Mais uma chance escrita por Sereia de Água Doce


Capítulo 4
Quatro




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—A vida de vocês foi tirada cedo demais, então nada mais justo do que devolvê-la. Vocês três estão tendo a oportunidade de voltarem a serem vivos, irão aceitar?

Os três se entreolharam assustados e animados, mas antes que pudessem dar uma resposta, Daniel temeu a forma que voltariam.

—E como exatamente seria a volta?

—Todas as pessoas que tiveram contato quando vivos não se lembrarão mais de vocês, para não ter problemas com a ordem natural. Vocês voltarão como estavam exatamente 30 anos atrás, com a idade física e biológica de 17 e 18 anos. Novas certidões de nascimento serão emitidas e vocês terão toda a liberdade de correrem atrás do que estava destinado a serem de vocês. Daniel, Félix e Martin, vocês aceitam a oportunidade?

 

Daniel se animou por poucos momentos, mas seu nervosismo era tanto que apenas pensava em Julie. Ele era confiante o suficiente para crer que conseguiria conquistá-la mesmo que não se lembrasse dele, mas os Insólitos estariam arruinados se ela não acreditasse que tinham potencial para serem uma banda.

—Então Julie…. - A tristeza estava estampada em sua face.

—Ela não te conhecia enquanto estava vivo, idiota! - Demétrius seguiu a linha de pensamento do outro fantasma, sentindo suas bochechas corarem e seu coração se apertar ao ver a felicidade chegar até o rosto de Daniel. Parecendo uma criança em manhã de Natal, Daniel se virou para os dois amigos e juntos balançaram a cabeça, concordando freneticamente com a chance.

—Aceitamos, é claro que aceitamos!

—Ótimo! A papelada será feita enquanto vocês se acomodam. Eu sugeriria um lugar seguro e confortável, a noite de vocês não será nada boa.

—O que quer dizer com isso?

—Bem, vocês precisam nascer de novo, não? E uma vez que não exista mais seus corpos, eles precisam ser refeitos.

—Vamos ser Zumbis!?

—O quê? É claro que não! A formação da matéria não é um processo confortável e duvido muito que gostariam de aparecer do nada na rua! Vão logo para aquela loja de discos de uma vez, rapazes! - Demétrius fez pouco caso com sua mão, dispensando os três fantasmas.

Eles não tinham como agradecer ao que o mais velho havia feito. Demétrius os odiava e mesmo assim foi quem os devolveu a vida.

—Obrigado. - Daniel sussurrou antes de se teletransportarem para a loja de discos. Klaus não estava no momento, mas não se importaria com a presença deles nos fundos da loja.

Ainda era cedo, não chegava a ser nem sete da noite. Eles chegaram, viram o aviso de volto logo na porta e se acomodaram nos fundos da loja. Foram cerca de quinze minutos achando que tinha sido enganados por Demétrius - já estando até mesmo pensando em uma vingança por ele ter brincado com seus sentimentos - quando Félix começou a se sentir meio enjoado.

—Eu não tô me sentindo muito legal, gente…

Mas Félix era ansioso e hipocondríaco, podia estar facilmente impressionado com a situação.

—Eu sinto como se eu fosse vomitar… - Félix estava mais pálido do que o'normal.

—Félix, senta aqui no chão e tenta relaxar. Demétrius brincou com a gente mais uma…. - Daniel acomodou o amigo.

—Daniel, eu não tô me sentindo bem… - Martin se queixou com uma expressão de dor em seu rosto, sentindo sua espinha queimar. Ele se jogou no chão e tentou ficar imóvel e não emitir nenhum som, mas estava incomodando muito.

Daniel estava preocupado com seus dois amigos. Se aquilo fosse verdade, eles estavam renascendo, mas porque ele não sentia nada? Frustrado com a situação, ele cuidou dos dois amigos por cerca de dez minutos até sentir uma pontada em seu coração. O ar lhe faltou - mesmo que não respirasse mais sentiu como se tivesse faltado - e o fez cair de joelhos, derrubando o que quer que estivesse por perto. Foram alguns minutos imóvel, sentindo o frio do chão e se acostumando com o que estivesse acontecendo até que o primeiro grito soou.

—AAAAAAAHHHHHHH!!!!!!!!!! - Félix berrou com todo o seu pulmão, apertando o seu estômago e se encolhendo contra a parede.

—AAAAAAAAAAAHHH!!!!!!!!! - Sendo seguido por Martin que fechava seus olhos com força e chorava de dor que subia pela sua espinha.

Daniel não teve forças de gritar. Ele sofreu os primeiros minutos com um sorriso no rosto, apenas completando o coro histérico quando não pôde suportar mais.

Klaus voltou a sua loja não muito tempo depois, estranhando a presença de tantas pessoas na frente das vitrines, tentando olhar para dentro.

—Aconteceu alguma coisa? - Ele perguntou preocupado.

—Alguém está passando muito mal aí dentro, os gritos são assustadores!

Klaus temeu o que pudesse estar acontecendo, já que não havia ninguém em sua loja. Abrindo as portas com velocidade, ele foi até os fundos com alguns curiosos o seguindo para simplesmente fugirem da loja com a  convicção que ela era assombrada - já que não havia ninguém no recinto. 

Mas Klaus conseguia enxergar muito bem os três fantasmas no chão do pequeno quartinho da sua loja. Ele tentou ajudar, mas não tinha ideia do que fazer.

—Não mexa neles. - O fantasma baixinho de sobretudo avisou.

—Quem é você?!

—Demétrius, sem prazer nenhum em conhecer você.

—Você fez isso com eles?!

—Sim. Não aconselho você a se aproximar pelas próximas… Quatro horas.

—O que diabos está acontecendo com eles!?

—Estão renascendo.

Klaus tinha uma expressão muito confusa em seu rosto.

—Eles são fantasmas, estão mortos!

—Eram fantasmas! Eles morreram por um erro e estamos corrigindo isso. Foi oferecida uma oportunidade de voltarem a vida e eles aceitaram. O corpo deles está sendo reconstruído do nada, por isso os gritos.

Martin foi o primeiro a cair na inconsciência, sendo seguido de Félix, enquanto Daniel continuou a gritar e se lamentar por mais uma hora e meia. Ele se recusava a se deixar levar, precisava sentir que estava voltando a vida, aguentando com prazer mórbido o crescimento de todas as suas células, órgãos internos e ossos, sentindo sua alma se acoplar ao seu novo corpo. Foi somente quando seu coração deu a primeira batida que ele não suportou mais e desmaiou assim como seus melhores amigos, permitindo que a loja de discos ganhasse paz mais uma vez.

Demétrius permaneceu todo o tempo com os rapazes, garantindo que eles voltassem a vida e não o chantageassem mais. Ele tinha instruído Klaus a voltar com uma refeição leve e água gelada dentro de quatros horas. 

Um minuto para cada mês de vida que tiveram, mais a gestação deles.

213 minutos para Daniel e Félix.

225 minutos para Martin.

Apesar de terem levado quatro horas para aparecerem fisicamente, vivos e respirando, levaram cerca de mais um dia para despertarem tamanha exaustão que o novo corpo deles estava. Félix foi o primeiro a abrir os olhos, incomodado com a luz do final do dia. Ele levantou sua mão esquerda até a altura de seu rosto e estudou a sombra que  a pouca luz fazia em seus dedos, brincando com eles e sorrindo ao sentir seu coração se acelerar de empolgação. Ele tentou se levantar, mas estava fraco demais. Seus gemidos chamaram atenção de Klaus que veio imediatamente até os fundos, arregalando os olhos ao notar os três adolescentes estirados no chão. Ele correu até Félix, o ajudando a se sentar e pegando um copo de água e fazendo ele dar pequenos goles.

—Isso, isso. Muito bem… Assim mesmo…. - Félix se sentia enjoado pelo conteúdo de seu estômago, procurando a parede para se escorar e se manter acordado.

Daniel foi o próximo a despertar, minutos depois de Félix. Ele se engasgou assim que abriu os olhos, sentindo o seu peito doer ao respirar suas primeiras lufadas de ar consciente. Então era assim ter oxigênio em seu corpo? Com a garganta seca, ele também tentou se levantar, tendo dificuldades e sendo amparado por Félix que já se sentia mais forte. Mesmo deitado escorado no amigo, Daniel começou a chorar copiosamente olhando para as suas mãos.

—Vivos, Félix…. Estamos vivos…. - Ele não tinha forças para se exaltar, apenas sussurrar.

A palidez mórbida não existia mais, assim como as olheiras profundas em seus olhos. Sua aparência era saudável, como a de um adolescente normal.

—E você tem barba. - O moreno implicou com o loiro, ainda o amparando e ajudando a tomar goles d’água.

Quando Klaus chegou, ajudou os dois rapazes a se alimentarem, ordenando expressamente que descansassem, e assim o fizeram.

Mas alguma coisa os incomodava: os dois estavam despertos a pelo menos duas horas e meia e nada de Martin acordar.

—Será que ele não conseguiu? - Félix se preocupou.

—Nós o estamos vendo, ele conseguiu o corpo de volta.

—Mas e se ele não resistiu? Aquilo dói pra caramba!

—Ele não pode ter feito isso…. - Daniel se preocupou, chegando perto do amigo e conferindo a sua pulsação.

—Ele ainda está vivo.

—Então porque não acorda?

—Vocês se esquecem - Demétrius apareceu para os dois - Que ele era o mais velho de vocês dois. Seu renascimento foi o mais demorado, logo, ele tem o direito de demorar mais a acordar.

—Demétrius? Pensei que nos quisesse longe;

—E eu quero, por isso os trouxe de volta à vida. Espero que fiquem fora do meu caminho por muito tempo.

— E o que está fazendo aqui ainda?

—Garantindo que continuem vivos. E alguém tinha que avisar ao dono do estabelecimento sobre a aparição de três adolescentezinhos.

Arg…. - Martin gemeu, chamando atenção dos dois.

—Martin?

—Martin?

Aquelas duas vozes o chamavam para a realidade, mas e se ele as ignorasse? Estava tão calmo em seu cantinho….

—Martin?

Ele só queria silêncio… Era pedir muito? Era só fingir que não ouvida aqueles chamados e fechar os olhos, ninguém iria perturbá-lo se continuasse quieto...

—Ah, não! Você não vai voltar! - Demétrius se irritou, empurrando o que quer que fosse para o corpo de Martin de novo.

—Demétrius?! - Félix se apavorou.

—Continuem chamando ele! Ele não vai morrer de novo!

—Como é que é?!

—SÓ CHAMEM ELE, SEUS IDIOTAS! VOCÊ NÃO VAI VOLTAR, MARTIN!

—MARTIN!- Daniel começou a chacoalhar o amigo.

—MARTIN! - Félix chamava seu nome alto, na esperança que eles os escutasse.

—MARTIN!

—MARTIN!

—ESSE IDIOTA ESTÁ SE ESFORÇANDO MAS NÃO VAI CONSEGUIR ESCAPAR! - Demétrius continuava fazendo força contra o corpo de Martin, impedindo que seu espírito saísse.

—MAAAAARRTIIIINNNNN!!!!!! - Daniel e Félix berraram ao mesmo tempo nos ouvidos do loiro, fazendo ele arregalar os olhos e se sentar rapidamente, quase desmaiando pela velocidade em seguida.

—Me….. Me cha…. chamaram? - Ele perguntou, apoiando-se em Félix, que impedia que ele desmaiasse de novo.

— O que aconteceu aqui, Demétrius?! - Daniel questionou enquanto buscava água para o amigo.

—Ele não estava conseguindo se prender ao seu corpo. Ele não queria voltar.

—Mas… Ele concordou….

—Mas teve dificuldades em voltar. Agora que ele acordou, não deixem que ele durma nas próximas horas. Tenham certeza que ele está bem e que não vai se desprender.

—E como vamos ter certeza disso?

—Leva cerca de três dias para se readaptarem. Se ele não tiver mais nenhuma recaída nesse período, vocês podem sair e ver a amiguinha de vocês. Mas primeiro tenham  certeza de que estão todos bem.

—Nós…. nem temos como agradecer você, Demétrius.

—Só desapareçam da minha vida. - Demétrius fez pouco caso e desapareceu, deixando os rapazes sozinhos.

—O que… O que vamos… Fazer… Agora? - Martin ainda estava desestabilizado pela volta repentina.

—Descansar. - Daniel decretou. - Se é o que temos que fazer para garantir a nossa vida, vamos fazer isso.

—Mas e depois disso, Daniel? Não podemos continuar a morar na Edícula! - Félix tinha pensando naquilo durante as duas horas que estiveram acordado.

—Podemos dividir um apartamento. Procuramos empregos e moramos juntos, como nos velhos tempos!

—Nessa altura eu não sei se você está se referindo aos trinta anos que passamos juntos ou naquele ano e meio que ensaiávamos na edícula do Félix. - Martin brincou, respirando com mais calma e apreciando as batidas do seu coração.

—Daniel, não temos um diploma. Como vamos conseguir um emprego se não terminamos nem o ensino médio?!

—Com licença, garotos… - Klaus bateu à porta. - Já estou de saída, só queria confirmar se está tudo bem com vocês.

—Acho que conseguimos nos virar aqui por hoje a noite. - Félix respondeu.

—Mas e depois? Já tem onde ficar?

—Estávamos discutindo isso exatamente agora. Daniel sugeriu que arrumassemos empregos e dividirmos um apartamento, mas eu lembrei que não temos certificação do ensino médio.

—Não sei se vai adiantar de muita coisa, mas esses papéis acabaram de aparecer no balcão.

Klaus entregou para os rapazes carteiras de identidade, CPF’s e certidões de nascimento, todas datadas do mesmo dia.

—Vou continuar fazendo aniversário na mesma data de antes.  - Martin decretou.

—Nenhum diploma. - Daniel constatou. - Vamos precisar arrumar um então. Klaus, me desculpe a pergunta descarada, mas seria muito incômodo ficarmos aqui durante o período do supletivo e até arrumarmos um emprego? Sei que não é um kitnet, mas é o único lugar que temos além da edícula.

—De forma alguma, rapazes! Podem ficar o tempo que precisarem.

—Muito obrigado, Klaus. E por favor….

—Não vou contar a Julie, pode deixar. Mas precisarão ficar escondidos durantes as tardes.

—Não tem problema, serão só três dias.

—Se é assim já vou indo então. Tem comida e água no frigobar na copa e o banheiro é no final do corredor. Tem cobertores e travesseiros no armário e vou ver se consigo alguns colchões essa semana. 

—Vamos cuidar de tudo para você, Klaus! - Félix respondeu alegremente.

—Bem vindos de volta à vida, rapazes.

Klaus desejou antes de deixá-los sozinhos e trancar a porta.

Eles finalmente tinham conseguido.

Estavam mais vivos do que nunca.


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