Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 4
Battle of the Flies


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



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Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Setembro de 2020.

A iluminação baixa do auditório dava ainda mais imponência ao ambiente.

Aquele era o menor dos auditórios da St. Dominic, onde eventualmente tínhamos algumas aulas. Eu estava sentado em uma das primeiras fileiras, assistindo ao ensaio da peça dirigida pelo mister Graves. Pujit era um dos garotos que estava no palco. A peça era uma adaptação teatral do livro “Lord of the Flies”, uma história a respeito de um grupo de garotos britânicos que naufragavam em uma ilha e precisavam lutar por sobrevivência. Eu tinha lido aquele livro havia alguns anos, mas não me lembrava de muita coisa. Pujit havia me dito que existiam filmes também, mas eu não os conhecia.

No centro do palco estava um dos Foxes, Barrett Chevalier. O garoto era branco, com os cabelos dourados erguidos em um topete, os olhos azuis e um nariz fino e empinado. Era nele que estava o único holofote no estrado imerso em escuridão.

— Quando você tem medo de alguém, você o odeia, mas não pode parar de pensar nele. Você se ilude, dizendo que ele no fundo é legal. Então você o vê de novo; e é como a asma, você não consegue respirar...

Barrett pronunciou sua fala com uma dramaticidade que me fez prender a respiração por um segundo. Quando ele terminou a frase, a luz do palco se apagou. O holofote voltou a acender alguns segundos depois, dessa vez em Pujit. Apesar de eu não me lembrar do nome dos outros personagens, eu sabia que o meu roommate estava interpretando um garoto chamado “Piggy”.

— O que nós somos? — Pujit falou, encarando o teto. — Humanos? Ou animais? Ou selvagens?

— Luzes! — A voz do mister Graves interrompeu o garoto no palco, me fazendo sobressaltar.

Todas as luzes do auditório se acenderam, e eu pisquei por alguns segundos, ajustando meus olhos à claridade. Havia somente eu e o professor na plateia.

— Isso foi péssimo, mister Kalantar. Desastroso, na verdade.

Franzi o cenho com a frase do professor. Todos os garotos que estavam no palco se reuniram no centro. Eu observei como Pujit imediatamente murchou diante daquele comentário.

— E você, mister Chevalier... — O professor começou, e Barrett ergueu o pescoço de maneira altiva. — Não fiquei impressionado. Tente soar menos... Arrogante. Ralph é um líder, por certo, mas ele é alguém para quem a audiência deve torcer.

Barrett assentiu com seriedade.

— Sim, senhor.

O professor concordou com a cabeça e pensou por alguns segundos. Ele então olhou para trás e franziu o cenho ao me ver. Eu havia pedido autorização para assistir ao ensaio, mas ele provavelmente não esperava que eu ficasse até o final.

— Certo. Por hoje é o suficiente, estão dispensados. Mister Hunt, se tiver um minuto...

mister Graves falou aquilo e o garoto que eu sabia se chamar Spencer concordou com a cabeça. Eu não havia o visto no palco, então concluí que ele devia ser o responsável por alguma parte técnica da peça.

Pujit desceu do estrado e seguiu na minha direção. Eu me levantei, saindo junto com ele do auditório.

— Eu não achei desastroso. Eu acho que o professor só está sendo rígido pra você dar o melhor de si.

O meu roommate concordou de maneira incerta. Eu sabia que ele tinha um pouco de medo do mister Graves, embora eu não compartilhasse do sentimento. No pouco tempo em que eu estava ali, eu havia ficado sabendo que o nosso Deputy Headmaster tinha fama de ser um professor rígido e severo, mas eu não tinha observado isso na prática ainda. Ou ao menos a minha tolerância para rigidez e severidade era maior que a dos outros pupilos. O professor era definitivamente bastante estrito em suas demandas e cobrava muito de todos nós, mas não era substancialmente diferente de quase todos os meus professores no Japão.

— Eu preciso entregar uns livros na biblioteca, você vem comigo? — Perguntei.

Pujit concordou com a cabeça.

— Eu não imaginaria que você gostava de teatro. — Falei, enquanto caminhávamos pelos corredores. — Não sei, não aparenta ser o seu estilo.

O garoto me olhou desconfiado por alguns segundos.

— Eu vou tomar isso como um elogio, filhotinho. Os meus pôsteres no dormitório realmente não pintam a imagem mais favorável de mim.

Eu ri, me lembrando das imagens coladas ao lado da cama de Pujit. Eu não me recordava de todas, mas eu sabia que havia uma fotografia de um carro de corrida e outra de uma garota bronzeada de biquíni.

— Você participou de muitas peças antes de vir pra St. Dominic?

Pujit negou com um aceno de cabeça.

— Os meus pais sempre acharam que teatro era uma “perda de tempo”, palavras exatas deles. Eles não viam problema quando eu era pequeno e gostava de participar das peças da escola, mas eu acho que eles esperavam que eu abandonasse esse gosto quando crescesse. Bom, se o professor Graves continuar me descascando desse jeito, talvez eles consigam que eu desista...

— Oh, não diga isso.

Meu roommate deu com os ombros.

— Os meus pais são médicos. Cirurgiões, ambos. As minhas duas irmãs mais velhas também. Você sabe, família indiana. Eles esperam que eu siga o mesmo caminho, e participar de peças de teatro não é exatamente algo que contribua pra esse meu futuro profissional.

Acenei com a cabeça, denotando que compreendia. Eu já tinha ouvido histórias muito parecidas por parte dos meus colegas de classe no Japão. A expectativa familiar era um dos nossos maiores medos, eu bem sabia. Era por isso que eu estava naquela escola, afinal de contas. Me entristecia perceber que as coisas não eram diferentes na América. Nos filmes americanos que eu assistia, parecia que todos os pais encorajavam os filhos a seguirem seus sonhos. Se aquilo não era verdade para suas carreiras, definitivamente não devia ser verdade para quem eles escolhiam amar.

— Eu tenho certeza que eles vão compreender, eventualmente. — Falei, tentando soar otimista, mas eu não sabia se acreditava nas minhas próprias palavras.

Pujit abriu um sorriso fraco.

Quando nós chegamos na porta da biblioteca, eu percebi a figura de Binky sentada lá dentro. Ele lia um livro de capa preta que eu não consegui identificar o título. Daquela distância a capa me parecia familiar, mas eu não conseguia ter certeza.

— Você pode entregar pra mim? Eu preciso ir ao banheiro. — Falei de repente, desviando o meu olhar do garoto.

Pujit franziu o cenho. Era óbvio que ele não tinha acreditado na minha mentira, mas não importava. Deixei os livros nas mãos dele e saí dali a passos rápidos, seguindo até a sala onde teríamos a nossa próxima aula.

xxx

Aos poucos os meus dias na St. Dominic entraram em uma rotina relativamente agradável. Eu já começava a conhecer todas as instalações, pessoas e professores, embora não tivesse feito outros amigos além de Pujit. Isso se é que ele me considerava um amigo. Eu passava todos os dias assistindo aulas, estudando, treinando com os Cerberus ou então conversando com meu roommate a respeito de um bocado de coisas diferentes. Durante os dias que se seguiram eu consegui trocar minhas primeiras palavras com Atticus, embora não tivesse sido algo notável. Ele apenas respondera o meu cumprimento pela primeira vez, e então perguntara o meu nome. Era um começo.

O clube de literatura asiática não parecia que iria vingar. Apesar do mister Takami estar otimista, nós não havíamos conseguido nenhum outro membro. O professor tinha me pedido tempo, mas eu não acreditava que tempo fosse fazer alguma diferença.

Nos treinos do time, eu tentava não prestar atenção na presença de Binky. Nas aulas isso era fácil, porque nós sentávamos em lugares bem distantes dentro da sala, mas não era possível que eu utilizasse a mesma estratégia durante os treinos. Eu o cumprimentava de maneira educada e distante, e ele retribuía. Na quadra nós cooperávamos quando era necessário, mas eu tentava ao máximo limitar nossas interações. Nas vezes em que eu ficava tentado a olhar em sua direção, ele sempre estava olhando de volta para mim.

O treino tinha acabado por aquele dia. Me sentei na arquibancada, exausto. Samuel e uns outros garotos passaram por mim e se despediram com um cumprimento. O mister Strong já não estava mais ali, e aos poucos todos os garotos seguiram para os vestiários.

— Me desculpe se eu fiz algo que te deixou desconfortável. De verdade.

Me assustei com a fala repentina. Binky se sentou do meu lado, tão suado quanto eu.

— Podemos começar de novo? — Ele perguntou me estendendo o braço.

Pensei por uns segundos. Daí assenti com a cabeça e apertei a mão dele.

— Eu é que peço desculpas. Você não fez nada de errado.

Era verdade. Estar evitando Binky não tinha nada a ver com ele, mas comigo mesmo. O garoto concordou com a cabeça e abriu um sorriso diferente de todos os outros que já havia dado. Aquele era um sorriso... Doce.

— Eu terminei de ler um livro. — Ele falou de repente, olhando pra frente.

— Hm... Parabéns?

Binky riu.

— Eu queria ter pedido uma recomendação sua, mas...

O garoto então pegou a mochila ao seu lado e retirou um livro de dentro dela. Era o mesmo livro que ele estava lendo na biblioteca dias antes, e agora eu o reconhecia. Peguei o objeto nas minhas mãos, lendo o título na capa: “Battle Royale”. Aquele era um dos meus livros favoritos.

— Eu confesso que eu só escolhi esse porque o Beckett me disse que o filme tinha bastante sangue. E também o autor tem o mesmo sobrenome do mister Takami.

— Oh, é verdade. — Eu não tinha reparado naquela coincidência.

Analisei a capa por alguns segundos, refletindo o que aquilo significava.

— E você gostou?

— Demais! — Binky exclamou, parecendo genuinamente empolgado. — E eu preciso dizer que a Takako é de longe a minha personagem favorita!

Nós passamos os minutos seguintes conversando sobre detalhes do livro. Era curioso estar tendo a minha primeira conversa real com Binky naquele momento, depois do que já tinha acontecido.

— Você leu esse livro por causa do clube? — Eu perguntei um pouco depois.

Binky concordou com a cabeça.

— Eu tenho algum tempo livre nesse semestre.

Então o garoto esticou o braço e tocou a minha mão em cima do banco. Eu instintivamente a puxei, mas daí olhei pra ele de maneira confusa. Binky me olhava da mesma maneira de antes, o seu sorriso doce lentamente se transformando em seu sorriso malicioso. E ainda havia o seu cheiro. Eu detestava o perfume que ele costumava usar, mas ali, naquele momento, ele tinha o melhor cheiro do mundo.

Segurei a nuca de Binky com um movimento e lhe dei um beijo. Ele devolveu o gesto, mas em seguida me afastou pelos ombros.

— Aqui, não. Eu conheço um lugar.

Binky subitamente correu pra longe, e eu fiquei parado por alguns segundos, sem saber o que fazer. Peguei a mochila dele em cima dos bancos e corri para a direção que ele havia ido. O garoto me esperava debaixo da arquibancada, em uma área isolada do ginásio. Ele estendeu o braço e me chamou com um aceno de mão. Segurei sua mão e ele me puxou com um movimento, encostando meu corpo na parede.

xxx

Spencer e eu éramos as duas últimas pessoas na sala de aula. Eu estava debruçado sobre o meu caderno, tentando finalizar uma atividade antes que a minha concentração desaparecesse. Era uma lição de matemática para a aula seguinte, mas eu preferia terminá-la o quanto antes.

Notei que Spencer se sentou em uma carteira distante de mim, olhando para o quadro e então para as paredes. Aquilo era estranho. Pela primeira vez eu prestei atenção nele. Spencer tinha a pele pálida, olhos claros e cabelos lisos, finos e da cor de areia. Eu não sabia dizer qual era a cor exata dos olhos dele, porque o garoto nunca olhava para algum lugar por tempo suficiente para eu descobrir. O pescoço de Spencer era coberto por cicatrizes cor de rosa.

Spencer não era capaz de falar, embora sua audição não fosse prejudicada. Ele ria audivelmente de vez em quando, mas os seus sons se limitavam a isso. Na aula ele ficava sempre quieto, e nas poucas vezes em que precisava se comunicar, escrevia algo em um papel. A exceção era a aula do professor Takami. O nosso professor de Literatura sabia a língua de sinais, então Spencer se comunicava com ele através de gestos. O professor então verbalizava o que o garoto tinha falado, e aquelas eram as únicas aulas em que eu o via realmente interagindo, ao invés de se escondendo em sua carteira no fundo da sala. Eu já tinha visto Spencer na companhia de um único outro garoto, mas era claro que ele não tinha muitos amigos. E isso eu compreendia bem.

Eu não tinha ideia se as cicatrizes no pescoço dele tinham algo a ver com a sua condição, mas aquilo não era da minha conta.

E então subitamente eu entendi porque ele ainda estava na sala.

— Oh, ele precisa trancar a sala! — Pensei em voz alta.

Spencer se virou na minha direção e concordou com a cabeça, visivelmente envergonhado.

— Eu não queria te atrapalhar, me desculpe. — Falei enquanto guardava meus materiais.

O garoto acenou de maneira gentil com a cabeça.

— O meu nome é River. — Eu falei, me aproximando da carteira dele.

Estendi o braço e Spencer demorou alguns segundos para apertar minha mão. Ele então pegou uma caneta, e eu imaginei que fosse escrever alguma coisa. Ao invés disso, porém, o garoto apenas apontou pro objeto.

— Pen? — Falei, incerto. E então eu compreendi. — Oh, Pen! De Spencer!

O garoto abriu um sorriso tímido e concordou com a cabeça.

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Olhei para Spencer e ele parecia confortável, embora não fixasse o seu olhar no meu.

— Enfim, me desculpa pelo empecilho, Spen... Pen.

O garoto abaixou a cabeça e dessa vez eu percebi que ele começou a escrever algo em um papel.

“Eu gostaria de participar do seu clube de literatura, se tivesse mais tempo”, eu li. Sorri.

— Oh, não tem problema. Eu acho que o clube não vai pra frente.

Pen voltou a escrever no papel.

“Isso é uma pena”.

Daí ele se debruçou sobre o caderno mais uma vez.

“É um prazer, River”, estava escrito.

Eu assenti, sorrindo em resposta.

— Até a próxima aula, Pen. — Falei, seguindo em direção a porta.

O garoto concordou com a cabeça. Pela primeira vez eu consegui ver seus olhos azuis parados em um ponto fixo.

xxx

Aquela era a primeira vez que eu estava deliberadamente descumprindo uma regra desde que havia chegado na St. Dominic. Apesar de ainda não ser o horário do nosso toque de recolher, nós não deveríamos estar do lado de fora do castelo. Naquele momento Pujit e eu estávamos deitados na grama verde, observando a imensidão escura acima de nós. O céu estava coberto de estrelas, o que não era muito comum em Rainfort. Fazia um pouco de frio, mas eu não me importava. O cheiro do vento era bom.

— Você entende de estrelas e constelações e essas coisas todas? — Meu roommate perguntou.

— Não...

— Ah.

— Você achou que eu entendia?

— Sim.

Nós dois rimos.

— Essa pergunta vai soar meio estranha, mas... — Eu comecei, mas daí imediatamente percebi como aquilo soava. — Não é sobre o Matthew, eu juro!

— Faça a sua pergunta estranha, filhotinho. — Pujit falou em um tom brincalhão.

Encarei as estrelas no céu por alguns instantes, e daí falei:

— Nós já podemos nos considerar amigos? Quero dizer... Eu te considero meu amigo. Tudo bem pra você?

Pujit soltou uma gargalhada.

— No Japão as pessoas são tão formais assim na hora de fazer uma amizade? Parece que você está me pedindo em namoro.

Eu ri, Daí o garoto respondeu, olhando pro céu:

— Nós somos amigos, River.

Aquilo me deixou feliz. Ergui o braço e fechei os dedos num punho, e Pujit fez o mesmo, batendo na minha mão.

— Já que agora nós somos amigos... — O garoto começou a falar, e eu me preparei pro que viria a seguir. — Eu não sei nada sobre a sua família, sobre como e porque você veio estudar na academia... Deve ter algo interessante aí, eu tenho certeza.

Dei com os ombros. Aquele era um hábito novo que eu tinha pegado do Pujit.

— Que parte você quer saber?

— Todas! Nós temos tempo, vai.

Pensei por alguns segundos. Eu ainda não queria contar tudo pro meu novo amigo, mas eu podia contar boa parte da história sem precisar mentir em nenhum momento.

— Eu nasci aqui nos Estados Unidos, em Nova Iorque. Os meus pais se separaram quando eu era bem pequeno, e daí eu fui viver com a minha mãe no Japão. Eu voltei uma vez ou outra pra América pra visitar o meu pai, mas sempre por pouco tempo.

— Por isso o seu inglês é assim, né?

Eu sorri com a pergunta do meu amigo. Ele se referia ao meu inglês com sotaque britânico. Concordei com a cabeça.

— E você nunca quis morar aqui?

— Não. Isso é um pensamento bem americano, aliás. — Respondi, e o Pujit riu. — O Japão é a minha casa, eu não tinha motivos para querer viver aqui.

— E onde você vivia no Japão? Em Tóquio?

Concordei.

— Com a minha mãe, o marido dela e os meus dois irmãos mais novos, filhos dela com esse novo marido. Eles são gêmeos.

— Kawaii! — O Pujit exclamou em um tom brincalhão. — E por que a sua mãe te mandou pra St. Dominic?

— Ela me mandou pra viver com o meu pai, na verdade. — Falei, tentando mudar um pouco o foco da história. — Só que ele concluiu que não tinha tempo suficiente pra dedicar a mim, e que seria bom pro meu futuro se eu estudasse em uma instituição renomada como a Saint Dominic Academy For Boys.

— Rá! Típico! — O garoto exclamou. — O meu pai me disse a mesma coisa.

Fiquei aliviado por ele não ter indagado mais coisas.

— E a sua família? Eu só sei que você tem duas irmãs mais velhas.

— Ah, eu tenho duas irmãs mais novas também.

— Quatro meninas? E você é o único menino?

Pujit concordou com a cabeça.

— Pelo que você me disse da relação dos seus pais com o seu gosto por teatro, eles parecem conservadores. Estou correto?

— Para dois britânicos de descendência indiana, pelo contrário! — O garoto respondeu. — Ainda é bem comum casamentos arranjados dentro da nossa comunidade, mas eles não forçaram nenhuma das minhas irmãs a se casarem. As duas são solteiras, aliás. E eu tenho certeza que pelo menos uma delas é lésbica. Talvez as duas.

— Oh. — Eu exclamei. Arrisquei: — E como você se sente sobre isso?

O garoto pareceu confuso com a minha pergunta. Ele se sentou na grama, e então eu fiz o mesmo.

— Em quê sentido?

— Sei lá.

Pujit pensou por alguns segundos.

— Eu ficaria preocupado com a reação dos meus pais, eu acho. Uma filha se casar por amor e não por conveniência é uma coisa, mas ela se casar com outra garota... Talvez seja testar demais os limites da tolerância deles. Mas se ela estiver feliz, eu fico do lado dela.

Abri um sorriso tímido, encarando as luzes acima das nossas cabeças. Nós ficamos em silêncio pelo que pareceu uma meia hora, mas eu me sentia bastante confortável em silêncio, na presença de Pujit.

— Ele era gay. — O meu amigo falou de repente.

Por alguns segundos eu não entendi a quem ele se referia. Pujit colocou a mão no bolso da calça e retirou uma carteira de lá. Ele me entregou o objeto e eu o abri. Havia umas notas de outros países ali, e então algumas fotos. Algumas delas eram de pessoas que eu acreditava serem da família dele, mas então havia a foto de um garoto.

O garoto tinha uma aparência angelical, com cabelos e olhos claros, pele clara como o gesso e bochechas rosadas. Girei a foto e atrás dela estava escrito:

Você foi a melhor coisa que aconteceu comigo. Obrigado por ter sido meu amigo.

Aquelas palavras cortaram o meu coração.

— Eu não deixo no quarto porque eu tenho medo de alguém pegar. Eles não gostavam do Matt.

— Eles quem? — Eu perguntei com a voz entrecortada.

— Os outros garotos. O Knox, o Binky, os gêmeos. Quase todos, na verdade. Mas especialmente o Knox. Ele sempre foi o pior de todos com o Matt. E eu sempre fui covarde demais pra defender o meu amigo.

A menção ao Binky fez o meu estômago embrulhar.

— Eu era o único amigo do Matt, e ele era o meu único amigo. Eu menti pra você quando eu falei que nós dois não éramos próximos. — Pujit abaixou a cabeça. — Ele já morreu e nem assim eu deixo de ser um covarde estúpido...

O meu amigo deu um soco na grama e eu vi algumas lágrimas silenciosas caindo do rosto dele.

— Eles me provocavam também, mas eu não ligava. Só que o Matt sofria mais porque ele não era do jeito que eles queriam, sabe? Ele não conseguia esconder quem ele era. Eles fizeram a vida dele um inferno até o dia que ele não aguentou mais.

Fiquei alguns segundos em silêncio, sem saber o que dizer.

— Eu sinto muito.

Falei aquilo e entreguei a carteira para Pujit, com a foto de Matthew ainda do lado de fora. O meu amigo encarou a fotografia por alguns segundos e suspirou.

— Se eu tivesse ficado do lado dele, ele não teria feito isso. Mas eu tinha medo deles acharem que eu também era gay e começarem a me provocar igual provocavam o Matt, então eu nunca fiz nada. Nada. Eu...

Pujit não continuou a falar.

Eu suspirei.

— A minha mãe me mandou pros Estados Unidos porque ela descobriu que eu gostava de um garoto.

Meu amigo virou o rosto na mesma hora, seus olhos brilhando com as lágrimas que ainda estavam ali.

— O nome dele é Hikaru. E ele também está morto.

Pujit se aproximou de mim sem falar nada. Ele encostou o seu ombro no meu e suspirou longamente.

— A história dele era exatamente a mesma do Matthew. Ele sofria as mesmas provocações e tudo mais. Só que nós dois estudávamos em escolas diferentes, então eu não sabia. A gente se conheceu por acaso em uma estação de trem, quando eu estava voltando da escola pra casa. Todo dia a gente se encontrava por lá e ficávamos conversando. A gente se beijou uma vez só. E daí um dia ele não apareceu na estação de trem. Quando eu cheguei em casa, entrei na internet e descobri que ele tinha morrido e que os garotos que o provocavam eram os culpados. Eles falaram que tudo não passou de um acidente, mas não faz diferença.

Fechei os olhos e imaginei o rosto de Hikaru na minha frente. Imaginei os seus cabelos cor de rosa, o seu sorriso tímido, as suas mãos quentes.

Pujit esticou o braço e me abraçou. Fiquei alguns segundos parado, sem saber como reagir. Eu não estava acostumado a receber abraços. Aos poucos meus músculos relaxaram e eu retribui o gesto.

— Se alguém te encher o saco e você não me falar, eu mesmo vou quebrar a sua cara. — O meu amigo falou, rindo e limpando o rosto.

Eu ri junto com ele. Era bom ter um amigo como Pujit.

xxx

— Pujit, pelo amor de tudo o que é mais sagrado.

Meu amigo tinha conseguido o impossível. Eu não sabia uma maneira de explicar o conteúdo daquela matéria pra ele. Aquilo nunca tinha me acontecido.

— Eu te falei que eu sou burro, River...

— Você não é burro. Eu só não estou conseguindo compreender o que você não está entendendo.

Pujit suspirou longamente e deitou o rosto em cima dos livros. Nós estávamos na biblioteca naquele momento, mas havia poucos pupilos ali. O lugar era enorme, com gigantescas estantes de madeira escura apinhadas de livros. Mesas e cadeiras do mesmo material existiam entre os corredores, e enormes candelabros estavam pendurados no teto.

— River? — Eu ouvi uma voz dizer.

mister Takami caminhava pra fora da biblioteca, passando por onde eu e meu amigo estávamos sentados. Eu me levantei instintivamente, para sinalizar que tinha ouvido ele me chamando. O professor sorriu e disse:

— O livro que você me pediu chegou. O mister Graves inspeciona todos os livros que são doados à biblioteca, então você vai precisar pegar na sala dele. Tudo bem?

— Sim, senhor. Obrigado!

mister Takami se despediu de nós com um aceno e daí saiu da biblioteca.

— Vish, boa sorte. — O meu amigo falou, voltando o rosto para as equações na página.

Decidi ir buscar o livro naquele instante. Me levantei e me virei para Pujit.

— Quando eu voltar eu vou ter pensado em um jeito de fazer essa matéria entrar na sua cabeça. Isso ainda não acabou!

O meu amigo revirou os olhos. Eu ri e saí. Os corredores já me eram familiares.

Quando cheguei na porta da sala do mister Graves, ela estava fechada. Decidi esperar um pouco. O livro que eu havia pedido ao mister Takami era um manual da American Sign Language, a língua de sinais dos Estados Unidos. Por algum motivo eu queria conseguir me comunicar melhor com Pen, e aquela era a única maneira.

Depois de quinze minutos, decidi que talvez o melhor fosse bater e pedir licença. Me aproximei da porta, e então eu ouvi duas vozes lá dentro. Uma delas era do mister Graves, mas a outra parecia uma voz feminina. Aquilo me deixou confuso por alguns segundos. Eu nunca tinha visto nenhuma mulher na academia, nem mesmo entre os funcionários.

A minha curiosidade tomou o melhor de mim. Encostei o ouvido na porta e consegui ouvir:

— ... Eu lhe asseguro mais uma vez que a morte do garoto não teve qualquer relação com a St. Dominic Academy. Ele tinha um longo histórico de depressão e suicidou-se, apenas isso. Na medida do possível, nós conseguimos manter toda a atenção indesejada longe da nossa instituição. Isso não afetará de forma alguma a relação entre a academia e a Foundation.

O silêncio durou alguns segundos.

— Isso não cabe a você decidir, Deputy Headmaster. — A voz feminina respondeu. — Mas eu fico satisfeita em ouvir essas explicações vindas do senhor. Eu sabia que uma visita em pessoa era a melhor alternativa.

— As portas da St. Dominic estão sempre abertas para a Foundation.

Mais uma vez, o silêncio.

— Oh! Eu já ia me esquecendo. — A voz feminina disse. — Como está saindo a peça? Os investidores estão curiosos.

— Vocês podem esperar um sucesso, miss Clarke. Os garotos estão trabalhando duro.

— Ótimo! — E então eu ouvi o som de uma cadeira se movendo, e me afastei rapidamente da porta.

A sala do mister Graves se abriu, e de lá de dentro saiu uma mulher negra e elegante. Ela vestia-se com um terno branco e um par de saltos da mesma cor nos pés. O broche de um triângulo branco quase imperceptível estava preso na lapela de seu paletó. A tal miss Clarke nem mesmo notou a minha presença quando saiu, caminhando a passos largos pelos corredores que davam na saída dos fundos da mansão.

— Mister Ito. — O Deputy Headmaster falou, me assustando levemente. Ele não parecia feliz em me ver.

— Me desculpe pelo incômodo, senhor. Eu vim buscar um livro, o mister Takami falou...

O professor desapareceu para dentro da sala e voltou alguns segundos depois com o objeto em mãos. Ele me entregou o livro sem dizer nenhuma palavra e fechou a porta atrás de si.

Eu não entendia quase nada do que tinha acabado de ouvir ali. Eu compreendia que eles tinham falado sobre a morte de Matthew, e sobre uma tal de “Foundation” que investia na escola. Mas o que aquilo tudo significava?

Não fazia diferença. Mais uma vez eu precisava repetir para mim mesmo que nada daquilo era da minha conta. 

 

 


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Notas finais do capítulo

:D



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