Receptáculo escrita por Meredith Grey


Capítulo 3
Capítulo II | Recomeço




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/792273/chapter/3

Estava andando muito rápido. Mas eu estava animada, era difícil controlar. “She was a fast machine, she kept her motor clean, she was the best damn woman that I ever seen…!” Eu cantava You Shook Me All Night Long, de uma das minhas bandas preferidas, AC/DC, enquanto o tempo passava e eu me aproximava mais do meu destino.

         Enquanto eu dirigia, fui notando como parecia que eu estava num mundo diferente do que eu já havia vivido. Tantos prédios, tantas luzes, tantas pessoas, tantas imagens desconhecidas para mim. Não que eu não tivesse passado por isso nas outras cidades –  na verdade, até, eu nem estava tão impressionada – mas aquele era meu novo recanto, eu teria que me acostumar a viver ali. Seria só mais uma garota caipira descobrindo o universo da cidade grande, certo? Errado. Eu não esperava os problemas que isso iria me causar. De qualquer forma, mesmo que eu continuasse no fim de mundo que é Fort Jones, isso iria me acompanhar para o resto da minha vida, ou até eu dizer sim. E isso me levaria até Sam e Dean. O lado bom é que escolhi o caminho mais curto.

         Desci do carro em frente ao hotel. Eu tinha que me registrar novamente, coisa que eu deveria me habituar a fazer. Peguei o jornal do dia e subi até meu quarto, estava cansada de dirigir. Me joguei na cama e quase peguei no sono, mas lembrei de que precisava procurar um apartamento e confirmar a matrícula na universidade. Tudo bem, Charlie, você ainda vai ter uma boa noite de sono, mas na hora certa. Agora, temos trabalho a fazer.

         Deixei minhas coisas no hotel, comi um pouco e voltei para a estrada, dessa vez em direção à UCLA. Só teria que levar os documentos e pegar os horários para o primeiro dia de aulas.  Simples.

         - Olá?

         - Oi, posso ajudá-la? – disse a secretária.

         - Sim, estou aqui para confirmar minha matrícula – estiquei o braço dando-lhe meu comprovante.

          - Ah, é claro, senhorita... Michaels - Ela começou a digitar algo freneticamente no computador, simultaneamente olhando para meu comprovante da bolsa.

         - Hm, vejo que tem ótimas notas – continuou ela –, a Universidade da Califórnia tem orgulho de tê-la como aluna.

         - Obrigada.

         - Você começa na próxima segunda-feira e aqui estão seus horários – falou, ignorando minha gratidão – Não se atrase!

         - Ok. Obrigada mais uma vez.

         - Por nada.

         Saí do prédio da UCLA e fui em direção ao hotel. No meu quarto, peguei aquele jornal que tinha levado para lá um tempo antes. Seção dos classificados, vamos lá. Apartamentos, emprego. Passei algumas horas lendo e encontrei diversos tipos de apartamentos, desde o “solteiro super simples” até o “família master” e, digamos que optei por um meio termo, ou sei lá, um quarto de termo. Sala, cozinha e dormitório com banheiro, mobiliado, 90 dólares por semana. Para um apartamento num bairro central, próximo à universidade, estava razoável (ou ótimo!) e eu só precisava visitá-lo. Bom, precisava de um emprego, mas também havia procurado. Um amigo de meu pai, o senhor Duncan, mudou-se anteriormente para LA, e com alguns telefonemas, reservou um emprego para mim em sua livraria. Disse que poderia me hospedar também, mas minha mãe iria querer controlar, e eu estava decidida – iria ser independente de todas as formas que pudesse. Então, mesmo dizendo que iria pedir se precisasse de algo, fiquei apenas com o emprego.

          Recebi uma ligação de Rose, que estava muito preocupada. A acalmei e contei - sem mencionar detalhes - o que havia acontecido comigo nesse meio-tempo. Percebi que o que eu mais dizia era "calma, mãe, tudo vai ficar bem", e me senti como numa tragédia. Sim, esta é Rosalie, mãe, esposa e atriz de drama da vida real.

         Aquele era meu recomeço. Talvez eu precisasse, também, de alguns novos amigos.

         Acordei cedo na sexta-feira, quase fim de semana, dias de descanso para todos, menos para mim. Estava na hora de ver o apartamento.

         Tive que andar quinze quadras de carro naquela manhã – coisa nada fácil, pois segurei um mapa o tempo todo, já que não conhecia a cidade e estava morrendo de medo de me perder – e, chegando lá, me admirei com o prédio. Era uma bela construção, com uns oito andares. O apartamento vago ficava no quinto andar. Possuía uma admirável vista do centro da cidade, tinha uma ótima estrutura e móveis até conservados. Legal, é aqui que vou morar.

         - Sabe que são 90 dólares por semana, não é? – disse o cara que me atendeu, após me mostrar o local e me auxiliar a tirar conclusões.

         - Claro, estava no anúncio. Devo pagar adiantado?

         Eu havia juntado uma boa grana em Fort Jones. A loja de bicicletas não era grande coisa, mas até que me pagavam bem. Eu havia planejado tudo; a bolsa de estudos, as despesas... Afinal, eu tinha que me preparar. Fiz muitos cálculos, contabilizei os gastos, os lucros e o dinheiro que havia juntado. Meu forte era a arte, mas eu também tinha grandes chances no ramo da matemática.

         - Apenas a primeira. As outras semanas pode me pagar na sexta-feira, moro no final do corredor, logo em frente ao elevador. A propósito, este é o apartamento 5B.

         - Ah, é claro. Aqui está – falei, estendendo a mão com o dinheiro.

         - Seja bem-vinda.

         Eu tinha o fim de semana todo para me organizar. Preparar os livros, arrumar meu novo cantinho, recompor os fôlegos. Tinha que voltar ao hotel para buscar minhas coisas e pegar minhas tralhas importadas diretamente de Fort Jones, que estavam na caminhonete e, por final, conhecer alguém.

         - Olá. – ouvi alguém dizer.

         - Oi – respondi, vendo duas garotas em frente ao apartamento 5A.

         - Você é a nova moradora do 5B? – disse a garota loira.

         - Sim, sou eu. Charlie.

         - Bom, Charlie, esta é Julie e eu me chamo Sarah. Somos suas novas vizinhas.

         - Nossa – eu disse, mostrando uma expressão de alívio.

         - Que foi? – disse a morena, Julie.

         - É bom saber que não sou vizinha de algum velho que queira me cantar toda vez que eu passe por aqui.

         - Pois é, o antigo morador daí era um velho que nos cantava toda vez que passávamos por aqui.

         Risos.

         - Sinto muito garotas, não queria que... Causar essa... Lembrar... - Argh, que nojo, pensei.

         - Entendemos, não se preocupe. – disse Julie e Sarah começou a rir, depois todas rimos.

         - Tenho que ir garotas, há muita coisa para fazer – Lembrei que minha coisas ainda estavam no hotel e no carro.

         - Ok, até logo – despediu-se Sarah, com um sorriso no rosto.

         - Quando voltar, venha tomar uma cerveja com a gente – convidou-me Julie.

         - Ou um chocolate quente – disse Sarah.

         Não demorei muito a chegar no hotel e logo joguei minhas coisas dentro de uma mochila velha que vinha me acompanhando na caminhonete desde Fort Jones. Lembro de quando minha mãe a comprou num bazar feito por nossa vizinha, a senhora Thompson. Ela tinha 78 anos e seus filhos decidiram a colocar num asilo para vender a casa – para pagar as dívidas e a hipoteca – e tinha que se desfazer dos pertences de que não precisavam. Eu tinha apenas 10 anos, mas entendia muito bem essas coisas.

         Desci até o térreo para fazer o check-out, paguei tudo o que havia gasto e saí logo de lá, pois estava ansiosa para chegar em minha casa. Eu morava sozinha! Isso significava muito pra mim, pois aquele era o ápice da minha maturidade. Ok, falando assim pareço uma adolescente em sua primeira noite fora de casa, mas eu realmente estava animada.

         Entrei na caminhonete e parei para pensar no que estava acontecendo. Sintonizei numa rádio que estava tocando rock clássico – que certamente eu iria ouvir mais vezes – e olhei para a janela. O sol batia forte na minha pele, mas eu já estava acostumada com o clima da Califórnia. A viagem até o condomínio foi rápida. Dessa vez, cumprimentei o porteiro, que se chamava Paul. Impressionei-me quando ele disse que já sabia meu nome e meu apartamento. De certo modo, até era melhor...

         Entrei no elevador e me assustei com o silêncio. Era estranho entrar num lugar e estar privado de todo o barulho de carros, de vozes, entre outras coisas que faziam jus ao nome “metrópole”. Quando cheguei ao corredor, não havia ninguém. Então abri a porta e joguei minhas coisas para dentro.

         Sentei na poltrona velha e olhei para a sala. De repente, minha cabeça começou a mirabolar planos. Imaginei uma persiana que bloqueasse toda a luz que viesse da janela, uma televisão, um sofá grande – de preferência um daqueles que viram cama, preguiçosa como sou –, uma mesinha ao lado, pra colocar a panela suja de brigadeiro, cobertores bagunçados e uma estufa pra me manter quente, tudo ali, naquela salinha. Anotei e decidi que iria comprar aquilo.

         Pedi à Julie que esquentasse no micro-ondas a comida rápida – uma pizza pronta – que eu tinha comprado, já que havia sido ela quem me atendeu quando bati à porta. Tomei mais um copo de leite, comi alguns cookies de chocolate e me estendi em cima da cama, ligando a TV – também velha – que estava ali. Assisti metade de um filme de romance, que não dava para entender claramente a história, mas parecia ser a mesma de sempre. Ele e ela se conhecem, se apaixonam, enfrentam problemas, resolvem juntos e... Felizes para sempre! Argh, essa expressão me irrita. E depois do sempre? O que acontece? Decidi desligar a TV e tentar dormir antes que eu quebrasse a cabeça com isso – ou alguma coisa material, pela qual eu teria que pagar.

         O final de semana foi monótono. Não conhecia ninguém e não estava a fim de sair. Eu estava cansada. Sarah e Julie tinham saído com as amigas. Educadamente, me convidaram, mas eu tinha que resolver as coisas do apartamento. Fui dando um jeitinho no meu canto, comprando umas coisas aqui, arrumando outras ali. Notava-se que o antigo morador era velho demais para se importar com tais detalhes.

         Na segunda-feira, acordei cedo e fui à faculdade, onde assisti a apenas três aulas. A secretária me disse que por enquanto poucas cadeiras estariam disponíveis, e tive que aceitar. No período do professor Johnson, um rapaz sentou a meu lado.

— Olá – disse ele.

— Oi – respondi, timidamente.

— Você é novata – Percebi que não era uma pergunta.

— Aham – Não entendi quais eram as intenções dele.

— Se quiser, posso lhe ajudar com isso. – Espere, ser novata é problema agora?

— Claro. Charlie. – Fui simpática e estendi a mão para ele.

— Nicholas. – Ele apertou minha mão e sorriu. Sorri também.

— Nicholas, acho melhor assistirmos a aula agora. Desc...

— Sem problemas – disse antes que eu terminasse de me desculpar e sorriu de novo. Cara legal.

E enquanto o Sr. Johnson explicava os slides sobre a arte pré-histórica, Nicholas ora olhava para a tela, ora olhava para mim. Aquilo estava começando a ficar chato, quando ouvi o professor.

— Por hoje é isso, pessoal. Até quarta-feira.

Quando me levantei, senti que alguém havia segurado meu braço.

— Ei - disse Nicholas.

— Oi? - reagi, assustada.

— Quer dar uma volta pelo campus? Se me mostrar seus horários, posso lhe dizer onde deve ir.

Era a última aula da manhã mesmo, não havia problema em ir com ele. Além do mais, ainda eram 10h50, e meu trabalho só começava à tarde, havia tempo de sobra. Mas pensei: que liberdade era aquela?

— Ok. - respondi ao pedido.

O campus era enorme. Passávamos pelos prédios e ele ia me dizendo o que havia atrás de cada parede branca e úmida, quando eu não podia ver com meus olhos o que realmente estava lá. Foi aí que percebi que o céu estava começando a ficar nublado e o sol ia lentamente se escondendo por trás das nuvens.

— Está ficando frio - eu disse, inocentemente.

— Camisa legal – ele elogiou minha camiseta da Kansas. – mas vamos ter que guardá-la embaixo do meu casaco.

Ele estava mesmo fazendo o que eu estava pensando? Sim. Ele tirou o moletom e o colocou por cima de meus ombros.

— Não, não... Estou bem, obrigada. - disse eu, tirando o moletom, mas imediatamente ele o segurou e o manteve onde estava.

— Eu insisto - sorriu. Eu tinha uma queda por caras com sorriso simpático, como... Sam.

— Está bem - olhei o relógio em meu pulso, já eram onze e meia. - Nossa, como o tempo passou rápido! Tenho que almoçar, à tarde tenho que trabalhar.

— Hm – disse, pensativo. – Você veio de carro?

— Sim.

— Então vou acompanhá-la até ele – muito gentil, mas estranho.

— Claro.

Caminhamos em silêncio até a caminhonete. De repente o clima mudou, ele não olhava mais para mim. O que será que eu fiz? Não estava mentindo, eu precisava mesmo ir, talvez ele tenha entendido aquilo como uma fuga contra o interesse dele em "me deixar aquecida", mas eu estava sendo sincera.

— Então...  – fiquei sem palavras.

— Então - ele olhava em direção ao chão. Foi quando ele jogou seu olhar contra mim. - Até amanhã... Charlie.

— Até – eu continuava sem entender muito bem as intenções dele, mas entrei no jogo. – Se cuide.

— Você também – ele abriu mais uma vez um largo sorriso. Eu ri.

Devolvi o casaco de moletom a ele, entrei na caminhonete e liguei o aquecedor. Ele fechou a porta para mim e acenou. Acenei de volta. Pois bem: o que havia sido aquilo? Era um cara legal, mas acho que pisou no acelerador cedo demais.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Receptáculo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.