Room 93 escrita por Izzy Aguecheek


Capítulo 2
II. Ghost


Notas iniciais do capítulo

Pra ser bem sincera, eu esqueci de postar esse capítulo :v



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You say that you’re no good for me

Cause I’m always tugging at your sleeve

And I swear I hate you when you leave

But I like it anyway

 

Você diz que você não é bom para mim

Porque eu estou sempre puxando sua manga

E eu juro que te odeio quando você vai embora

Mas eu gosto disso de toda forma

                    Halsey - Ghost

Embora a semana comece no domingo, a vida noturna começa na sexta-feira. Nicole está entediada depois de uma semana inteira lidando com a vida real; portanto, quando sua amiga Alice a convida para uma festa na sexta à noite, ela aceita, sabendo que Callum estará lá e que Brenda estará em casa.

O simples ato de se arrumar faz com que ela se sinta melhor; é como trocar de pele, apagar o próprio rosto e desenhar um novo. O rosto de alguém que sabe exatamente quem é, e não da menina que passa os dias vagando sozinha por corredores vazios e memórias ruins. O rosto de alguém por quem Callum se apaixonaria, e de alguém que diria “foda-se, eu não preciso dele, eu posso lidar com isso” quando seu coração fosse partido. O rosto de uma mentirosa, porque ela gostaria de falar a verdade mais vezes.

— Vou passar a noite na casa da Alice – Nicole informa à mãe. Esta não se incomoda em erguer os olhos para constatar que a filha não está levando mochila; está muito entretida com seu programa de televisão e sua garrafa de cerveja.

O ar noturno atinge Nicole no rosto como uma onda atinge a areia; é algo destinado a destruí-la um dia. Está quente demais para a meia-calça escura e a jaqueta que ela está vestindo, mas algumas coisas simplesmente são mais importantes do que outras. Como não pode pegar o carro da mãe, Nicole se senta no meio-fio para esperar sua carona. Não demora muito para o carro surrado de duas portas de Alice parar junto a ela, a janela do passageiro se abrindo para revelar o rosto escuro de Michael.

— Quanto é a hora? – pergunta ele, com um sorriso. Nicole sorri de volta e lhe mostra o dedo do meio, levantando.

— Para você, nem por uma barra de ouro – diz. Michael sai do carro e afasta o banco do passageiro para que ela possa entrar no banco de trás. Nicole pisca para Alice, que está ao volante. – Para você, é de graça, gata.

Alice ri. Ela parece uma personagem de desenho animado, com seu cabelo repicado e pintado de seis cores diferentes. Um dia, logo depois de conhecê-los, ela explicou a Nicole e Callum que se tratavam das cores da bandeira gay, e que fora assim que se assumira para os pais.

— Eles ficaram mais chateados por eu ter pintado o cabelo do que por eu gostar de meninas – disse, fingindo reprovação e escondendo um sorriso.

Agora, Alice não se dá ao trabalho de esconder o riso. Michael volta a se acomodar no banco do carona, fechando a janela, e liga o rádio. Ele mexe nas estações por um instante antes de desistir e colocar um CD. Nicole não conhece a música, mas pede para ele aumentar o volume.

Ainda é relativamente cedo quando eles chegam ao local da festa – a casa de algum amigo de Michael, Nicole acha; Alice não se incomodou em explicar, e ela não se incomodou em perguntar –, e talvez seja por isso que Callum está parado no jardim, sentado na grama com os joelhos junto ao peito e um cigarro na mão, como se esperasse por eles: ele ainda não teve tempo de encontrar alguém mais com quem se distrair.

Ele se levanta ao vê-los se aproximar, e cumprimenta Michael com um toque de punhos. Beija a mão de Alice e a de Nicole, e é então que Nicole percebe a garrafa meio vazia na grama, perto de onde Callum estava sentado.

— Agora sim essa festa pode começar! – diz Callum, com um risinho.

— Estranho você não ter começado sem nós – retruca Nicole, secamente. Alice lhe lança um olhar de aprovação, e Callum dá de ombros, sem desviar os olhos.

— Não tem tanta graça sem vocês – Ele puxa o colarinho da camisa, que está amarrotada, como se ele a estivesse usando desde o dia anterior. Seus olhos estão enevoados, mais como se ele estivesse em outro lugar do que como se tivesse usado alguma substância. – E eu não conheço mais ninguém.

Nicole quer pegar o celular dele e abrir a extensa lista de contatos salvos no aparelho - de pessoas com quem ele dormiu e pessoas que passaram noites em claro ao lado dele e com quem ele conversou sobre ir até os confins da terra -, e provar que ele nunca precisou se preocupar em não conhecer ninguém, mas não o faz; este não é o Callum com quem ela dividiu o quarto 9(3) tantas vezes. Este é o Callum que tem saído cada vez mais cedo, juntando-se aos fantasmas que povoam o hotel. Nicole não acha que pode alcançá-lo.

Michael, por outro lado, parece ter pleno acesso a esse Callum, pois não parece nem um pouco incomodado.

— Cara, tanto faz – Ele dá um tapinha nas costas do amigo e começa a caminhar em direção à porta da casa. – É lá que está a bebida, né?

Alice o segue, puxando Nicole pela mão, e Nicole automaticamente puxa Callum com a mão livre. Os três entram na festa como uma corrente disforme feita só de elos fracos.

Nicole precisa admitir que não há mesmo nenhum conhecido por aqui; o dono desta casa, seja lá quem for, é parte de outro círculo de amigos de Michael, um que escuta bandas diferentes e gosta menos de luzes. Os estranhos, entretanto, são mais do que o suficiente para entretê-los, e não demora muito para que Alice desapareça com uma garota de cabelo raspado e Callum arranje alguém com quem dançar.

Nicole arruma uma bebida e permanece junto à parede, observando e dançando no lugar. Um rapaz que aparenta ser mais novo do que ela pisca em sua direção, esperançoso, e ela desvia o olhar após um sorriso vago e uma olhada distraída na camisa polo dele, fechada até o último botão. Definitivamente, não é o tipo dela. O tipo de Nicole faz mais do que piscar um olho e dificilmente usaria uma camisa dessas.

À medida em que toma mais goles do copo em sua mão, Nicole sente as luzes ficarem mais fortes, de um jeito que a faz lembrar das luzinhas de natal na parede do quarto, e se afasta da parede para procurar uma distração de verdade.

São precisos cinco minutos dançando no centro da sala, alguns olhares cruzados e um par de sorrisos sugestivos para que ela encontre alguém interessante. É um rapaz que parece saído direto de uma cena de Grease – Nos tempos da brilhantina: jaqueta de couro preta, camiseta branca e ar de quem é provavelmente um babaca, mas um babaca que sabe exatamente o que está fazendo. A única coisa que faz com que Nicole acredite que ele é um garoto do século XXI é o batom escuro em seus lábios e – graças a Deus – o corte de cabelo um pouco mais moderno.

Nicole vai até ele, sem esperar. Ele sorri. Não está dançando, mas seus dedos se movem levemente ao lado do corpo, tamborilando o ritmo da música na coxa. Nicole se inclina – ele é alguns centímetros mais baixo que ela – e diz, falando alto para ser ouvida por sobre o barulho:

— Ei, seu batom combina com o meu.

O garoto grita de volta:

— É, dava para misturar, né?

É uma cantada bem ruim (não a pior que ela já que recebeu, porque Callum tem bem piores), mas até mesmo isso é estranhamente satisfatório. Funciona, de qualquer maneira, porque, antes que possam dizer alguma outra coisa, os dois já estão se beijando, e é exatamente por isso que Nicole fica com esse tipo de garoto: uma vez em sua vida, não há cerimônias.

Quando o beijo fica mais intenso, o garoto de jaqueta de couro se afasta e diz:

— Tem gente demais aqui.

Ele soa ansioso, e ela percebe que ele é tão inexperiente quanto o garoto de camisa polo. Nicole concorda com a cabeça antes de dar um sorriso sonso e tornar a desaparecer no meio dos corpos dançantes.

Enquanto dança sozinha, ela finge que não está prestando atenção nas pessoas ao seu redor, para que ninguém preste atenção nela, mas, vez ou outra, capta um vislumbre de um de seus amigos aqui e ali: Michael sorrindo para um garoto de maneira sedutora, o cabelo colorido de Alice sendo puxado por uma garota enquanto elas se beijam, um conhecido ou dois rodopiando pela sala. Curiosamente, ela não vê Callum em lugar algum, o que, de certa forma, é um alívio. Embora Nicole saiba que ele provavelmente está no andar de cima com outra pessoa, é melhor do que vê-lo com outra pessoa aqui.

Então, alguém a segura pelo braço, e ela se vira, preparada para dar uma bronca em um rapaz insistente demais. Ao invés disso, se depara com os olhos baços de Callum.

— Você sumiu – diz ele, se inclinando para poder falar próximo ao seu ouvido. O corpo de Nicole se contrai, como se ela tivesse levado um choque.

— Não vamos começar com isso de novo – diz ela, em parte torcendo para que ele não escute. – Eu estava aqui esse tempo todo. - Ela analisa o rosto de Callum, embora não dê para ver muita coisa nessa iluminação. – Você usou alguma coisa?

Callum sorri de lado.

— Não é você que diz que não precisamos dessas coisas? Porque já somos malucos o bastante e tudo mais.

Nicole revira os olhos para ignorar o revirar em seu estômago.

— Tanto faz. Você também sumiu.

— É, eu estava lá em cima.

É tudo demais: o olhar perdido dele, a displicência com a qual ele fala, o reconhecimento de que isso já aconteceu milhares de vezes antes e de que Callum é exatamente o que Nicole estava procurando naqueles garotos. Ela dá as costas a ele parcialmente, voltando a dançar.

Após um instante de hesitação, ele começa a dançar também. É diferente de quando Nicole o encontrou sozinho no quarto 9(3), quando ele estava perdido e absorto em si mesmo e de olhos fechados. Agora, ela consegue sentir o olhar dele pesar sobre si; esta é a versão pública de Callum, que finge que seus olhos cansados são apenas falta de sono. Nicole está ficando cansada das versões dele.

Ela sente quando a presença a abandona, e, sem pensar mais no assunto, sai da casa, procurando-o. Callum está sentado no mesmo lugar onde estava quando Nicole chegou à festa com Michael e Alice, mas, agora, a garrafa largada sobre a grama está completamente vazia.

— O que aconteceu? – pergunta Nicole, porque não sabe mais o que dizer e porque ele espera que ela diga alguma coisa.

Callum deixa o corpo cair para trás, deitando-se sobre a grama, e fecha os olhos. A teatralidade faz parte de sua imagem pública, mas também é, de certa forma, algo reservado à visão de Nicole.

— Nada.

— Tudo bem.

Há um momento de silêncio, durante o qual Nicole se senta ao lado da figura estendida de Callum. Por fim, ele diz:

— E com você?

Nicole pensa no episódio na loja de música na segunda-feira, na expressão vaga de Callum e nas noites nas quais ele saiu mais cedo do quarto 9(3). E pensa que talvez o fato de que, aos recém-completados vinte e três anos de idade, Callum não alcançou nada e não tem perspectivas para alcançar nada esteja finalmente atingindo-o. Ela se deita ao lado dele, virando a cabeça para olhá-lo e diz:

— Sei lá. Foi uma semana longa.

Callum faz um gesto quase imperceptível com a cabeça. Não está olhando para Nicole. Ela espera que ele diga alguma coisa para afastá-la ou aproximá-la, mas Callum permanece em silêncio, e Nicole se vê dizendo:

— Nós podíamos sair daqui.

— Ir para o 93?

Callum é um explorador e rei absoluto do próprio mundo; para ele, se eles criaram um laço com um falso quarto 93, o quarto torna-se imediatamente um quarto 93 de verdade. Nicole é um dos fantasmas do hotel e uma dama de companhia; ela precisa dos parênteses para lembrar a si mesma de que o trono da rainha deve permanecer vazio.

— É – responde ela, tentando não soar esperançosa demais. – Se você quiser.

Outra pausa, dessa vez mais longa e carregada. Então, Callum diz, com uma risada forçada e curta:

— Porra. Isso tudo é péssimo, não é?

Nicole se senta, subitamente querendo se afastar dele. Ela sempre soube que esse momento chegaria, e já imaginou milhares de vezes o que viria a seguir: a discussão leve que se tornaria uma briga, o término inevitável e um quarto de hotel vazio. A ideia faz seu estômago revirar, e ela sente vontade de chutar alguma coisa. Callum, de preferência.

Mas, embora seja um fantasma, Nicole continua sendo teimosa, e sua língua continua se adiantando. Em tom de desafio, retruca:

— Isso o quê?

— Isso – Ainda encarando o céu, Callum faz um gesto vago com a mão. – Eu e você, a gente não faz bem um pro outro.

— Ah, tá – Nicole ergue uma sobrancelha. Sua voz está estável, e ela espera que, se vacilar, seja de raiva. – Que bom que você avisou. Eu nunca teria percebido.

Callum não se senta para olhar para ela, mas ergue-se um pouco, apoiando-se nos cotovelos.

— Viu só, é disso que eu tô falando. De quando você me procura nessas horas, e do que isso faz contigo. Com nós dois.

— Se você não quer mais que eu te procure, basta dizer – diz Nicole, quase suavemente. Ao contrário do que ela esperava, não há mágoa, ao menos não agora; agora, a emoção principal é raiva. Com acidez, ela acrescenta: - Ou você podia me procurar, pra variar um pouco. Você costumava fazer isso, sabe. Antes de todas as suas semanas se tornarem longas demais.

Há uma pausa, durante a qual Callum torna a se deitar e olhar para o céu. Por fim, ele diz:

— Às vezes, eu tenho a sensação de que nunca estive realmente aqui.

Nicole se levanta e vai embora, sem dizer nada.

Eles terminam a noite no quarto 9(3) de qualquer jeito, porque não há nenhum outro lugar para ir. Não é a primeira vez que os dois vão até o quarto separadamente – isso é frequente nos dias chuvosos de Callum e nas noites de tempestade de Nicole –, mas é a primeira em que eles o fazem ao mesmo tempo, e nenhum deles sabe como lidar com a situação.

Nicole está dando voltas no quarto, segurando um cigarro que ainda não acendeu, quando Callum aparece. Ele hesita por um momento antes de entrar, fechando a porta atrás de si, e ela fica parada, descalça e descabelada, observando-o, com cautela.

— Você pode passar a noite fora hoje? – pergunta Callum. Seu tom de voz não é convidativo, mas há algo quase carente em seus olhos. Nicole dá um meio-sorriso.

— Poderia, se minha mãe ligasse pra onde eu passo o fim de semana – Ela se senta na beira da cama. – Ela sabe que vou ficar fora, se é isso que você quer dizer.

Callum tira os tênis, ficando só de meias, e se senta no chão junto à cama, abraçando os joelhos junto ao peito. O silêncio é incômodo, até Nicole se juntar a ele, entrelaçando seus dedos delicadamente. Ela não sabe o que está fazendo, nem por quê está fazendo, mas tudo bem. Foi assim que tomou todas as decisões de sua curta vida, e, até agora, nada explodiu em sua cara.

Callum pega o cigarro de sua mão e diz:

— Você não foi feita pra isso, sabe.

Nicole se pergunta se ele está falando dos cigarros, ou das festas, ou da faculdade, ou dele. De toda forma, concorda com a cabeça. Ninguém nunca sente que é feito para a vida que leva. Com delicadeza, ela diz:

— Nem você.

Callum fecha os olhos. Quando não há ninguém além de Nicole para ver, ele parece menos com um rei e mais com um semideus: passível de erro, mas ainda assim inalcançável. Nicole solta a mão dele e pega o cigarro de volta, porque não faz sentido esperar que tudo isso mude alguma coisa. Ele não protesta; sequer abre os olhos. Sua única reação é dizer:

— É, acho que não. Nenhum de nós.

Eles acabam adormecendo lado a lado no chão frio, depois de várias horas desperdiçadas com um nada tão absoluto que deveria fazer com que Nicole se sentisse vazia, mas não faz. Há algo queimando em sua garganta; talvez vontade de gritar, talvez vontade de rir. Talvez seja o fato de que Callum tornou a segurar sua mão por alguns instantes antes de cair no sono, porque ele é intocável, e, no entanto, aqui estão eles.

Pouco antes de adormecer, Nicole tem tempo para um pensamento confuso, típico dessas noites de se deitar no chão duro e fingir que o teto é o céu noturno e que o quarto 9(3) é um universo inteiro. Talvez Callum não seja um semideus. Talvez, como ela, ele seja só um fantasma.


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Notas finais do capítulo

Tem uma referência a uma música do Badlands aí, quem conseguir achar ganha... nada, mas vai ser bem satisfatório :v



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