se retirou, irritado, pisando firme. Thomas, levemente preocupado, pediu licença em seguida e foi atrás do pupilo.

Os dois estavam à mesa: Lady Evayne e sua próxima vítima. Carne e lava. Consumação total. A reação perfeita: destruição, evaporação, queimação. Sr. Doyle tentou por muito argumentar que não vinham dele aquelas opiniões retrógradas, mas dos habitantes de Collins, só que isso não emplacou a fúria de Lady Evayne de Gardenhall.

                — Sabe, Sr. Doyle, acabo de chegar de viagem. Fui à Londres. Uma viagem inesperada, rápida e decidida num último momento. Fui resolver certos assuntos pendentes, de honra, principalmente — ela disse, num tom calmo e carismático, fazendo os ossos do pastor tremerem de medo — Conhece a London Street Academy? Claro que conhece! É a maior da Grã-Bretanha. Eles menosprezaram Eugênio. Se acharam muito “superiores” para serem professores de meu sobrinho. Disseram que por ele ser brasileiro, sendo que os fatos estavam explícitos — ela riu e bebeu um pouco de vinho — Bom, sabe o que eu fiz? Comprei aquela maldita Academia e obriguei cada um dos professores esnobes a prestarem aulas a pessoas comuns, pobres, da plebe e dos guetos Londrinos — ela riu — Não foi uma punição direta, obviamente, mas vai os ensinar a terem menos orgulho e mais empatia. Ah! É claro! Agora a instituição se chama “Da Silva Academy” — ela sorriu diabolicamente. Pastor Doyle engoliu seco — É isso, sr. Doyle. Ninguém mexe com o nome dos Evayne. Nosso orgulho vale qualquer centavo gasto em retratação e, bem, vingança.

                — Lady Macbeth eu...

                — Você vai voltar para a paróquia e dizer que, apesar de a maioria ser intolerante o bastante, terão de aturar a presença de Eugênio, sejam quais forem os preconceitos que desejam impor para impedir que ele frequente a casa de deus — ela sorriu — Afinal, deus não faz julgamentos, não é?

                — Claro que não, Lady...

                — Ótimo. Acho que terminamos o jantar por aqui, Sr. Doyle. Comeu bem? — ela questionou num tom cínico, como se não tivesse acabado de ameaçar o pastor. Sr. Doyle engoliu seco e forçou um sorriso.

                — Maravilhosamente, Milady — respondeu, levemente assustado. Lady Evayne forçou um sorriso.

                — Excelente — ela se levantou e jogou o guardanapo sobre a mesa, envolta numa aura de raiva reprimida por muita elegância — Creio que nos veremos no domingo, então. Tenha uma ótima noite — e deixou a presença do pastor, sentindo-se absolutamente plena em suas ações.

                O Sr. Doyle não dormiu bem naquela noite.


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