Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 3
Son of a Preacher Woman


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



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Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Setembro de 2020.

O som repetitivo do apito no meu ouvido começava a me irritar. Pi. Pi. Pi.

Tirei os aparelhos auditivos e por alguns segundos eu só ouvi o som do silêncio. Não fazia muita diferença, o único som ali era o da chuva forte caindo do lado de fora. Eu não sabia quanto tempo demoraria para eu me acostumar às chuvas daquele lugar. Nós não tínhamos chuvas como aquelas no Texas.

Não tinha mais ninguém na pequena capela da escola. Nunca tinha. Eu imaginava que os outros garotos só viessem ali quando era obrigatório, mas eu gostava da calma daquele lugar. Eu nunca tinha visitado uma capela católica quando era pequeno, por causa dos meus pais, mas eu gostava de como me sentia ali. Meu pai dizia que Deus estava em todos os lugares, então Deus também devia estar ali.

Meus pais eram pastores de uma igreja protestante no Texas. Mais do que isso, eles eram um casal de celebridades na internet. Os dois tinham um canal no Youtube onde falavam sobre a sua fé, família, relacionamento e a maneira como Deus estava presente em todos esses aspectos da vida deles. Essa era a nossa vida desde que eu nasci, então eu sempre achei natural ver meu pai ou minha mãe com uma câmera na mão.

Quando eu cresci um pouco, percebi que boa parte da fama deles na internet era porque os dois eram muito bonitos. Meus pais tinham um relacionamento perfeito, abençoado por Deus e de acordo com as leis Dele. Eles tinham até mesmo “superado o desafio” de ter um filho com uma deficiência. Cresci ouvindo como eu era uma lição de Deus para os dois, que eu os ensinava a serem humildes e persistentes.

Eu amava os meus pais mais do que tudo. E eu acreditava que o relacionamento deles era tão perfeito quando eles diziam. Eles nunca brigaram na minha frente, nunca. A minha infância foi boa, os dois sempre me amaram muito. Não tinha nada de errado com eles.

E então, um dia, minha mãe desapareceu. Eu me lembrava com todos os detalhes daquele dia. Minha mãe e eu tínhamos combinado de escolher um bolo pro meu aniversário na semana seguinte. Eu iria completar nove anos. Mas daí ela não veio me buscar na escola. Quando o meu pai chegou, umas horas depois, eu sabia que tinha alguma coisa errada. Eu me lembrava de cada momento e de cada palavra daquele dia.

Eles nunca encontraram a minha mãe, mesmo com todo o apelo público que o caso teve. Por meus pais serem relativamente famosos, o desaparecimento dela rendeu notícias em vários jornais, especialmente no Texas. Muitas pessoas se juntaram nas buscas pela cidade e por cidades vizinhas.

Por outro lado, meu pai rapidamente se tornou o principal suspeito, e foi a partir disso que eu vi tudo o que falavam de ruim sobre eles na internet. A quantidade de pessoas que gostava dos meus pais era a mesma de pessoas que não gostavam deles. Eu sempre tentei impedir que o que falavam me influenciasse sobre a maneira como eu via os dois, mas uma parte de mim sempre se perguntaria se havia alguma verdade. Seria possível que o relacionamento deles não fosse perfeito como parecia? Seria possível que o meu pai tivesse alguma coisa a ver com o desaparecimento da minha mãe?

A vida continuou. Já fazia um pouco mais de cinco anos que a minha mãe tinha desaparecido. Aos poucos o sumiço dela se tornou apenas outro dos desafios que o meu pai teve que enfrentar na sua jornada cristã. A popularidade dele na internet se multiplicou e, embora ele não fizesse vídeos com a mesma frequência de antes, o canal ainda existia, ainda com milhões de seguidores.

Foi ideia dos meus avós, os pais do meu pai, me enviar para a St. Dominic. Meu pai e eu conversamos sobre o assunto, e na verdade não fazia muita diferença pra mim. Desde o desaparecimento da minha mãe, meu pai gastava mais tempo em missões em outros estados (ou países) do que em casa, então eu não me importava de ser enviado pra um colégio interno.

Eu estava na St. Dominic tinha pouco mais de um mês, como um freshman, aluno do primeiro ano. Eu ainda estava me adaptando a tudo, mas eu já tinha feito um amigo, então isso era bom.

Olhei para frente e observei o santo na parede, Era Saint Dominic Savio, o patrono da academia. Eu tinha pesquisado sobre ele, e tinha aprendido que Dominic Savio era um dos santos mais jovens da igreja católica, e a única criança não-mártir a ter sido canonizada. Ele morreu aos quatorze anos, a mesma idade que a minha.

De repente alguém me cutucou. Eu dei um pulo, assustado.

Olhei pro lado e vi o Yates parado ali. A boca dele se mexia, mas eu não ouvia nada. Apontei pro meu ouvido e pedi que ele parasse de falar um pouquinho. O meu amigo entendeu e concordou com a cabeça, sentando do meu lado enquanto eu colocava os aparelhos de volta no ouvido. O Yates era negro e bem alto, mais que todos os outros freshmen. Ele sorria bastante.

— Pronto, pode falar.

— Desculpa pelo susto, eu não vi que você estava sem eles.

— Relaxa. O que você está fazendo aqui?

— O Julian pediu pra todos irem até o auditório. Parece que alguém assumiu a culpa.

Aquilo me surpreendeu. O Yates estava falando do boneco enforcado no corredor dos dormitórios dos stray. Eu não esperava que alguém fosse assumir a culpa daquela brincadeira.

Nós saímos da capela, atravessando a chuva correndo. Todo mundo se dirigia pro auditório, e nós dois seguimos atrás. A maioria dos garotos parecia empolgada, o que me deixou animado também. Eu odiava o horário do novo toque de recolher que o Headmaster tinha colocado como punição.

— Em quem você aposta? Eu aposto no The King. Isso é a cara dele.

Eu não tinha certeza. O The King era um senior que sempre protestava durante os anúncios oficiais, e boa parte dos outros garotos sempre ficava do lado dele, especialmente os stray. Mas ele parecia alguém que confrontava na cara, então aquela brincadeira não parecia o estilo dele.

Dei com os ombros, e o meu amigo me empurrou de brincadeira.

Yates era o meu único amigo na escola. E eu era o único amigo dele também. Ele era o meu roommate, e nós tínhamos nos dado bem desde o primeiro dia. Eu gostava especialmente do senso de humor dele. O meu novo amigo era muito bom criando coisas, e desde que nós tínhamos chegado na academia ele estava trabalhando em um robozinho que servia pra alguma coisa que eu não entendia direito. Eu tinha ajudado ele uma vez, mas eu realmente não entendia nada daquele assunto.

O auditório estava lotado. O Yates me puxou até dois bancos livres em uma das primeiras fileiras, próximos do corredor. Eu me sentei do lado de um garoto asiático, e o garoto me cumprimentou com um aceno de cabeça. Eu retribuí e me virei para frente. O ar condicionado estava ligado, então eu espirrei. O garoto asiático me ofereceu um lenço de papel e eu agradeci, assoando o nariz.

Headmaster não estava ali. No palco eu conseguia ver o vice-presidente do corpo estudantil, Teague, e o Deputy Headmastermister Graves. Todos os garotos conversavam na plateia, mas não muito alto.

E então eu percebi que todos os garotos atrás de mim começaram a se levantar, o auditório todo ficando em silêncio. Eu pensei na hora que os meus aparelhos tinham acabado as pilhas, já que eles estavam apitando uns minutos antes. Mas daí eu vi o garoto na cadeira de rodas passando ao lado do Yates. Julian atravessou a rampa em direção ao palco e todos os que ainda estavam sentados se levantaram, incluindo meu amigo e eu.

Assim que o presidente do corpo estudantil parou no centro do palco, os garotos gritaram o lema da escola e se sentaram todos ao mesmo tempo. Teague e o mister Graves estavam ao lado de Julian, de pé.

O respeito que todos os garotos tinham pelo Julian era o que mais tinha me surpreendido na academia. Ninguém questionava a autoridade dele, nem mesmo pelas suas costas. Eu escutava conversas no refeitório e pelos corredores, e o Julian parecia ser a única pessoa que todos, sem exceção, gostavam. Eu achava aquilo muito bacana.

O Julian tinha conversado diretamente comigo no meu primeiro dia na academia. No começo eu imaginei que tivesse a ver com os meus aparelhos auditivos, mas o assunto não surgiu na conversa. Tudo o que ele falou foi que estava disponível caso eu precisasse de alguma coisa durante a minha adaptação, e que esperava que eu gostasse da minha experiência na St. Dominic.

— Certo. — O presidente falou no microfone, assentindo com a cabeça.

Julian era magro e pálido, com olhos claros, cabelo liso e óculos de armações finas. Ele sempre falava devagar e com ênfase, e eu imaginava que devia ter algo a ver com a sua paralisia cerebral. Era por causa dela também que ele usava uma cadeira de rodas.

— Eu reuni todos vocês aqui porque hoje mais cedo eu recebi uma carta, anônima. Seu autor disse ser a mesma pessoa que construiu a disposição do boneco enforcado no corredor do dormitório dos Dogs, e seu desejo era o de assumir a culpa por este ato. Bom... Quem quer que você seja, tem nossa atenção.

O silêncio dos segundos seguintes foi ensurdecedor. E daí eu ouvi uns garotos cochichando e umas risadas, e um garoto se levantou da cadeira no meio do auditório.

— Eu falei... — O Yates cochichou pra mim.

The King estava de pé, com as mãos na frente do corpo, olhando de maneira séria para o palco.

— Fui eu, Julian.

O nosso presidente acenou com a cabeça. A expressão facial dele era neutra, e eu não conseguia identificar o que ele diria em seguida.

— Nós estamos cientes da sua posição sobre o toque de recolher, Kingsley. Assumir a culpa por essa brincadeira não é o caminho para provar o seu ponto.

— Eu estou falando que eu fiz isso. — The King falou alto pra todo mundo ouvir. — Eu assumi a culpa e estou disposto a receber a minha punição. Ninguém além de mim tem culpa nisso.

— Pare já com essa bobagem! — O mister Graves falou. A voz dele era alta e grossa mesmo sem o microfone. — Se essa é a sua ideia de uma brincadeira, mister Herrero, saiba que não tem graça nenhuma.

— Eu estou assumindo a culpa, caramba! — O garoto exclamou, e todo mundo no auditório começou a falar. — Do que mais vocês precisam?

Olhei pro Julian e vi que ele olhava The King com atenção. O Deputy Headmaster parecia muito irritado.

— Você sabe quais vão ser as consequências? — O presidente perguntou.

— Não importa, eu aceito.

— Mesmo se isso significar a sua expulsão?

The King esperou alguns segundos e daí acenou com a cabeça. Ele não parecia convencido ou metido, então eu achei a atitude dele muito bacana. Na mesma hora alguns garotos começaram a assoviar e aplaudir, começando um coro de “The King! The King! The King!”. Até o Yates começou a gritar, e eu fiz a mesma coisa.

mister Graves pediu silêncio, mas os garotos não obedeceram. Foi só quando o Julian começou a falar, que todo mundo ficou quieto.

— Eu sei que não foi você, Kingsley. Nós estudamos juntos há quase quatro anos. Nós chegamos juntos nessa escola. Eu acho que lhe conheço o suficiente para saber que assumir essa culpa é a sua ideia de um protesto.

— E eu te conheço o suficiente pra saber que você sabe que isso não faz diferença nenhuma, Julian. Se eu falei que fui, você tem que aplicar as punições cabíveis.

Julian concordou com a cabeça.

— Tudo bem. — Daí ele virou o rosto e cochichou alguma coisa com Teague, falando um pouco depois: — O Headmaster irá fazer um pronunciamento antes do jantar.

Olhei na direção de The King e ele estava com a cara séria. O Yates parecia empolgado igual todos os outros garotos. Apesar disso, todo mundo ficou quieto.

— Me desculpem por atrapalhar os trabalhos de vocês. — O Julian falou. — Vocês estão liberados. Por favor, saiam de maneira ordenada e em silêncio.

Todos os garotos se levantaram ao mesmo tempo, enquanto o presidente descia com sua cadeira de rodas. Ele passou pelo corredor do nosso lado, olhando bem rápido pra mim. Eu não tive tempo de reagir, e daí o Julian já tinha desaparecido pra fora do auditório.

xxx

Yates e eu comíamos enquanto conversávamos. Assim como Julian tinha dito, o Headmaster tinha se pronunciado um pouco antes do jantar, dizendo que o toque de recolher estava suspenso. Nós não tínhamos ideia do que aconteceria com The King.

Vários freshmen estavam sentados ao meu redor. Por estarmos a poucas semanas na escola, todos nós ainda éramos Dogs, mesmo aqueles que começavam a tirar boas notas nas primeiras avaliações e trabalhos. Havia um ou outro Fox por ali, a maioria irmãos ou conhecidos de algum freshman, mas no geral a divisão dos Packs era bem visível.

Eu senti a batida contra a minha cabeça de repente. A primeira coisa que eu ouvi foi um zumbido forte, e depois o silêncio. O Yates me olhou com os olhos arregalados, e eu demorei uns dois segundos pra entender o que estava acontecendo. Um dos meus aparelhos auditivos estava caído em cima do meu prato de comida, e eu não conseguia ver onde estava o outro.

Quando o garoto que tinha esbarrado em mim chacoalhou as mãos na frente do meu rosto, eu fiquei com muita raiva. Eu virei bem rápido e empurrei ele até a parede. Eu senti uns braços me segurando quase na mesma hora, e daí eu vi a mão do Yates estendida na minha frente, segurando um dos meus aparelhos auditivos, um pouco sujo de molho. Eu peguei o objeto e limpei ele no meu paletó, colocando na orelha e ouvindo:

— Que porra você pensa que está fazendo, vira-lata?

O garoto na minha frente me olhava com raiva e irritação.

— Binky, não cria caso. — Um garoto atrás de mim disse.

Eu só conseguia ouvir pela metade, mas era o suficiente.

— Não, se esse filhotinho está procurando por problema, ele acaba de encontrar.

Eu olhei para trás e vi três garotos dos Foxes me observando, assim como os outros freshmen que estavam sentados perto de nós. Um dos Foxes tinha a pele e os cabelos escuros, enquanto os outros dois eram loiros e tinham os olhos claros. Estes dois últimos eram gêmeos.

— Por que você fez isso? — Foi tudo o que eu consegui dizer depois de alguns segundos.

O tal Binky, o que tinha me empurrado, me olhou com uma expressão de deboche.

— Foi um acidente, filhotinho. Parece que alguém aqui não tomou a vacina pra raiva...

Um dos gêmeos riu alto, e aquilo me deixou com raiva de novo. Eu ergui o braço pronto pra socar o rosto de Binky, mas o garoto de cabelo escuro atrás de mim segurou o meu braço.

— Você vai se arrepender disso quando a raiva passar. — Ele falou com uma voz calma, me soltando. — Qual é o seu nome?

— O nome dele é Woodstock. — O Yates respondeu por mim.

Meu olhar estava fixo em Binky, o jeito debochado dele me irritando muito. Tentei respirar fundo algumas vezes. Ainda sem olhar para trás, eu ouvi o garoto que tinha perguntado o meu nome dizer:

— Eu sou o Samuel. Esse garoto aí na sua frente é o Binky, e os dois do meu lado são o Barrett e o Beckett.

Por algum motivo o tom de voz do tal Samuel me deixou um pouco mais calmo. Aos poucos todos os músculos do meu corpo relaxaram e eu abaixei a cabeça.

— Isso mesmo, filhotinho, sai com o rabinho entre as patas.

— Binky... — Samuel falou, suspirando.

Eu suspirei longamente. Binky se abaixou e pegou o outro dos meus aparelhos auditivos do chão, estendendo a mão na minha direção. Quando eu fiz menção de pegá-lo, o garoto puxou a mão. A raiva crescia mais e mais dentro de mim. Quando ele estendeu a mão pela segunda vez, eu não me mexi.

— Tá aqui a sua orelhinha. Agora diz: “por favor”.

— Binky, chega. — Eu ouvi um dos gêmeos dizer atrás de mim.

Me virei e vi que era aquele que Samuel tinha apresentado como Barrett, o gêmeo que não tinha rido e estava em silêncio até aquele momento. A voz dele era grave e séria, e eu percebi que a expressão de Binky mudou na mesma hora.

O garoto na minha frente apertou o aparelho auditivo contra o meu peito e aproximou o rosto do meu, cochichando no meu ouvido:

— Você fez um inimigo hoje, vira-lata.

E então Binky se afastou, sendo seguido por Beckett. Barrett me olhou por alguns segundos e daí seguiu os outros. Só Samuel ficou para trás. O garoto me olhava sem saber direito o que fazer ou dizer.

— Me desculpa por isso, Woodstock. — Ele tocou o meu ombro e acenou com a cabeça. — Me avisa se os seus aparelhos tiverem ficado com algum problema, tudo bem? Nós damos um jeito de consertar.

Eu concordei com a cabeça, e daí Samuel se afastou.

Foi só naquele momento que eu me dei conta do que tinha acabado de acontecer. Metade do refeitório olhava pra mim, e aquilo me deixou muito envergonhado. Abaixei a cabeça e me sentei em silêncio. Aos poucos os garotos no refeitório voltaram para suas conversas. Coloquei o segundo aparelho no meu ouvido e comecei a mexer na comida no prato com o garfo. Eu não estava mais com fome.

— Tá tudo bem, Jack?

Olhei pra frente e o meu amigo me olhava com uma cara de preocupado. Concordei com a cabeça sem falar nada. Mas daí eu ouvi um barulho estranho em um dos aparelhos, e instintivamente coloquei a mão no ouvido. Parecia um chiado. Tentei encaixá-lo na orelha de uma maneira diferente, mas o barulho continuou.

— Deixa eu ver.

Tirei o aparelho e entreguei nas mãos do Yates. O meu amigo mexeu nele por uns segundos.

— Ah, eu já vi qual é o problema.

— E qual é?

— Molho. — O Yates respondeu, rindo.

Meu amigo limpou o aparelho com um guardanapo de cima da mesa e entregou ele de volta pra mim. Não fazia mais barulho.

— Obrigado.

Yates concordou com a cabeça.

— Desculpa não ter te ajudado.

— Eu não devia ter explodido. — Eu respondi, ainda com a cabeça abaixada. — Eu não sei o que deu em mim.

— A cara de deboche daquele garoto também me tirou do sério, eu te entendo. Eu faria o mesmo.

Eu sorri com aquela fala do meu amigo.

— Você, Yates? Eu já te vi abrir a janela no meio da noite pra deixar uma mariposa ir embora.

O meu amigo me olhou de um jeito irritado, mas daí nós dois rimos.

— Okay, okay, você tem razão.

O resto do jantar foi tranquilo, mas eu ainda me sentia envergonhado pelo que tinha acontecido. A verdade era que eu sabia muito bem porque eu tinha ficado com tanta raiva, mas não fazia diferença. Todo mundo tem problemas. Eu era o único responsável pelo jeito que escolhia agir.

xxx

Quando o Yates e eu entramos no quarto, o Timothy já estava lá. O garoto estava sentado na frente da escrivaninha, e eu consegui ver que ele estava fazendo umas contas complicadas demais pra mim. Eu até gostava de matemática, mas o meu roommate estava em outro nível.

O Timothy tinha a pele bronzeada, o cabelo loiro, quase branco, e enormes olhos azuis. Ele era bem baixinho, mas só um pouco mais baixo do que eu. O Timothy era brasileiro e tinha um sotaque bem forte.

— Você jantou, Timothy? Nós não te vimos no refeitório. — O Yates perguntou.

O garoto negou com a cabeça, sem olhar pra gente. Depois de um mês convivendo com o Timothy, nós já estávamos acostumados com o jeito dele. Ele tinha contado no primeiro dia que era um aspie, alguém dentro do espectro autista. Eu não entendia muito bem como a Síndrome de Asperger funcionava, mas o Timothy tinha explicado tudo bem detalhado, o que ele disse ser uma das suas características. Eu e o Yates tínhamos cometido uma ou outra gafe durante aquele mês, mas aos poucos a gente aprendia o que devia e o que não devia fazer. E o Timothy sempre aceitava os nossos pedidos de desculpas.

Troquei de roupa bem rápido e subi na cama de cima do beliche. 0 Timothy levantou e apagou a luz do quarto, acendendo o abajur em cima da escrivaninha.

— Maldito toque de recolher, o nosso corpo já se acostumou a dormir mais cedo. — O Yates falou, trocando de roupa.

Era verdade. Ainda faltava um tempo até o toque de recolher, mas eu já estava com sono.

Eu estava olhando pra porta quando eu vi o pedaço de papel deslizando pra dentro. Franzi o cenho, curioso. Os meus roommates não pareciam ter percebido. Desci do beliche bem rápido e peguei o papel do chão. Estava escrito com letras vermelhas:

Toma cuidado, vira-lata.

Revirei os olhos. O Yates percebeu o papel na minha mão e leu por cima do meu ombro.

— Uau, você irritou mesmo aquele garoto.

— Ele é um psicopata.

— Não é correto usar diagnósticos médicos pra ofender as pessoas. — O Timothy falou, sem tirar o rosto do caderno.

— Tanto faz. — Eu resmunguei, jogando o papel em cima da escrivaninha.

O Timothy se distraiu, e eu percebi que ele pegou o papel. Eu subi de volta no beliche e encarei o teto.

— Quem escreveu isso pra você?

— Foi um sujeito chamado Binky, o Jack brigou com ele no refeitório.

O Timothy arregalou os olhos e virou na minha direção.

— Por que você brigou no refeitório? É contra as regras!

— Foi ele quem me provocou.

O Yates riu.

— Não foi bem isso que aconteceu né?

Eu dei com os ombros. E daí outro bilhete passou por debaixo da porta.

Eu pulei do beliche na mesma hora, abrindo a porta bem rápido, mas só consegui ver o garoto desaparecendo no final do corredor. Pensei em correr atrás dele, mas desisti da ideia.

Olhei para trás e vi que o Yates e o Timothy me olhavam com uma cara estranha.

— O que foi que ele escreveu agora?

Estiquei o braço, pedindo o papel na mão do Yates, mas o meu amigo não me entregou.

— Esquece disso, cara.

Eu puxei o papel da mão dele e li. Estava escrito na mesma fonte vermelha de antes:

Eu também desapareceria se tivesse um filho como você.

O meu coração bateu forte no peito e eu me enchi de raiva. Eu saí pra fora do quarto sem pensar, andando pelo corredor com passos pesados. Eu estava de pijamas e descalço, o que era contra o regulamento da academia, mas eu não ligava.

Eu parei quando cheguei nas escadas. Pra onde estava indo? Pro dormitório dos Foxes, claro. Mas o que eu faria depois? Provavelmente algo que eu me arrependeria, assim como Samuel tinha falado mais cedo. Respirei fundo várias vezes, e daí eu vi o Yates chegou perto de mim. Ele me olhou um tempão e daí a gente voltou pro quarto. Não tinha ninguém no corredor naquela hora.

O Timothy se debruçava sobre os dois papeis que eu tinha recebido. O Yates fechou a porta atrás de nós. Puxei a minha mala debaixo da cama e tirei um bocado de fotos lá de dentro, espalhando todas na minha cama. Os dois garotos prestaram atenção em mim na mesma hora. Eu estiquei uma foto na direção deles e falei:

— Essa é a minha mãe. O nome dela é Samantha. Ela desapareceu em treze de abril de dois mil e quinze. Nós nunca soubemos sobre o seu paradeiro, e a polícia nunca teve pistas concretas. Eles desconfiaram do meu pai por um tempo, mas isso também não levou a lugar nenhum.

Os dois garotos me olharam em silêncio.

— Eu sinto muito, Jack. — O Yates falou.

O Timothy concordou com a cabeça, e daí falou:

— Essa mensagem foi cruel.

Eu concordei com a cabeça, e daí eu guardei a foto da minha mãe e todas as outras de volta na mala. Eu não precisava daquela foto. O rosto da minha mãe estava gravado na minha cabeça em todos os momentos. Eu não esquecia dela nem por um dia.

Nós ficamos em silêncio por uma meia hora. Eu pensei em tirar os meus aparelhos e ir dormir, mas eu percebi que o Timothy estava agitado. Ele olhava as mensagens no papel várias e várias vezes, e daí olhava pro teto, como se estivesse tentando lembrar de alguma coisa.

— Você está pensando muito alto. — Falei.

O garoto virou pra trás e me encarou com seus enormes olhos azuis.

— Pensamentos não têm som, Woodstock. Mas... Eu... Eu acho que eu descobri uma coisa.

Percebi que o Yates se levantou da cama na mesma hora, e daí eu desci do beliche. Nós dois sentamos na cama do Timothy, de frente pra ele.

— Vocês estão vendo esses pontos finais aqui? — O garoto perguntou, apontando pros dois papeis. Yates e eu concordamos com a cabeça. Era um ponto final estranho, que mais parecia uma letra “o”. — Eles são idênticos ao ponto final da mensagem que estava com o boneco enforcado no corredor. A minha memória é boa, vocês sabem. Não só isso, mas a cor da caneta também é a mesma. E vermelho não é uma cor que nós somos autorizados a usar, então eu acho que nem todo mundo tem uma caneta dessa cor por aqui.

Aquilo me pegou desprevenido. Por alguns segundos eu não soube o que dizer.

— Você quer dizer... Que foi o Binky quem fez aquela brincadeira culpando o Headmaster pelo garoto que se matou no semestre passado?

O Timothy negou com a cabeça.

— Eu estou dizendo que eu acredito que quem deixou aquele boneco no corredor e quem te escreveu essas mensagens são a mesma pessoa. Se é esse Binky ou não eu não sei, eu precisaria checar a caligrafia dele.

O Yates se empolgou com aquela ideia e começou a fazer um monte de perguntas. Eu perdi o interesse bem rápido. Aquilo não fazia diferença pra mim.

Subi de volta na cama de cima do beliche e percebi que ainda tinha uma foto ali, uma que eu tinha esquecido de guardar. Nela estávamos eu e o meu pai, abraçados. Meu avô tinha tirado aquela foto com uma câmera polaroid no dia em que nos despedimos para eu embarcar para a St. Dominic.

Suspirei. Eu tinha me acostumado com a ausência da minha mãe. Longe dos olhos, longe do coração. Mas eu jamais me acostumaria a desconfiar do meu pai.

Tudo o que eu mais desejava era para que Deus tirasse de mim todos aqueles sentimentos ruins. Só assim, talvez, eu conseguisse acalmar o meu coração. 

 

 


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo sai em breve!



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