I see you escrita por Kizimachi, Luh Castellan


Capítulo 1
Centelhas




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— Então, este é o resumo de hoje. - Anunciou Gustavo, professor de Comportamento e Sociedade, descansando uma perna sobre a sua mesa. Sempre no final que ele havia programado para as suas aulas, fazia um rápido resumo do que foi passado no dia. -  A felicidade pode e vai aparecer de várias formas. Porém, algumas vezes temos algo como centelhas de felicidade. Estamos felizes naquele momento, mas, no aftermath, como dito no inglês, as coisas não são bem assim. Vejamos: uma saída com seus amigos para uma boate, por exemplo. Você se diverte com eles, você bebe, você dança, mas, no outro dia, há a ressaca. E, muitas vezes, aquele sentimento de “não me diverti o suficiente, gastei dinheiro a toa”. Outras drogas também, principalmente as sintéticas. Você usa, sente um puro êxtase, mas há a ressaca e o efeito cruel daquilo no seu organismo. Boas músicas também. São boas, são suas favoritas, mas elas acabam, e você não quer deixar repetindo por muito tempo por medo de enjoar. Bons filmes? A mesma coisa. Também acabam e você também não vai vê-lo muitas vezes. Outra situação: orgasmos. 

Algumas rápidas risadas tomaram conta da sala. 

— Não, sério. Após o orgasmo, nosso corpo está inundado de hormônios responsáveis por prazer e felicidade, mas vão se esvaindo com o tempo, dando lugar a um certo cansaço. E, se for um sexo casual, também fica aquele imenso vazio emocional, não é? - Não se ouvia mais risadas na turma, como se esse fosse um ponto que tivesse atingido a todos. Todos. - Pois bem. Segunda trataremos de felicidades completas, se assim posso dizer. Êxtase verdadeiro. Nirvana. Por ora, deixarei vocês com uma felicidade momentânea. Estão liberados.  

Uma das coisas que mais me anima ao cursar psicologia é a sensação de estar intrigada com tudo que você estuda. E hoje não foi diferente. Nunca havia parado para imaginar a felicidade em categorias, mas faz total sentido, pelo menos para mim. A subjetividade inerente ao curso também é algo que me atrai bastante. Creio que a Giovanna não gostaria muito disso tudo. As pessoas de exatas são sempre muito objetivas. Mesmo ela, que adora as ciências sociais, prefere as correntes objetivas. Já conversamos muito sobre isso. Mas agora estou realmente intrigada com outra coisa. A felicidade completa, como o professor falou, realmente existe? 

Perdida em meus pensamentos, percebi que todos já foram embora. O professor me olha com uma expressão de curiosidade. Provavelmente parecendo embaraçada, junto rapidamente meu material e resolvo saber a opinião dele sobre minha dúvida.

— An, professor, tenho uma pergunta… diria que é mais acerca da sua crença pessoal.

— Fique à vontade A… Amanda, não é? Desculpe se errei, só estou com vocês há algumas semanas e…

— Não, tudo bem. Acertou. Conto nos dedos de uma mão os professores que lembram os nomes dos alunos. 

Com um sorriso, ele continuou:

— Mas então, qual é sua dúvida?

— O senhor acredita em felicidade completa? 

Como todo clichê pensativo, ele passou alguns segundos olhando para o teto e me respondeu.

— Sim. Com certeza. Acho que o maior exemplo pessoal que posso te dar é ser professor. Uma aula pode parecer uma felicidade momentânea, mas ver vocês passando na matéria, saindo daqui sabendo de boa parte do que eu quis passar para vocês ou até mesmo vendo vocês formados, daqui a uns dois anos, é algo completo, sabe?

— Uau. O senhor realmente ama o que faz, não é? 

Com um leve, mas puro e verdadeiro sorriso, ele acena e continua:

— Falando em amor, meu marido também vem me mostrando o que é uma felicidade completa. - Ele então passa o dedo sobre a aliança dourada na sua mão esquerda. - Claro que há alguns momentos inoportunos, mas é amor, Amanda. E amor verdadeiro e correspondido leva à felicidade verdadeira. Não se preocupe, você ainda terá tempo para formar sua opinião pessoal sobre isso. Mas agora, não é que eu esteja te expulsando, mas estou morrendo de fome e…

Rio. E agradeço muito por isso. Sinto que em alguns instantes algumas lágrimas estariam rolando pelas minhas bochechas. Sempre me emociono com depoimentos sobre amor. Não esses de filme, mas depoimentos reais e pessoais. 

— Não, tudo bem. Até segunda, professor. 

— Até!

 

“Amor é a condição em que a felicidade de outra pessoa é essencial ao seu ser”

Robert A. Heinlein

 

Eram 16h30 de uma sexta-feira, então não é de se assustar que alguém estivesse ansioso para sair daquele prédio, até mesmo um professor. 

Saio da sala e passo por alguns corredores, me dirigindo até o pátio principal, onde sempre me encontrava com Giovanna após as aulas ou em algum intervalo. Porém, hoje aparentemente seria uma exceção. Passei alguns momentos procurando-a pelo pátio, mas sem sinal da sua vida. Vejo também que não há nenhuma mensagem dela no celular. Estranho. Devo ligar? Gio não é de dar bolo, então…

Após alguns instantes, ela atende.

— Alô?

— Giovanna? Cadê você?

— Estou dirigindo, quase chegando em casa. Tive que ir pegar a Sasha no banho, por isso não te esperei. - Sasha é a cadela dela. Uma adorável Daschund. - Mas eu pedi pra Rafaela te avisar. Ela não tá por aí? Ela me disse que ficaria na faculdade até de noite.

Giro ao meu redor, procurando-a. Rafaela estuda com Giovanna desde o primeiro período, então já estivemos juntas várias vezes. Ah, mas voltando para a Rafaela, lá estava ela, agarrada com um garoto que nunca vi na vida.

— É… ela tá por aqui, mas tá agarrada com um cara e…

— NÃO! Não me diz que é o Arthur.

— Não sei se… 

— Ele tá com uma camisa do Foo Fighters e um cabelo amarrado em um coque? - A descrição combinava. E a Giovanna adora me interromper. É assim desde sempre. De início, eu detestava, mas, com alguns anos de convivência, passei até a ver como um carinho da parte dela.

— Sim.

— Oh, merda! Falei para ela que esse cara é um puta de um boy lixo. Se passa por gente boa, good vibes, mas é muito escroto, principalmente em festas. Dizem por aí que votou até em você-sabe-quem. Eu acho que sim. Ah, também falei para a Rafaela te falar que eu sairia mais cedo, mas...

— Por que não mandou mensagem?

— Tava sem sinal na hora. Eu ia fazer isso assim que chegasse em casa. A propósito, acabei de chegar. 

— Tudo bem. Então, ainda vamos sair amanhã?

— Então, eu ia falar contigo sobre isso. Pode ser hoje? A programação do Lion’s Den tá bem melhor hoje. Só rock alternativo, indie, etc. Amanhã é festa de heterotop.

— Ah, tudo bem então. É até melhor assim, tava com vontade de chorar um pouco ouvindo um indie. Será que vão tocar Cigarretes After Sex?

— Você se passa, Amanda. Com umas doses tá dançando quase no chão até ao som de When the Party’s Over.

Solto um riso abafado. Ela realmente me conhece.

— Não é pra tanto, Gio.

— Quem não te conhece, que te compre. Nos vemos lá, então. 21h. Até mais, meu anjo. - E desliga.

Por um instante, observo sua foto de contato no meu celular. Uma foto que ela tirou, nós duas no meu quarto, eu com uma clara cara de pós choro e ela me abraçando com um braço e deixando um beijo na minha bochecha.

Esse dia marcou o fim do meu namoro de quase dois anos com Hugo, o meu último relacionamento. Ele simplesmente me dispensou, mas suas últimas palavras ecoaram em mim por um bom tempo.

Serei bem direto, Amanda. - Hugo mantinha uma expressão séria e firme. Nos últimos dias, ele havia… mudado. Estava mais sério que o habitual, sempre com respostas curtas e se esquivando de mim. - Não sinto mais desejo por você. Então meio que não preciso mais de você.

Enquanto eu estava tentando processar aquelas palavras, ele juntou suas coisas e se levantava para ir embora daquela cafeteria. Mas não deixou de me apunhalar mais uma vez.

— Ah, e acho que você vai precisar de sorte… não sei se alguém mais consegue te aguentar.

Naquele dia e no dia seguinte, Giovanna cuidou de mim. Ela não se importou em perder aulas, mas sim em ficar comigo no meu apartamento o tempo que fosse necessário. Ela me ajudou a ver que eu estava num relacionamento abusivo. Ou melhor, pode-se dizer que ela tirou minha venda.

Porque é assim que ocorre na maioria dos relacionamentos abusivos: você está cega. Você pensa que está totalmente feliz. Mas são curtos momentos de felicidade. Carinhos - raros, no nosso caso -, festas, orgasmos - quase sempre somente da parte dele. Esses momentos se somam em uma venda que te impedem de ver a verdade plenamente objetiva do abuso.

Você pensa que está em uma magia com a pessoa, mas é um teatro, conduzido por um demônio que sabe seus pontos fracos e sabe te iludir a ponto de você pensar que depende emocionalmente daquela pessoa para viver. É um teatro puramente trágico.

Felizmente, havia uma catarse no fim de todo esse teatro: Giovanna.

Eu e Gio somos melhores amigas desde o ensino fundamental. Isso é, há uns 11 anos. Sempre fomos inseparáveis, seja para chorar juntas, ir para festas, matar aula e tantas outras coisas. Com o tempo, além da separação para cada uma buscar seu curso dos sonhos, a parte sentimental mudou um pouco. 

Não entre nós, pelo menos. Mas a Giovanna se tornou um pouco mais… droga! É tão difícil dizer sem ter que analisá-la de forma semiprofissional. E ela me fez prometer que eu nunca faria isso. Então ficarei com o adjetivo “fria”. E, por causa disso, não temos mais tanta sinergia para falarmos de sentimentos que temos por outras pessoas. Mas sempre que necessário, salvamos uma à outra, como foi no caso do Hugo e em alguns casos mais rápidos dela.

De toda forma, minha vida não é uma completa tragédia, tive algumas felicidades. Giovanna, com certeza, é uma delas. 

  “O inferno são os outros” 

 Sartre

Cheguei na boate alguns minutos depois da hora marcada. Como ainda era cedo, não enfrentei fila. Passei pelo processo comum de mostrar documento, pagar a entrada, ser levemente revistada e, de fato, entrar no ambiente.

Andando até o centro da boate, confirmo que era uma festa alternativa. Não digo pela decoração temática do local, mas pelo estilo das pessoas ali presentes. Tatuagens, roupas diferentes, cabelos diferentes.

E lá estava ela. Cabelos de um castanho quase preto, cortados num estilo pixie e jogados para o lado, deixando as ondas assentarem numa bagunça calculada. Tinha uma tatuagem de rosas que começava no ombro esquerdo e descia quase até o cotovelo. Da curva dos seus lábios, passando pelo nariz levemente arrebitado até suas sobrancelhas marcadas formava o conjunto que Michelangelo sonharia esculpir em sua obra prima. A melhor parte eram os olhos de mel, capazes de enfeitiçar os olhares alheios para se perder dentro de si.

Seu guarda roupa era composto quase inteiramente de regatas e camisas de botão folgadas que ficavam, geralmente, abertas sobre o seu corpo esguio, com algum top por baixo cobrindo seus seios pequenos. Ela conseguia ficar linda e estilosa - e sexy - de uma forma que eu nem sonharia em alcançar. Quando estava triste ou taciturna, fechava os botões de cima a baixo. Mas hoje estava totalmente aberta - a camisa e a dona - , distribuindo sorrisos, olhares e goles da sua bebida.

Fiquei parada a uma certa distância esperando que ela me visse, o que não demorou muito. Ela, aparentemente, pediu licença ao rapaz que estava conversando e veio até mim com um olhar sério, olhando em seguida para seu relógio e disparando:

— Você está trinta e dois minutos atrasada - Ela sempre foi assim, bastante rigorosa com pontualidade. Fazia questão de passar na cara os minutos de atraso. Às vezes até os segundos.

— Foi mal, tive que adiantar um trabalho - Menti, mas tentei ser convincente. Ela semicerrou os olhos em minha direção por alguns instantes.

— Mentira. Ninguém adianta trabalho numa sexta à noite, Amanda. Mas já estou acostumada com seus atrasos.

Ela sorri, desfazendo sua postura séria e me abraça. Sinto seu perfume. Estonteantemente doce.

— Já tá bebendo, né? - Pergunto, já sabendo da resposta.

— Pouco. Duas doses de tequila, até agora. Vem, aproveita que a dose tá dobrada até às dez horas - E me puxou em direção ao caixa da boate. 

Ela entrou na minha frente, comprou suas fichas e disse que me esperaria no bar. Comprei as minhas e assim fui.


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