O Lorde das Rosas escrita por Youth


Capítulo 4
A fofoca: veneno e segredos pelo ar




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                Desde que chegara à Gardenhall, Eugênio foi tratado com toda elegância e pompa de um verdadeiro nobre — o que ele era, sem sombra de dúvidas. Mesmo assim, por conta de fatores diversos, em especial o tratamento relutante dos habitantes de Collins, o rapaz sentia que jamais de adaptaria aquela localidade, podendo, um dia, se sentir bem como um legítimo cidadão. Lady Evayne, na grande maioria das vezes, estava ocupada e distante, quase inalcançável, e nas poucas vezes que se encontrava com Eugênio havia alguém entre os dois, dividindo as atenções da tia, então não se pode dizer que se tornaram exageradamente próximos. Archie cumpria o que lhe era designado e, às vezes, ia além no cuidado com seu Lorde, mas nunca atravessava a “Linha imaginária” que criou entre os dois, dificultando e muito na aproximação para uma amizade mais calorosa. Tirando os dois, José Eugênio, pela semana que se passou, só teve contato direto e específico com mais uma pessoa: Thomas Blonte, seu tutor em tempo integral, o homem de maxilar marcado e cabelos escuros adoráveis. A proximidade dos dois, contudo, não foi nada do que Eugênio imaginou e desejou: o tutor era ético, sério, centrado e plenamente amedrontado pela ameaça de Lady Evayne — de que, se em um mês seu sobrinho não tivesse evoluído, ele estaria no olho da rua —, pouquíssimas vezes encarnava uma amizade ou uma conversa sem razão educacional com Eugênio. Então, se sentir solitário meio a grandeza daquelas paredes floridas era inevitável.

                Em pouco tempo o silêncio passou a amedrontar seu coração e irritar sua alma espontânea e astuta, tão acostumada com a música, com a vida e com a liberdade. Deste lado do Oceano, tudo que Eugênio conseguia sentir era saudades de seu país, cheio de defeitos, mas extremamente mais agradável que aquele pedaço de terra frio, habitado por pessoas hipócritas que bebem chá.

                Obviamente que ser tratado como uma criatura exótica por parte dos brancos de Collins não ajudava em nada no crescimento de sua afeição pela cidade — menos ainda quando forçavam amizade, alegria ou contentamento, tudo pelo medo da perspectiva de irritar o futuro Lorde.

                Como orientado por Lady Evayne, passou a encher seus dias de tarefas e aprendizados: arte pela manhã, cultura pela tarde e tarefas gerais pela noite. Os demais professores eram frios e calculistas, pareciam olhar através dele e ignorar sua existência... além de o tratarem naquela velha e conhecida forma, como os professores do Novo Mundo lhe trataram tanto. As aulas com Thomas Blonte, pelo contrário, eram seu momento de alívio: o momento que era enxergado, era respeitado e não era tratado como uma fera irracional de um continente desconhecido. Apesar da seriedade desmedida e da enorme ética profissional, Thomas foi o único que sempre lhe tratou com normalidade — sem privilégios e sem empecilhos —, o que, por mais absurdo que fosse, ele adorava. Não gostava de ser José Eugênio Evayne, Lorde das Rosas, que todos tratam com pão de ló por medo de precisarem de favores futuros, queria menos ainda ser enxergado como “a rosa negra” e brasileira que usurpava o título de algum inglês legítimo.

                Não preciso dizer como todo aquele tratamento “normal” dado por Thomas cativava o coração de Eugênio dia após dia. O tutor, como combinado, dava aulas todos os dias e todos os momentos, e passou a morar em Gardenhall, frequentar a mesa dos Evayne e participar de seu ciclo social, como parte legítima da família.

                — Madame Bovary é um marco para o romance — Thomas disse, um dia, sentado de frente para Eugênio, com os olhos azuis sobre as páginas de um livro com capa azul escura. Sua voz era instigante, com uma dicção perfeita e hipnotizante. Eugênio estava sentado, apoiando o rosto sobre o braço, e encarando seu tutor com um olhar que, claramente, não era de um aluno concentrado... Seus olhos escuros brilhavam com uma luz que vinha de dentro do seu próprio ser; uma aura rosada pairava sobre seus pensamentos e um sorriso tímido lutava para dar o ar de sua graça naquele rosto tão tímido — Gustav Flaubert o usou para afrontar e, ao mesmo tempo, se defender da moralidade religiosa que há muito tentava levá-lo ao tribunal — a empolgação e a alegria de Thomas por ensinar era tanta, que involuntariamente sorria e gesticulava. O cheiro de seu corpo era doce do perfume, com pitadas de salgado e grandes doses de instigante. Eugênio parou de prestar atenção no instante que ele entrou na biblioteca para começar a aula.

                — Por que minha tia desistiu da ideia de mandar você de volta? — Eugênio questionou em um instante inoportuno, completamente aleatório. Nem ele mesmo sabia o porquê de ter o feito, mas o fez. Thomas Blonte ergueu os olhos de Madame Bovary, meio desconcertado, coçou a nuca e ficou encarando o rapaz por alguns instantes, sem palavras. José Eugênio, num tom desafiador, encarava seu tutor em resposta, sem nenhum acanhamento. Um clima tenso se instaurou entre as prateleiras de Gardenhall. Thomas engoliu seco e precisou desviar o olhar, com medo dos próprios pensamentos. Eugênio sorriu com o gesto.

                Thomas riu de nervosismo e desviou o olhar, não sabendo exatamente o que dizer.

                — Eu só contei pra ele do meu currículo... Acho que ela se surpreendeu... — ele disse, sem modéstia nenhuma. Outro fator sobre Thomas que Eugênio percebeu com o tempo era que ele não era nada modesto. O que tinha de gentileza e hombridade, tinha de narcisismo e, bem, galanteio: flertava com muita elegância, mas nenhum pudor, com todas as mulheres que atravessavam seu caminho. — Sabe, contei que me formei muito cedo na London Street Academy e mais cedo ainda em Oxford, que sou fluente em sete línguas e...

                — Sete línguas? — Eugênio questionou, num tom recheado de malícia, segundas, terceiras, quartas e até quintas intenções. Thomas engoliu seco e ajeitou o colarinho da camisa — Quais? — ele questionou, tentando diminuir a tensão de suas últimas palavras e mudar de assunto, percebendo que não teria uma resposta sincera de Thomas quanto sua dúvida a respeito da tia.

                — Inglês, francês, espanhol, italiano, latim, romeno... — ele suspirou e olhou Eugênio no fundo dos olhos, flexionando seu maxilar com um olhar cheio de dúvidas, e disse: — e português — e nunca mais na história dos homens alguém dizer que era fluente em português foi o estopim para um clima tenso e uma atração de corpos tão grandes como naquele instante, naquela biblioteca e naquela cidadezinha. Tanto Eugênio quanto Thomas foram tomados por uma timidez e um medo condensador, que os fizeram recuar como animais assustados e tímidos, ignorando todos os sentimentos diversos e focando na realidade nua e crua — Enfim, ainda sobre Madame Bovary... — ele retornou a matéria o mais rápido que pôde, enfiando seus olhos no livro, enquanto Eugênio ainda o observava continuamente.

                Cassandra Kieran veio fazer uma visita à Gardenhall no finzinho da tarde, acompanhada de sua dama, Diana, uma donzela de cabelos vermelhos e rosto gélido. Lady Evayne mandou chamar Eugênio e Thomas para que pudesse apresentar o tutor devidamente à afilhada. Cassandra pareceu mortalmente enfeitiçada pela elegância e pela graciosidade de Thomas Blonte, com seus trejeitos galanteadores, sorrisos fáceis e distinta classe. Eugênio não pôde deixar de sentir uma pontinha de ciúme pela maneira que a srta. Kieran foi tratada pelo seu tutor, com todo galanteio e flerte digno de um cavalheiro. Não por ela, por óbvio, mas por ele.

                — Soube das novidades? — ela questionou enquanto tomavam chá. Lady Evayne respondeu que não havia ido na cidade naquele dia, então jazia alheia de tudo — Alguém deixou uma carta no Painel dos segredos— afirmou, com um olhar curioso e malicioso. Estava sentada ao lado de Diana, do lado esquerdo à tia, enquanto Thomas e Eugênio sentavam-se lado a lado, pela direita.

                Lady Evayne riu em tom de zombaria.

                — Que bobagem — afirmou, em desdém. Eugênio estava tão próximo à Thomas que podia sentir o calor que saía de seu corpo, bem como o cheiro salgado e doce de seu perfume — O povo de Collins não tem mais a fazer que ficar fofocando e espalhando segredos escandalosos?

                Cassandra riu e bebericou um pouco de chá.

                — A vítima dessa vez não foi propriamente um habitante de Collins, madrinha — afirmou curiosa — Escreveram sobre os Bellemont — Lady Evayne ergueu os olhos, surpresa, e encarou a afilhada. Não queria se dar ao desfrute e a deselegância de cobiçar uma fofoca, então permaneceu forçosamente desinteressada, mas torcendo para que Cassandra continuasse com suas palavras. — Disseram em forma de poesia. Meio dramático, não? Alguns versinhos dispersos e, para identificar o destinatário, deixaram uma hortênsia.

                Eugênio não compreendeu.

                — E no que a Hortênsia ajudou? — questionou. Thomas Blonte de empopou e tomou para si o dever de falar.

                — Ainda não chegamos nessa parte da história de Collins, senhor, mas, basicamente, as casas nobres dessa região têm flores como brasão... E, Gardenhall como o “grande jardim”,  é a maior de todas — afirmou, sorridente e cheio de si — Os Evayne são a rosa, como você sabe, os Bellemont são a hortênsia, os Moorebunch a dália, os Scarland a dama-da-noite, os Ravenswood a margarida, etc.

                Eugênio ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas desinteressado. Seu olhar de curiosidade e o calorzinho no coração advinham mais de ver Thomas exercer sua paixão com tanto âmago que de aprender algo novo.

                — Os Garden foram os primeiros a comandarem Gardenhall, os Evayne vieram depois, por casamento. Por isso nós somos a “rosa” e não simplesmente “o jardim” — Lady Evayne interveio, tentando se inteirar no assunto — Mas, enfim, o que dizia o tal poema? — questionou, curiosa. Cassandra sorriu e desembrulhou um papel.

                — Tive de pedir para que Diana anotasse para mostrar à mamãe mais tarde — afirmou.

                — Muito bonita e elegante sua caligrafia, senhorita — Thomas disse, com um sorriso sagaz. Eugênio observou os dois extremamente tímidos, e não imaginou o contexto romântico e sedutor que envolvia um mero elogio à caligrafia para os ingleses.

O belo se casou com a Fera,

Mas dela decidiu fugir,

Todos, então, deverão correr

Quando ela decidir rugir.

...

A Fera ficou desamparada,

Sem fundos para gastar.

Depois de ter sido abandonada

Vendo todo seu dinheiro acabar.

                — Que terrível! — foi tudo que Lady Evayne pôde expressar. Eugênio não se compadeceu da Lady que outrora lhe tratara com indiferença e arrogância quando na ausência da Tia, então fingiu que se importava, mas teve de segurar o riso quando a menção à fera foi recitada — Extremamente terrível! A situação de Lady Bellemont é muito delicada...

                Cassandra arregalou os olhos.

                — Então é verdade? Madrinha, não nos esconda nada. Estamos entre amigos — afirmou. Lady Evayne suspirou e olhou ao redor, descontente.

                — Bem, sim — afirmou, entristecida — Georgina Bellemont perdeu quase tudo. John Bellemont fugiu de Collins, com a desculpa que estava indo viajar a negócios, e nunca mais voltou. Quando Lady Bellemont deu por si a fortuna de sua família havia desaparecido — disse, por fim — Mas era um segredo, ninguém sabia além da própria e umas poucas pessoas. Como alguém descobriu? E pior! Teve a coragem de expor assim! Pobre mulher... Pobre mulher...

                — Agora literalmente — Eugênio deixou escapar. Os presentes à mesa lhe encararam, incrédulos. Cassandra e Thomas fizeram um esforço ímpar para não rirem diante de Lady Evayne. — Sim, uma coitada! Deus a proteja de demais desgraças! — ele afirmou, tentando consertar o próprio equívoco. Sentiu um tapinha astuto em sua perna e quando olhou para o lado viu Thomas com um olhar de reprimenda, misturado com uma comicidade sem igual. Como se dissesse: não fale mais isso, mas foi engraçado. O toque de Thomas enfeitiçou Eugênio. Lady Evayne tintilou as xícaras e deixou o assunto para lá.

                — Devo fazer uma visita à Lumesfera o mais rápido possível — afirmou, pensativa — Dar alguns conselhos e ajudar Lady Bellemont nesse momento tão delicado... — disse, depois encarou Cassandra e Diana — Cassandra, querida, se importaria de me fazer companhia? Sinto que Thomas tem muito trabalho para frente com José Eugênio por hoje...

                Thomas quase engasgou com o chá, mas se recompôs, e sorriu para sua Lady. Eugênio forçou um sorriso de aceitação. Cassandra estava mais que dispostas a acompanhar a tia naquela visita inquisitorial, levando toda grandeza e sapiência de Lady Macbeth para as almas aflitas de Lumesfera — e, é claro, para poderem tripudiar e fofocar da Fera. Diana a aguardaria em Gardenhall.

                Eugênio desceu até a cozinha pela primeira vez desde que chegou à Gardenhall. Encontrou Elizabeth, distraída, mexendo nas panelas. Estava absolutamente encantado com tudo, como no seu primeiro dia na abadia, olhando todos os detalhes da construção, os móveis, os objetos e afins. Quando a garota deu por sua presença se assustou e deixou uma das panelas cair, ofegante.

                Eugênio se aproximou, pegou a panela e entregou para a garota, que, com muita desconfiança e com um olhar apavorado, pegou, forçando-se a manter uma distância de Eugênio, que não entendia muito bem o porquê de tanto medo. Sorriu pra ela e estendeu sua mão.

                — José Eugênio, muito prazer, senhorita — ele disse, por fim, com toda educação do mundo. Elizabeth, contudo, não apertou sua mão, lhe olhou de cima a baixo e caminhou para o outro lado da cozinha. Eugênio engoliu seco, envergonhado, e coçou a nuca — Você sabe onde está o Archie?

                — Archie? — ela repetiu num tom irritado — Archibald. Archie é para os amigos — afirmou. Eugênio cerrou os olhos, levemente mais irritado, mas tentando manter a compostura.

                — Somos amigos — respondeu num tom de desafio. Elizabeth sequer conseguia olhar em seus solhos, dando-lhe as costas e fingindo mexer em outras coisas nas prateleiras da cozinha.

                — Ele é seu valete, nada mais que isso — ela respondeu amargamente. Eugênio engoliu seco e estava pronto para sua tréplica, quando Lilya e a Sra. Swan entraram na cozinha e se surpreenderam com sua presença (Bem como com o clima tenso que ali pairava).

                — Senhor Eugênio! — Lilya disse, num tom de voz carismático, tentando cortar o que quer que estivesse de ruim ali na cozinha — Finalmente podemos nos conhecer! Sou Lilya Jepsen, governanta de Gardenhall — ela disse, estendendo a mão para o jovem, que a apertou com muita alegria, ignorando o desgosto que passara outrora com Elizabeth — Estas são Sra. Swan, nossa cozinheira, e Elizabeth, sua ajudante — a sra. Swan, levemente tímida, se aproximou e cumprimentou Eugênio, enquanto Elizabeth se manteve distante. Lilya engoliu seco, desconcertada — Mas o que faz o senhor na cozinha? — questionou, tentando mudar o assunto.

                — Archie. Vocês o viram? — questionou, ignorando a existência de Elizabeth tal qual ela ignorava a sua.

                — Estava ajeitando algumas garrafas de vinho na adega — afirmou Lilya, sorridente — Precisa de ajudar em algo?

                — Não, só precisava falar com ele — era impossível esconder o descontentamento, mas Eugênio se esforçou. Sorriu, cumprimentou as sras. novamente e deixou a cozinha, no caminho indicado por Lilya que levava à adega.

                Lilya encarou Elizabeth possessa de ódio.

                — Você ficou louca? — questionou, irritada. Elizabeth deu de ombros. A sra. Swan chacoalhou a cabeça em descrença.

                — Menina, que tipo de atitude é essa? Senti que você vomitaria em Lorde Eugênio — a cozinheira disse, surpresa — O que ele lhe fez de tão grave? — questionou. Elizabeth franziu o cenho e encarou as senhoras, com um olhar amargo.

                — Veio para Gardenhall. Isso que ele fez — depois, atirou as panelas na pia com uma raiva incólume e correu da cozinha, deixando Lilya irritada e sra. Swan assustada.

                Enquanto descia as escadarias que davam para o porão e a adega, Eugênio atravessou um corredor escuro e gélido, com uma brisa primaveril levando seus cabelos. Então, apesar da sensação claustrofóbica, sentia que em algum lugar havia alguma entrada para o vento e a luz solar. Continuou seu caminho silenciosamente, observando atentamente as paredes com medo de se deparar com algum rato, barata ou ser do tipo.

                Em um instante de caminhada ouviu sons estranho, mas obviamente humanos. Curioso, seguiu o barulho a procura de sua origem.

                Num dos cantos escuros dos corredores encontrou Thomas Blonte beijando ferozmente a srta. Diana, dama de companhia de Lady Cassandra. A moça parecia uma leoa abocanhando uma gazela — já que o professor se mantinha tímido, elegante, mas igualmente sensual no ritmo da carícia. Estavam recostados sobre um móvel empoeirado, com ele sentado e ela sobre seu colo, mordendo seu pescoço e enfiando as mãos sob sua blusa. Eugênio engoliu seco e sentiu seu coração se acelerar — sem saber exatamente o que sentia, se era ciúme, inveja ou desejo. Os braços de Thomas Blonte estavam a mostra, bem como seu peitoral e seu pescoço cheio de veias saltantes pelo calor do momento. Diana parecia a ponto de morder e arrancar um pedaço da carne de Thomas, que tentava acompanhar o ritmo da moça, mas as vezes falhava.

                — Espere, espere — ele disse, enquanto ela lhe envolvia com um beijo que terminou com uma mordida no seu lábio inferior — Pare! — ele ordenou. Diana se assustou e se afastou levemente. Thomas alisou o próprio rosto, envergonhado — Não posso fazer isso aqui.

                — Por que não? — ela questionou, com um olhar serpentino e envolvente, enquanto acariciava os braços fortes de Thomas — Você mesmo insinuou que precisava disso.

                Thomas suspirou.

                — Sim, eu precisava — afirmou, pensativo, mais para si mesmo que para a moça — Mas... — ele parou um instante e se recompôs, suspirou, fechou os olhos e pareceu refletir —Que seja — afirmou. Em seguida, envolveu Diana num abraço selvagem e consumiu seus lábios como uma fera voluptuosa e esfomeada.

Nesse instante, todavia, assistir a cena deixou Eugênio levemente nauseado, mas não menos esperançoso ou apaixonado. Deixou seu esconderijo atrás da parede escura e caminhou para longe dali... Mas, então, parou e pensou: por que simplesmente deixá-los em paz? Riu diabolicamente, procurou bem pelo lugar uma pedra grande o suficiente, achou, a agarrou e atirou com toda força contra uma das janelas do corredor, fazendo um estrondoso som que assustou os dois amantes, interrompendo suas carícias, talvez para a alegria de alguns — lê-se, aqui, que não falo de Eugênio. Não apenas dele — e desgraça de outros

José Eugênio correu do corredor escuro e só parou quando deu de cara com Archie Sprout numa sala com parede de pedras, num lugar gélido como as noites inglesas. O valete se assustou e arregalou os olhos, enquanto Eugênio sorria sem um motivo aparente.

— Senhor? O que houve? — ele questionou, por fim, enquanto segurava uma garrafa de vinho, diante de prateleiras e mais prateleiras cheias delas.

— Archie! Nada! — Eugênio respondeu, sorrindo — Estive te procurando. Soube de Lady Bellemont? — questionou. Archie suspirou e voltou a seu trabalho de limpar as garrafas, enquanto conversava com Eugênio.

— Sim, uma desgraça — afirmou, compadecido — Pior ainda foi a maneira como resolveram contar sobre seus problemas... — ele suspirou e pegou outra garrafa empoeirada. Eugênio se aproximou, pegou uma flanela e começou a ajudar o valete no trabalho — Senhor, por favor, não faça isso... Não é prudente e... — mas Eugênio já estava fazendo, com um olhar perspicaz e irredutível, para a tristeza de Archie, que sabia não haver como medir forças.

— Achei que aquele painel não estava mais em uso, como você disse — ele afirmou. Archie ergueu as sobrancelhas.

— E não estava — respondeu, observando atentamente o trabalho de Eugênio — A última vez que alguém expôs alguma “vergonha” no painel faz dois ou três anos... Inclusive, ironicamente, foi sobre Stephan Callum.

— Stephan Callum? Quem é esse?

Eugênio deu uma boa olhada na garrafa que tinha em mãos, deu de ombros, sacou a rolha e se sentou num banquinho na adega, dando uma bela goleada no vinho. Archie arregalou os olhos, surpreso, e quase perdeu o queixo de tão baixo que ele caiu.

— Se você não contar eu não conto — Eugênio disse, oferecendo à garrafa para Archie, que a tomou com muita desconfiança, suspirou, e bebericou um pouco do vinho. O brasileirinho riu baixinho — Assim podemos começar devidamente nossa amizade...

Archie estalou o pescoço, suspirou e se sentou ao lado de Eugênio.

— Se meu pai me visse agora ele me mataria... — afirmou — Que belo valete eu sou.

Eugênio riu.

— Se meu pai me visse agora... Ele provavelmente não me veria, pois esqueceu que eu existia — afirmou, num tom exageradamente cômico para um assunto tão delicado — Agora beba e me conte. Lembre-se que também não sou um exemplo de Lorde.

                Archie coçou a nuca.

                — Stephan Callum é o segundo na ordem de sucessão de Gardenhall... É o primo de uma prima de Lady Evayne — afirmou, com um tom que dava pra enxergar descaradamente que ele não simpatizava com o tal homem — É um homem deplorável, se me permite dizer.

                — Permito sim, adoro falar mal de quem pode roubar meus direitos sucessórios — ele respondeu ironicamente, arrancando um riso de Archie — Então valetes também podem rir? Que alegria! Conte-me mais sobre o tal desgraçado — debochou. Archie revirou os olhos e entregou a garrafa para que Eugênio bebesse um pouco do vinho.

                — É ganancioso, orgulhoso, narcisista, arrogante e muito burro — afirmou, sem meias palavras ou meios sentimentos. Eugênio bebeu mais um pouco de vinho — Tentou tomar Gardenhall a força, exigindo seu direito de nascença, com Lorde Evayne ainda vivo, inclusive, dizendo que ele estava fraco e debilitado para governar uma casa. Foi nesse dia que descobrimos que o direito de nascença que ele tanto invocava não era dele, mas seu. Foi uma surpresa geral, principalmente quando foi exposto que o senhor morava no Brasil. Stephan Callum tentou de todas as formas usurpar o título, mesmo após saber que não lhe era devido, só parou quando uma carta anônima, endereçada à um certo senhor dos Cravos contava, em detalhes íntimos e minuciosos, que Stephan Callum vinha tendo um caso com uma certa senhora de família nobre — Archie riu — Ele fugiu de Gardenhall com roupas de baixo! Roupas de baixo de verdade, no sentido literal, perseguido pelo marido dessa senhora... — o riso de Eugênio foi tão intenso que ele acabou cuspindo um pouco de vinho, não conseguindo se controlar. Archie o acompanhou na gargalhada. — Depois disso ele deixou Collins e não apareceu mais, com medo de levar um tiro ou dois de aviso. O próprio pai, Sr. Callum, o excomungou, pois era muito amigo de Lorde Evayne. Mas agora...

                Por algum motivo Archie se conteve no que pretendia dizer e esboçou um olhar pensativo. Eugênio ficou sério, levemente preocupado, e observou o amigo.

                — Mas agora o que?

                Archie deixou a garrafa de lado, se levantou, pegou a flanela e voltou a seu serviço.

                — Não duvido que ele dê as caras em Collins novamente — afirmou, irritado — Então aguarde por um homem com o queixo maior que o próprio rosto contestando seu direito inexistente como herdeiro da rosa.

                — Não tenho medo de homens arrogantes — Eugênio afirmou, confiante — Ainda mais quando tenho direito natural e a lei do meu lado.

                Archie lhe olhou, preocupado.

                — Bem, eu tenho medo. Pelo senhor e por Lady Evayne. Não sei que artimanhas esse vigaristazinho pode usar pra tentar conseguir o que quer — afirmou. Eugênio deu de ombros e sorriu, dando um tapinha na perna do amigo. — Ele é burro, muito burro, mas imprudente. E nas pessoas imprudentes e burras reside o maior perigo.

                — Ele tem suas artinhas... Eu tenho as minhas — e sorriu, bebendo um pouco de vinho — Sabe, no navio para Inglaterra ouvi duas francesas comentando sobre a moda. Ambas juravam que a cor da estação seria o branco — Eugênio sorriu, confiante — Bem, eu duvido.

                 Archie arqueou as sobrancelhas, confuso.

                — Não entendi — Eugênio riu, se levantou e deu um tapinha nas costas do valete.

                — Eu imaginei. Você precisaria de um pouco mais de melanina pra isso, meu amigo — afirmou.

Elizabeth atravessou o vilarejo com muita pressa, chegando a um casebre de pedra, relativamente elegante, mas com aparência de abandonado. Abriu as portas rapidamente e adentrou, observando atentamente se havia alguém para testemunhar seus atos.

                — O que houve? O que faz aqui tão cedo? — o homem perguntou, com um olhar assustado. Tinha cabelos loiros como palha, olhos azuis ciano e um queixo relativamente grande. Estava praticando caligrafia numa mesinha no canto do casebre.

                — Precisei espairecer — ela afirmou, suspirando aliviada, enquanto alisava seu rosto suado da corrida — É difícil conviver com o negrinho usurpador — disse, por fim. O homem se levantou e a envolveu no abraço.

                — Vai valer a pena, querida — afirmou, dando-lhe um beijo seco no rosto — Assim que ele sair de cena e Gardenhall for para o herdeiro legítimo... E então seu Stephan será o Lorde das Rosas... E você minha Lady — e sorriu. E sorriram. Como dois diabos diante da maldade.


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