Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 23
Presentes de casamento




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Geralmente, nas férias de verão eram os Bretonne quem visitavam Londres. Entretanto, no ano de 1913, em meio a manifestos fortes contra a repressão feminina – e, é claro, com minha lua de mel –, ficou subentendido de que aquele não era o melhor momento para se visitar amigavelmente o país. Portanto, quando nos despedimos e pegamos a carruagem até Calais, fomos já esperando vê-los apenas em setembro.

— É tão empolgante! Morar perto de intelectuais, de pessoas que movem o mundo! — os olhos de Adele brilhavam de excitação. — Não lhe dá inspiração? Não é contagiante?

— Bem, temos inúmeros escritores como vizinhos em Bloomsbury — concordei com um sorriso, ajeitando-a no carro de aluguel. — Mas nós não vamos morar em Bloomsbury.

— Ah, não?

— Não! Vamos morar em Sutton, fica há um quilômetro e meio de Bloomsbury — sorri.

Adele concordou com a cabeça, exalando curiosidade. Não era a mais nobre das áreas, como Mayfair, mas eu esperava que ela gostasse do lugar. Ter um local já mobiliado saía muito mais caro, mas ao menos era melhor do que tirá-la do luxo de Paris e largá-la às traças. Por todo o caminho, ela observou todas as ruas como se Londres fosse uma completa novidade para ela. Se é que era possível, eu a amei ainda mais.

— Chegamos — anunciei, saindo do carro primeiro para ajudá-la a se levantar e não tropeçar no vestido. — Seja bem-vinda a Sutton, milady.

Adele arregalou os olhos de admiração, a boca formulando um “o” perfeito com os lábios. Se não fosse considerado indecente, eu a seguraria ali mesmo em meus braços e a cobriria de beijos. Só mesmo Adele para ficar impressionada com Sutton.

— Ah, meu Deus... Elas são uma graça! — ela exclamou, se referindo ao conjunto de casas de tijolos que eram iguais umas às outras. Ante as imponentes construções, o que havia de tão belo em tijolos? — Alex! Isso é ainda melhor do que Bloomsbury! Veja as árvores e todas as construções, estão todas tão harmoniosas! Vamos, vamos indo! Qual delas é a nossa?

Seu entusiasmo foi contagiante. Quando ofereci minha mão, Adele permitiu-se ser conduzida pacificamente para dentro. Seu ânimo não diminuiu ao abrir a porta e apresentá-la aos cômodos. Tudo lhe era agradável. Tudo lhe parecia ter saído de um castelo de contos de fadas. Não consegui conter minha risada.

— O que foi? Por que é que está rindo? Eu disse algo de engraçado, Alexander Banks?

— Não! Desculpe — tratei logo de me explicar, tentando me recompor. — É que a sua animação está fofa de se ver. Não achei que fosse reagir assim!

— Eu não sou... Fofa — Adele retrucou com a testa franzida. — Oras, mas como pode achar que eu reagiria de outra forma?

Permaneci a observando, aguardando o restante da explicação. Adele ajeitou a postura e fez um gesto amplo com a mão para sinalizar a casa.

— Isso... Isso não é somente uma moradia, Alex. Isso é uma nova vida. É uma prova concreta de que a vida que conheço ficou definitivamente para trás. Veja! Temos um lugar só nosso, longe de quaisquer influências que poderiam nos desanimar, ainda que com boas intenções. Essa casa... Será cheia de vida muito em breve, com a imaginação solta. Eu e você estamos aqui como indivíduos, não apenas como filho e filha. Eu amo meus pais, e não tenho dúvidas de que ame os seus, mas... Ser alguém, ainda que apenas no primeiro passo, não é maravilhoso?

Fui obrigado a concordar com as suas palavras. Daí eu me dei conta delas e me calei por alguns segundos. Aquilo era bem mais maravilhoso para Adele do que jamais seria para mim. Se sua vida tivesse tomado um rumo minimamente diferente, talvez ela jamais estivesse ali, dizendo palavras como aquelas.

Mais do que uma esposa feliz, Adele estava exultante por ter a oportunidade de ser uma mulher feliz. Eu sinceramente não sabia como me sentir em relação a isso. Era algo tão simples, mas tão distante...

— Fico feliz de poder fazer parte da sua felicidade, Deli — falei em tom baixo, sorrindo de lado.

— É praticamente ela inteira...

Em tão poucas palavras, Adele me causou palpitações irreversíveis. Mas, como eu não estava exatamente achando uma ideia ruim, apenas me virei para ela exibindo o meu melhor sorriso pedante.

— Alguma chance de querer testar em quais mobílias é possível dormir?

— Essa é uma ótima ideia... Aquele navio não era nada confortável...

— Exausta? — enlacei-a pela cintura, aproveitando a situação para roubar-lhe um beijo. Adele correspondeu-o com um suspiro. — Ou só cansada?

— Só cansada... Mas não para você, querido.

Gargalhei com maldade, puxando-o mais para perto.

— Seu pedido é uma ordem, minha querida. Vou lhe dar um desconforto bastante confortável.

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Após nos certificarmos de que os estofados eram confortáveis – ora, alguém tinha que se dar ao trabalho, não? –, enviei um bilhete para comunicar a Hugh que eu estava na cidade e que precisava de sua ajuda com um assunto urgentíssimo. Ele se prontificou logo no dia seguinte – mas é claro que parte minha tinha ciência de que ele estava curiosíssimo para ver a face da senhora Banks em cores –, e me senti grato por ao menos ter um apoio para as situações burocráticas. Thomas era uma grande família em questão de amizade, mas Hugh complementava isso com um toque de falta de noção necessária.

Mon ami, seja bem-vindo — ele me abraçou com força, fazendo com que eu risse de seus esforços. — Onde está a bela dama?

— Em casa, pensando que estou indo fazer uma visita inocente ao meu amigo! Comporte-se que vai vê-la na volta. Como vai, meu amigo?

— Ora, já começamos o casamento com mentiras? — Hugh gargalhou, mas logo ajeitou a postura para assumir uma feição mais séria. Aquilo sim era raridade. — É difícil dizer. Meu irmão recebeu um convite para integrar o exército real... Ele ainda está pensando em aceitar, mas... O clima está tenso. Há muitos conflitos acontecendo por perto.

— Fique calmo... Isso pode impactar apenas na economia. Nós não temos relação com a península Balcânica.

Hugh assentiu com a cabeça, respirando fundo.

— Enfim... Vamos indo? Já arranjei o endereço, só falta irmos até lá. Eu só acho um pouco misteriosa demais toda a sua investigação...

— Eu prometo que não estou agindo debaixo dos panos. Isso é uma surpresa.

— Uma surpresa com riscos de infarto?

Troquei o peso dos pés, sentindo minhas bochechas denunciarem meu constrangimento. Ainda era um pouco inevitável, afinal de contas.

— Provavelmente.

— Ótimo! — Hugh voltou a exibir seu sorriso maníaco e costume. — Nada que não tenha riscos de infarto vale o meu tempo. Estou dentro.

Em sentido de independência, todo o caminho de Londres que eu conhecia era reduzido a Bloomsbury e Cambridge. Se bem que Cambridge não ficava em Londres, mas...

Enfim. Eu conhecia bem pouco. Então, sempre precisava de algum auxílio na hora de encontrar algum lugar. Principalmente um que ainda ficava bem escondido aos olhos da sociedade. Felizmente, Hugh conhecia até o que não devia nas muitas ruas londrinas. Quando se tratava de convites vindos dele para passeio, eu sempre arrumava uma desculpa saudável para não ir.

Segundo o que ele me disse, a Cruz Vermelha era um tipo de organização que recrutava em surdina. Com tantos rumores de conflitos nos Bálcãs, era preciso que alguém dissesse que era algo necessário, porém não exatamente urgente. Ingleses eram famosos por sua calma, mas não podíamos abusar de nossa própria sorte. Tínhamos de ser realistas: qualquer preparo médico era bem-vindo numa época em que todas as doenças inimagináveis batiam à porta para nos visitar inconvenientemente.

Quando chegamos lá, quase estremeci. E o negócio nem era para mim. Uma freira nos atendeu com um sorriso tranquilo e acolhedor. Senti-me em casa.

— Boa tarde, meus senhores... Gostariam de olhar o lugar?

— Não, muito obrigado, irmã — Hugh se adiantou, com o charme inabalável. — Viemos, na verdade, fazer uma matrícula. Temos uma voluntária bastante entusiasmada em ajudar as pessoas.

Os olhos da mulher se iluminaram.

— Ah, sim! E para quem seria?

— Minha esposa — respondi deleitando-me com o sabor das palavras na ponta da língua. — Sei que têm preferências por jovens solteiras, mas... É o sonho de sua vida cursar Enfermagem. Ela quer ser útil.

A freira assentiu com a cabeça, abrandando o sorriso. Era a clara expressão de quem admirava o amor jovem. Eu estava me acostumando às pessoas me olhando daquele modo, ultimamente.

— Compreendo. E por que ela não veio com os senhores?

— É uma surpresa de casamento, madame — Hugh sorriu, empurrando-me com o ombro de leve. Senti minhas bochechas corando novamente. — Viemos perguntar como funciona todo o processo para então ver se ela é uma boa candidata. Seria muito menos decepcionante se ela não pudesse e recebesse essa resposta diretamente da senhora.

— É verdade — a mulher suspirou, esfregando a palma das mãos umas nas outras. — No entanto, é preciso que eu o corrija, meu senhor. Não temos preferências por jovens solteiras ou casadas... Qualquer voluntária pode juntar-se a nós, se assim desejar.

Assenti com a cabeça e permiti que ela me explicasse qual era o objetivo de todo o projeto. Tratava-se de uma instituição que defendia pessoas vulneráveis mediante conflitos. Aliviar o sofrimento seja físico ou material. Muitas mulheres que não tinham aptidão para Enfermagem optavam por mandar apoio financeiro ou então por meio de doações de roupas, cobertores e comida. Todas as propostas visavam com o que Adele planejava para a própria vida. Então, peguei um formulário e assinei meu nome na coluna de “marido (se houver)”. Em um ano de carreira universitária, nunca um formulário havia me feito bambear tanto as pernas.

— Fique calmo, vai ser algo que ela vai gostar — Hugh me acalmou, atirando-me no carro de aluguel quase como um cachorro vira-lata. Ri de nervoso. — Pense como se fosse um presente de casamento.

— É a realização de um sonho, como eu disse... É-é claro que eu espero que ela goste.

— Respire, já está gaguejando. Se sofrer por antecedência quem terá um infarto será você e não ela.

Consegui rir de sua colocação, apesar de sentir meu maxilar completamente tensionado ao chegar em nosso lar doce lar. Ao entrar com Hugh em meu encalço, encontrei Adele folheando um de meus livros didáticos. A cena me arrancou um sorriso.

— Deli? Eu trouxe um amigo — sorri. Ela, pega de surpresa, até tentou disfarçar a leitura, mas o flagra já fora noticiado. — Fique tranquila, ele é meu amigo de Cambridge.

— E, se me permite dizer, senhora, sua fama de entusiasta estudantil já é bem conhecida por mim — Hugh sorriu daquele jeito bobão que sempre fazia as pessoas não o levarem a sério. — Vim apenas entregar seu marido de volta, são e salvo. Tenho certeza de que teremos outros dias para trocarmos mais palavras.

Adele levantou-se da poltrona num pulo, indo para perto de nós dois para receber os devidos cumprimentos. Com as bochechas em tom escarlate, apressou-se em explicar:

— E-eu fiquei bastante entretida com as teorias... Mal ouvi quando os cavalos se aproximavam... Essa rua de paralelepípedos anuncia até uma mosca que pousa na rua, não acha?

Hugh gargalhou, realizando uma mesura informal.

— Hugo Shaw, senhora Banks. Minha mãe veio do oeste da França. Podemos dizer que somos conterrâneos indiretos.

Je suis enchantée  — Adele sorriu em meio a um meneio de cabeça. — É um prazer em conhecê-lo, senhor Shaw.

Ele assentiu com a cabeça, despedindo-se de nós logo após o breve encontro. Adele me olhou desconfiada da cabeça aos pés, ainda mais quando a entreguei o papel do formulário. Fiz com que ela se sentasse com medo de algo mais grave.

Adele desdobrou o papel e o leu atentamente. Quando se deu conta de que se tratava, olhou-me com os olhos cheios d’água. Eu mesmo já estava a ponto de cair no choro fácil.

— Ah, Alex... — ela ofegou, atirando-se em meu pescoço para me abraçar. Retribuí sustentando-a com força. — Eu o amo muito. Tanto que não me cabe no peito... Obrigada, obrigada, obrigada!

Registrei o momento sentindo as lágrimas fujonas molharem minhas bochechas.

Era a primeira vez que ela me dizia aquilo.

E eu garantiria que não seria a última.


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Notas finais do capítulo

é o amor ♪
ai, gente, mais dois e acabamos :')



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