Receptáculo escrita por Meredith Grey


Capítulo 4
Capítulo III | Órfã




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Quando cheguei à livraria, observei o letreiro que dizia “Livraria Duncan”. Muito original, hein. Logo vi o senhor Duncan vindo em minha direção, com uma expressão animadíssima.

         - Charlie, Charlie! Nossa, como você cresceu!

         - É bom ver o senhor também. Como vai o negócio?

         - Muito bem. Olhe só este lugar! Em alguns meses estaremos prontos para abrir uma filial.

         - Estou feliz pelo senhor. E a senhora sua esposa?

         - Muito bem também. Está grávida! Você devia visitá-la. Que tal jantar lá em casa um dia desses?

         - Claro que sim. Mas agora, se não se importa, pode me mostrar minhas funções?

         - Você não mudou nada, Charlie. Responsável como sempre. Gosto disso em você, tenho certeza que será uma ótima funcionária. Bem, você vai ficar no caixa. Venha, vou te mostrar.

         - Sim, senhor Duncan.

         - Me chame de Josh.

         Achei um pouco estranho ele me dar essa intimidade, então fiquei em silêncio e apenas assenti com a cabeça. Preferia – e decidi que iria – chamá-lo de senhor. Ele me mostrou como eu deveria trabalhar, como usar o sistema do computador, entre outras coisas. Trabalhei a tarde inteira sem problemas, e apesar de estar cansada, não reclamei de nada.

O resto da semana foi bom. As garotas passavam quase todo o tempo comigo, e isso me deixava um pouco melhor. Na faculdade, eu tinha Nicholas, conversávamos sobre muitos assuntos. Mas o que me impressionava é que ele não me fazia perguntas pessoais. Respeitava os limites. Os detalhes iam surgindo involuntariamente, e íamos nos conhecendo pouco a pouco. Estava também trocando alguns e-mails com Em, que me contava sobre a nova vida em Nova York. Ela andava muito ocupada, por isso parei de incomodá-la com mensagens de texto. Minha mãe ligava todos os dias e, vez ou outra, eu falava com meu pai. Também trabalhava à tarde e tinha que me acostumar com o senhor Duncan tentando ser meu grande amigo.

         Já era sexta-feira novamente, eu precisava ir fazer algumas compras.

***

Estava em minha caminhonete, voltando do supermercado, quando vi que algo estava acontecendo em frente a uma cafeteria. Polícia, emergência, aglomeração de pessoas. No meio de tanta confusão, reconheci alguém. Decidi então parar para saber o que estava acontecendo.

— Sarah? O que houve?

         - Horrível! Horrível! Eu sabia que Julie iria morrer! – Não a havia visto de frente, mas quando ela virou, percebi seus olhos vermelhos de tanto chorar.

         - Julie morreu? Ah, meu Deus! Como assim? - eu estava chocada.

         - Ela simplesmente não me ouviu! Aquele cara deve ter feito alguma coisa com ela! Não deveríamos ter nos separado! Ela devia ter ido comigo ao banco!

         - Como ela morreu? – Eu estava perdida. Ela não me respondia com lógica. – Acalme-se e me conte.

         - Havia um cara, de sobretudo. Ela estava dizendo que ele a perseguia, mas de repente, sumia, assim, do nada. Tenho certeza que foi ele. – Soluços. – Os policiais disseram que ela sofreu um ataque cardíaco, mas não é o que eu acho. Íamos nos encontrar aqui, para tomar um café, logo depois de eu pagar umas contas. Eu sei que foi o cara de sobretudo! – Ela entrou desesperadamente em prantos.

         - Calma, calma. Quer que eu te leve pra casa?

         - Faria isso por mim? Estou completamente sozinha! Eu e Julie viemos de Rhode Island para estudar e agora não tenho ninguém – Eu não estava preparada para tantas lágrimas.

         - Claro, mas não chore. Já deu seu depoimento aos policiais?

         - Já.

         - E contou sobre o cara?

         - Eu queria, mas... Eles não acreditariam em mim. Ataque cardíaco, lembra? Eles vão me ligar se precisarem de mais alguma informação.

         - Era o que eu ia dizer. Vamos, entre no carro.

         Ela estava realmente mal. E eu não sabia o que dizer. Era algo fora do meu alcance, eu não sabia muito bem como consolar alguém ou dar uma palavra de apoio. Essa era mais uma de minhas fraquezas.

         Minha primeira semana naquela cidade e já estava ocorrendo confusão e morte. Mas que droga será que estava acontecendo? Era para ser meu novo início, e não mais uma confusão em que eu iria me meter. É, sempre soube que não tinha sorte.

Estávamos no apartamento dela e ela me ofereceu algo para beber. Preferi água. Ela bebeu uma cerveja tão rápido que nem pude acompanhá-la.

         - Acho que vou voltar para a casa de meus pais – disse Sarah, com a voz trêmula.

         - Mas você não está na universidade?

         - Posso parar por uns tempos. Sozinha é que não posso ficar.

— Posso lhe fazer companhia – disse eu, cordialmente.

         - Você é um anjo, Charlie. Tive sorte em conhecer você.

         - Imagine. Preciso levar umas coisas pra casa, quer vir comigo?

         - Obrigada, mas estou bem – Afirmou. Talvez ela só quisesse deixar as lágrimas rolarem sem uma platéia para ficar lhe dizendo “não chore” quando o que ela mais queria era chorar, ou talvez fosse o que lhe fizesse melhor.

         Perder a melhor amiga é triste. Já me sinto praticamente “órfã” sem Em por perto, pense se ela... Não queria nem cogitar isso.

         Sarah estava traumatizada com a morte de Julie. Ela realmente achava que um homem a havia assassinado, mas pelo que entendi, a morte foi por ataque cardíaco, ou em termos modernos, morte fulminante. Não vejo como alguém consiga matar uma pessoa desse modo, se bem que esse tipo de morte está comum entre os jovens. Talvez ela só tenha experimentado uma droga e não estava preparada. Mas não posso tirar conclusões precipitadas, então esperei a autópsia. Eu tinha que ficar ao lado de Sarah, ela era a única com quem eu podia contar, e isso era mútuo.

         - Eu insisto – Eu não era do tipo que mudava de ideia tão fácil. - Não posso deixá-la sozinha, não desse jeito. Só se quiser que eu a obrigue, hm... fazendo cócegas.

         Tirei, enfim, um sorriso bobo de seu rosto. Missão cumprida.

         - Ok, ok, estou levantando. – Ela riu baixinho. Ri também, num tom mais alto.

         Saímos do apartamento dela e permanecemos em silêncio desde então. Era bom. Eu não gostava de ficar dando detalhes de minha história, embora quisesse saber a história dela. Eu gostava de ouvir, gostava de histórias, era fascinante saber. Tive tempo de arrumar tudo, enquanto ela ficou sentada na poltrona no canto da sala. Passaram-se algumas horas, mas ela continuava lá, com sua expressão vazia, olhando para o chão, como se não estivesse pensando em nada.

         - Ei, Sarah, quer comer? Estava pensando em preparar um bom jantar com essas coisas que comprei.

         - Não, obrigada. – disse ela. Fria, triste, a voz baixa.

         - De qualquer modo vou fazer, então...

         - Ok. – disse quase que suspirando, puxou as pernas para cima da poltrona e colocou a cabeça sobre os joelhos.

         Liguei as bocas daquele velho fogão e imaginei que eu deveria parar de reclamar e agir. Crediário existe para isso mesmo, não é? Vou comprar móveis novos, pensei.

         Percebi a angústia de Sarah. Mesmo que eu a consolasse, não seria de uma hora para outra que ela melhoraria. Quando chegamos em casa, ela sentou-se no mesmo lugar, aquela poltrona velha e sem cor. Seus olhos não demonstravam sentimento, apenas a mesma expressão vazia de antes, com algumas lágrimas correndo pela pele branca. Seu luto era perceptível a qualquer um, eu só não queria me sentir culpada por não estar fazendo nada. Eu nunca havia passado por tal situação, não sabia o que dizer ou o que fazer, se eu dissesse que entendia sua aflição, estaria mentindo amargamente.

         Como eu também não era de falar muito, passamos mais algum tempo em silêncio. Já estava ficando tarde, então decidi agir.

         - Você quer dormir aqui?  A comida está pronta, acho que faço um bom macarrão com queijo – Era evidente que estar só não resolveria nada para ela.

         - Acho melhor não. Quero ficar sozinha comigo mesma. Obrigada.

         - É sério. Você não precisa fazer isso. Se quiser, posso dormir com você.

         - Vou ficar bem, prometo. Obrigada por se preocupar. Como eu já disse, Charlie, tive sorte em conhecer você.

         - Tudo bem, então. Estarei aqui se precisar.

         - Claro. Agora, acho melhor eu ir.

         Assenti com a cabeça e dei um meio sorriso, simpática.

         Aquela noite no apartamento não foi das melhores. Parecia que o vento ia se arrastando em meus ouvidos, a janela de meu quarto era tão velha que não se fechava por completo, era preciso chamar o zelador para corrigir esse problema. O clima daquela noite não era quente, pelo contrário, deveria estar uns quatorze graus. Havia muito a ser feito. E o vento não parava de soprar, vindo daquela maldita janela. Eu não estava de bom humor, o que não facilitava as coisas, e a solução para aliviar um pouco era colocar defeitos em tudo.

         No outro dia, ao acordar, logo me preocupei com Sarah. 

         - Sarah, você tem que se alimentar – impus.

         - Estou me alimentando – defendeu-se.

— Sei que nos conhecemos pouco, mas também sei o que é melhor para você. – Pareceu aqueles clichês de mãe, quando elas dizem “pegue um casaco” ou “volte cedo”. Isso significava que eu seria uma boa mãe. Ou não.

— Não, você não sabe! Julie morreu! Isso não é suficiente para me deixar em paz? – gritou e bateu a porta.

— Acho que sim – falei sozinha, já que não havia ninguém para me ouvir.

À noite nada melhorou, ela continuava em seu apartamento. Eu podia ouvir o soluçar ao passar no corredor. Eu me sentia mal por não poder fazer nada, por não saber o que fazer.


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