Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 24
Amour à la folie




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Adele concordou prontamente com a ideia da Cruz Vermelha. Como era uma mulher casada, suas aulas de Enfermagem seriam levadas em conta, porém a menos que fosse necessária a ajuda, ela estaria garantida para a área de confecção de roupas. Isso não a abalou; muito pelo contrário, somente a perspectiva de colocar em prática o que tinha lido durante aqueles anos, escondido, deixava-a eufórica. Consequentemente, eu também estava. Sempre me deixava com um sorriso escondido no canto do rosto quando eu a pegava lendo meus livros e teses do meu curso. Em algum momento desse processo, ela me obrigou a pegar livros emprestados para ela na biblioteca de Cambridge. Isso eu poderia gloriosamente garanti-la: Hugh já havia me passado o bastão da responsabilidade de lá, então era bem provável que eu surrupiaria alguns sem permissão apenas para o deleite de minha querida esposa. Jamais pensei que ser um ladrão faria minha mulher sentir-se mais atraída por mim, mas a vida é feita desses pequenos momentos, não é?

Claro, ainda seria um casamento discreto. Infelizmente, Cambridge tinha preferência por homens solteiros. O agravante de Psicologia é que eram turmas experimentais e que demandavam muito tempo e pesquisa – a menos que o estudante pudesse garantir comprometimento integral, os reitores sempre torciam o nariz. Eu tinha grandes esperanças de que isso fosse mudar algum dia, pois Adele e sua sede de conhecimento seriam de grande ajuda para a área universitária. Enquanto isso não acontecia, eu a alimentaria com livros surrupiados.

Amour à la folie.

De qualquer maneira, findado o período de lua de mel, eu e Adele recebemos um comunicado de Paris em nome de Thomas nos convidando para jantarmos em Bloomsbury. Adele ficou exultante. Seria seu primeiro jantar como “senhora Banks”, apesar de pensar que seu nome agora era ainda mais idêntico ao da minha mãe fazia-a rir de nervoso. Porém, em particular, Thomas me incluíra um bilhete que dizia pouco e abria margem para diversas interpretações: Preciso que me ajude. Trarei Alice comigo.

O que estava faltando para o verão era mais um ataque de pânico, é claro. Eu confiava que ele sabia o que estava fazendo. E, como ainda devia uma resposta à Adele, eu comentei casualmente enquanto desfilávamos com nosso cabriolé pelas ruas arborizadas:

— Creio que hoje eu possa respondê-la qual é o assunto com Alice.

— O senhor crê em muitas coisas — Adele caçoou, erguendo uma sobrancelha. — Até tinha me esquecido disso.

— Que milagre...

Ela bufou em tom bem humorado. Seus cachos tinham sido meticulosamente cortados um dia antes – agora ficavam emoldurados logo abaixo das orelhas. Sempre que ela mexia a cabeça, eles a acompanhavam feito nuvenzinhas. Segundo ela, seria o seu primeiro ato de rebeldia.

— Foi um elogio! — gargalhei.

— O senhor que não fique esperto, minhas luvas estão prontas para serem dispensadas... Mas, de qualquer modo... Se o senhor está dizendo, eu acredito. Algo a ver com o jantar?

— Provavelmente. Isso ainda está nublado para mim também. Nunca se sabe o que esperar de uma reunião da minha família...

Adele abafou o riso com as luvas, confirmando com a cabeça.

— Exatamente. Da última vez que tivemos uma reunião de família de grande magnitude, mamãe anunciou uma gravidez.

— E na outra anunciamos um casamento.

— E é por isso que as famílias grandes jamais estarão sozinhas — ela sorriu com doçura. Acariciei seu queixo com a mão que não levava as rédeas. — Você acha que eu passei muito perfume?

— Não se preocupe. A senhora Banks está perfeitamente apresentável, se é isso que está me perguntando.

Adele respirou fundo, aliviada. Eu não compreendia porque mulheres se preocupavam tanto com a aparência, mas um elogio ou outro nunca resultava em fracassos.

Quem nos atendeu foi Maélie. A primeira coisa que fez foi arregalar os olhos verdes e abrir um sorriso radiante.

— O seu cabelo! Mamãe! Ah, Deli, está tão lindo!

— E em um minuto já enfiou caraminholas na cabeça da garota — não consegui segurar a risada, mas me adiantei para beijar a bochecha da pirralhinha. — Não parecem nuvenzinhas, Mae?

— Nuvenzinhas de algodão — Maélie concordou efusivamente, tocando os cachos curtos como se fossem feitos de porcelana. Adele sorria com uma timidez adorável. — Se os meus não fossem tão lisos e escorridos eu os cortaria assim, também. Mas mamãe diz que se eu cortar os cabelos curtos vai ficar com as orelhas de fora e todos vão só olhar para elas.

Adele concordou com expressão de pesar. Fomos entrando e eu a deleguei a tarefa de encarar a hiperatividade de Maélie. Fui cumprimentar meus pais com um abraço e outro beijo nas bochechas.

— Ajuda com o calor... É bem mais prático de cuidar...

Nem me fale deste calor insuportável. Minhas sardas triplicaram. Parece que alguém espirrou tinta em mim. Isso é muito démodé.

Minha mãe riu ao meu lado.

— O dia em que começar a ter rugas vai agradecer de joelhos por ter sardas, minha querida.

— Para isso falta muito tempo — Maélie jogou os cabelos alaranjados para trás, vaidosa. — Sem ofensa, mamãe. A senhora é linda.

— Bajuladora — Elena ralhou em seu canto, empurrando-me de brincadeira com o quadril. Já Maélie mostrou-lhe a língua em retorno. — Como vão vocês? O cabelo está mesmo bonito, Deli. Parece refrescante.

Adele abriu um sorriso radiante.

— Digamos que eu tenha deixado você me influenciar, Lena.

— Péssima escolha — Elena gargalhou. — Bem, Thomas e Alice estão na cozinha terminando de pegar os pratos para servirmos a mesa.

— Evan não veio? — estranhei.

Maélie deu de ombros, avizinhando-se ao lado dos pais.

— Ele ficou em Paris. Disse que queria passar uma temporada com o tio e a tia antes de entrar na universidade. Se é que ele vai. Mas, bem... Eu acho que ele está usando isso de desculpa.

— Ah, acha? — mamãe abriu um sorriso cúmplice. — E por quê?

— Ele deve ter se tocado que a Elle é o amor da vida dele e vai usar o álcool de desculpa para se declarar. Universidade uma ova.

Meu pai engasgou com sua bebida. Já minha mãe gargalhou de sua reação.

— Émille vai matá-lo, certamente...

— Ah, querido, tens de levar em conta de que Gabrielle também não é a mais recatada de todas as garotas. Ela é mais bem-comportada do que Evan, é claro, mas é descabido esperar um relacionamento tradicional.

— Aliás, papai — Maélie acrescentou num tom angelical. — Nós não somos pessoas tradicionais. 

O velho Harvey Banks suspirou, parecendo já ter chegado aos sessenta. Ainda assim, eu jamais havia visto figura masculina mais jovial.

— Deus nos ajude se Elena quiser se casar. Não estou preparado para isso...

— Eu passo — Lena torceu o nariz. — Já prometi à mamãe que serei a filha solteirona.

— É bastante reconfortante — mamãe sorriu, saudosa. — Tom! Está tudo bem aí? Venha cá, Deli, para eu lhe dar um beijo. Você está muito cheirosa, mon trésor.

Era o que ela precisava para relaxar de vez. Duas Adeles unidas eram suficientes para causar um colapso, porém estávamos apenas jantando. Enquanto isso, Thomas, o convocado, trouxe os pratos todos empilhados. Atrás dele, Alice trazia os copos e uma garrafa de vinho. Abri um sorriso, torcendo para tudo estar correndo bem.

— Vejo que a minha pulguinha favorita já chegou — Thomas brincou, deixando os pratos na mesa. Maélie apressou-se para ajudar Alice e posicioná-los em seus lugares. — Estou me referindo ao meu irmão, Deli.

— Estou mais para um carrapatinho — Adele devolveu a brincadeira, piscando para ele. Em retribuição, ele beijou-lhe a testa fraternalmente. Quem diria, não? — Como vai, Tom?

— Firmemente com as duas pernas, minha senhora. Vamos, sentem-se, temos algo a dizer.

Maélie, que provavelmente pensou tratar-se de um anúncio de noivado – e meu pai, que torcia para não ser um anúncio de noivado – foram os primeiros a ajeitar-se à mesa. Era estranho completar o oitavo lugar à mesa, uma vez que éramos sete. Porém, fiquei feliz que o oitavo membro seria Adele a partir de agora.

— É bom que estejam todos sentados — Thomas riu nervosamente, provocando uma onda de simpatia em todos nós. Qualquer discurso que começasse com modéstia valia o tempo. — Na verdade, é só uma meia novidade, afinal contando comigo já somos três que sabem. Hã... Eu nem sei se a gramática está correta, não é muito a minha área...

Se eu tinha problemas com a dicção, Thomas odiava a gramática. E quem podia culpá-lo? Nosso francês só era mais do que um arranhado por conta de nossa mãe, senão seríamos um desastre.

 — Bem... — Thomas respirou fundo, levantando-se da cadeira. Esfregou uma mão na outra, e quase pude escutar o suor empapando-as de nervosismo. — Desde pequeno, tive a sorte de contar com um pai e uma mãe que estavam dispostos a incentivar qualquer carreira que quisesse tomar. Escolhi Biologia e depois Botânica, e em momento algum meu pai ralhou porque queria que eu estudasse Engenharia ou qualquer coisa parecida com o que ele exerce.

Meu pai sorriu. Era verdade que ele disfarçava bem, mas era um babão.

— Quando Alex quis estudar Psicologia, também teve o apoio. Em momento algum minha mãe disse para ele pensar numa profissão que lhe desse mais dinheiro ou prestígio.

Isso era verdade. Apesar de a nossa pequena fortuna vir de meios desconhecidos para mim, o dinheiro nunca foi algo que nos preocupou a ponto de censurar escolhas.

Oh, agora eu sabia o que Thomas tinha a dizer.

E estava particularmente ansioso para aquela parte.

— Sabe, em... Cambridge, as pessoas fazem isso. As que querem uma profissão de verdade, eu digo. Por exemplo, a profissão do Alex é “para doidos”. Sendo que eu particularmente penso que todos deveriam fazer terapia para conhecer e lidar com os próprios problemas.

Precisamente!

— E Biologia e Botânica por si só são... Aceitáveis. M-mas, eu gostaria de comunicar o que estive pensando ao longo do ano. É-é sobre... Mais um curso.

Minha mãe arregalou os olhos. Eles brilhavam feito o céu do interior.

— Ah, é mesmo? E o que pensa em cursar, querido?

Thomas esfregou umas mãos nas outras. Pelo canto do olho, pude ver que Alice quase avançou no automático para suas mãos, mas procurou controlar-se nos próprios gestos.

— Medicina.

O arquejo foi coletivo. Menos dos dois e de mim. Não por decepção, apenas a surpresa. Não era mesmo a mais digna das profissões. Entretanto, tão necessária quanto às outras.

— Alex já sabia disso — ele explicou com as bochechas coradas. — Eu o contei porque... Bem, o malandrinho aqui descobriu que eu estava agindo diferente e achou que eu estava metido com algum esquema criminal.

— Eu leio muito — gargalhei de nervoso. Adele me olhou de esguelha, agradecida pelo fato de que não a mencionei  em nossa empreitada conjunta. — Desculpe se atribuí mais frisson do que o necessário.

Então ele contou tudo que já havia contado a mim anteriormente. Sobre os mendigos em Paris. Sobre Alice e seu financiamento debaixo dos panos. Sobre os tratamentos experimentais e recheados de frutas e água fresca. Sobre os erros que cometeu no caminho, mas também os acertos. Todos nós escutávamos com atenção, sem interrupções ou comentários. No final, mamãe estava com os olhos cheios de lágrimas.

— Ah, mon cœur... Venha cá — e então, ela estendeu os braços amorosamente para que Thomas se encaixasse num abraço. Dei meu lugar na cadeira para ele, aproveitando a ocasião para colocar uma mão sobre seu ombro em apoio. — Eu não poderia estar mais orgulhosa... Se os nossos sonhos não nos assustam um pouco, quer dizer que não são grandes o suficiente...

Thomas assentiu com a cabeça, parecendo um grande bebê.

— É verdade. Eu saí daqui para a França com só um projeto e sem garantias — meu pai reforçou com um sorriso. — Se quiser ser médico e ajudar as pessoas, conte conosco.

— E comigo — Alice acrescentou com timidez.

Maélie parecia não estar acompanhando. Com um tom confuso, indagou:

— Então ninguém vai anunciar um noivado?

Todos à mesa riram. Thomas, ao voltar para o seu lugar ao lado de Alice, beijou os cabelos ruivos da pirralha.

— Quem sabe outro dia, Mae. Por enquanto seu irmão só vai ser doutor.

Alice sorriu com a promessa. E nós, em nossos íntimos, torcemos para ser um bom ano.


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Notas finais do capítulo

E mês que vem chega o último :')



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