(Re) Nascer escrita por EsterNW


Capítulo 10
A poesia das manhãs


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Volta e Meia de O Terno.



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O galo cantou, anunciando que um novo dia estava raiando. Clarice abriu os olhos lentamente, enxergando o quarto parcialmente na penumbra. Quando sua visão se acostumou, percebeu que aquele não era seu dormitório na fazenda da avó. Buscando na memória o acontecido da noite anterior, lembrou-se de como fora parar ali. Sorriu com as recordações da quermesse e do tempo que passou junto de Lysandre. Sentira saudades deles, não podia negar. E sentira mais saudades ainda dele. Da cumplicidade, das conversas, da confiança.

E ele confiara nela para contar tudo o que aconteceu em sua vida até parar ali. Mas não confiava o suficiente para deixá-la entrar e ajudar... Ou talvez ele apenas não quisesse.

Com um suspiro, sentou-se na cama e abriu os braços, se espreguiçando. Devia ir embora logo, seu coração apertava por fazer a avó passar por tanta preocupação.

Olhando para baixo, viu suas sapatilhas posicionadas na beirada da cama. Estavam limpas, para sua surpresa. Clarice as calçou, tendo certeza que as deixara na entrada da casa na noite anterior, junto dos sapatos de Lysandre... Talvez alguém acordou mais cedo do que o galo e começou a trabalhar. A veterinária queria encontrá-lo para agradecer por tudo o que fez.

Saindo do quarto, deparou-se apenas com o silêncio e a casa também parcialmente na penumbra, assim como o quarto em que estava. Devia ser umas cinco e meia da manhã. Ouviu o galo cantar novamente e viu Dragon comendo de sua ração em um cantinho. Até ele acordara mais cedo do que ela.

Tirando o olhar da sala e virando-se para a outra porta do corredor, planejava bater, porém, viu que ela estava escancarada.

— Lys? — chamou o nome do amigo, mas não havia ninguém ali, apenas uma cama feita. 

Não querendo ficar muito tempo para analisar o quarto do amigo — sabia como ele não gostava que mexessem em suas coisas —, saiu e foi para a cozinha. Também estava vazia, apenas com os utensílios para o preparo do café sobre a pia. O dono do lugar provavelmente voltaria para prepará-lo. Mas onde ele estava?

Clarice empurrou a porta da varanda dos fundos. Do lado de fora o céu começava a perder as cores noturnas, contudo, o sol não apareceria naquele dia, estava nublado demais. Caía uma garoa fina e a veterinária puxou as mangas da blusa roxa que usava. Estava realmente gelado. Talvez fosse uma frente fria, indicando que nas próximas semanas o inverno estaria batendo à porta.

Ouvindo um barulho não muito distante, a moça caminhou pela grama úmida da chuva na noite anterior e evitando as poças de lama, encaminhando-se na direção do curral. Ainda um pouco distante, conseguiu visualizar o gerador do ruído que ouvira do lado de fora. Lysandre cortava lenha ao lado do curral.

A alguns metros de distância, parou de caminhar, percebendo que ele sequer havia notado a presença de mais alguém que não fosse os animais ao longe. Seus olhos estavam focados no pedaço de madeira apoiado sobre o toco do mesmo material no chão. Seus músculos se retesaram e o machado desceu, rachando a lenha. Não foi suficiente para cortá-la por inteiro e a lâmina prendeu-se quase no final. Lysandre desceu o machado mais uma vez e lascas e pedaços de madeira voaram.

Clarice apenas observou em silêncio, analisando o rosto do amigo concentrado no trabalho braçal. Como não reparara que ele estava mais bronzeado do que se lembrava? Talvez tivesse percebido antes, só não atentamente desse jeito. Apesar da blusa de lã que usava, era perceptível que seus músculos aumentaram consideravelmente desde que era um adolescente. Os ombros mais largos, os bíceps mais delineados — reparara nisso quando o fazendeiro dobrara as mangas da camisa dias atrás —, o...

— Clarice? — Lysandre finalmente percebeu a presença da moça quando se afastou da tora para recolher os pedaços de lenha que voaram.

— Você acordou mais cedo do que o galo hoje — ela mencionou, comentando qualquer coisa para disfarçar que estivera perdida em contemplação. 

Sequer Chico aparecera por ali àquela hora, de tão cedo.

— Não consegui dormir muito essa noite — ele respondeu com uma fungada e abaixou-se para recolher o restante da lenha. A verdade era que se Lysandre dormira duas horas durante a madrugada, foi muito.

Clarice ajudou-o a recolher a madeira e o fazendeiro agradeceu.

— Você tá bem? — ela questionou e entregou o último pedaço de lenha para ele, levantando-se.

— Apenas um resfriado — respondeu e os dois começaram a subir em direção a casa. 

Clarice viu Chico vindo ao longe e acenou, ainda acompanhando o fazendeiro. Sentia a terra fofa pela umidade sob seus pés.

— Deve ser por causa da chuva que a gente pegou ontem — ela concluiu. — Sorte minha que eu só estou com a garganta um pouco ruim — reclamou, sentindo um incômodo desde a hora que acordara. Talvez fizesse um chá mais tarde.

— Quer ficar para o café? — Lysandre ofereceu e os dois entraram na cozinha. O fazendeiro se abaixou, colocando a lenha em um canto da cozinha, onde havia apenas um resto sobre o chão.

— Não, eu não posso. Minha vó deve estar morrendo de preocupação comigo — justificou, com algo que estava lhe incomodando aquele tempo todo. Lysandre se levantou e os dois se encararam. Clarice teve que pigarrear para voltar a falar, ao sentir o olhar colorido sobre os seus castanhos. E não fora por causa da garganta que fizera isso. — Eu posso voltar depois pra devolver as roupas?

— Claro — o fazendeiro respondeu, sumindo no corredor e entrando pela porta do banheiro. — Aqui estão as suas. — Voltou trazendo uma pilha de roupas dobradas em mãos e entregou-as para a veterinária.

Os dois se encararam novamente e Clarice voltou a reparar em como o rosto do amigo estava mais bronzeado. Provavelmente por tomar muito o sol ao realizar o trabalho da fazenda. Além disso, os traços estavam mais firmes do que se lembrava na adolescência, uma barba por fazer...

— Obrigada, Lys — ela agradeceu em meio a um respiro, obrigando-se a focar no necessário. — Por...

— Bom dia, seu Lysandre, doutora Clarice — Chico interrompeu repentinamente, abrindo a porta dos fundos e colocando a cabeça pela fresta. — Aproveitando que tá aqui, doutora, vim perguntar sobre o Fausto. Já não tá na hora dele tomar as vacinas? — ele questionou.

— Semana que vem — Clarice voltou-se para o caseiro com um sorriso, ainda segurando suas peças de roupas nas mãos estendidas. Ela apertou-as contra o peito. — Até lá vocês poderão liberar a Julieta também — finalizou.

— Vamos voltar a fazer queijo, seu Lysandre? — o caseiro inquiriu.

— Decerto — o fazendeiro respondeu um pouco distraído. — Poderia acompanhar a Clarice até a saída, Chico? — ele pediu. — Vou começar a preparar o café.

Assentindo ao pedido do patrão, o caseiro guiou a veterinária pelo caminho até a porteira da fazenda, após a moça despedir-se do amigo e agradecer por tudo o que fez por ela na noite passada.

— Apareceu cedo hoje, doutora — o homem comentou durante o trajeto para a saída.

— Eu acabei dormindo aqui ontem — respondeu sucinta e o caseiro ergueu as sobrancelhas. A moça logo entendeu a dedução e tentou explicar-se. — Pegamos aquele temporal que deu quando voltávamos da quermesse e a caminhonete atolou na estrada. Lysandre ofereceu que eu ficasse aqui até a chuva passar, por ser mais próximo. Só que como não passava, acabei dormindo.

Chico soltou um “ah” e tirou o boné, coçando a cabeça e olhando para o céu.

— Acho melhor eu e o seu Lysandre desatolar essa caminhonete logo, porque vai chover de novo — afirmou e devolveu o boné de volta por sobre os cabelos escuros.

Chegando à porteira, Chico abriu-a, deixando a veterinária passar. Despedindo-se, e com promessas de retornar mais tarde para devolver a roupa e trazer algo em agradecimento para Lysandre, Clarice deu as costas para a fazenda, sendo observada pelo caseiro, que logo voltou para dentro da propriedade, tendo muito trabalho pela frente.

Relembrando de suas reações apenas alguns minutos antes, Clarice riu de si mesma, acreditando ser uma boba. Nem parecia que já fazia tanto tempo...

...

Sendo autorizada por seu George — que estava cuidando das galinhas mais à frente — a entrar para a casa, Clarice sequer precisou procurar muito por seu amigo, encontrando uma rede amarrada nos pilares que sustentavam o teto da varanda da frente da casa.

Sorrindo travessa, puxou as pontas do tecido, deparando-se com os olhos heterocromáticos surpresos de Lysandre. A adolescente riu e o rapaz ajeitou-se para uma posição sentada, deixando sobre o colo o livro que lia.

— Pensei que você não viria hoje — ele disse, olhando atento para ela.

—Minha vó falou que não precisava mais de ajuda nas coisas da fazenda e que queria bordar. Ela até perguntou se eu queria tentar, mas esse tipo de coisa não é pra mim — a moça respondeu e subiu na rede, sentando-se oposta ao amigo. Clarice nunca fora boa com certos tipos de trabalhos manuais. — O que você tá lendo?

Com isso, o rapaz ergueu a capa do livro na direção dela, marcando com o dedo a página onde parou. Clarice percebeu que era o livro que ela havia emprestado alguns dias antes para Lysandre. A Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo.

— Você gostou dele? —questionou e tirou as sapatilhas dos pés, jogando-as para o chão e sentando-se na posição de lótus dentro da rede.

— É interessante... — ele disse, volvendo o olhar para a página que estava aberta.

— Os poemas dele são meios...

— O que? — Lysandre voltou os olhos para ela e a moça engoliu em seco, percebendo a inocência do amigo.

— Nada. — Deu de ombros. — Mas que bom que você gostou. Eu detestei quando tive que ler pras aulas de literatura — recordou-se de quando a professora pediu para que os alunos lessem a obra do autor. Tendo finalizado a leitura, Clarice ofereceu o livro para o amigo, certa de que, diferente dela, ele iria amar. Lysandre demonstrava interesse por coisas do século XIX havia certo tempo.

— Você prefere aqueles YA...

— Qual o problema com os meus YA? — Ela cruzou os braços, fazendo-se de ofendida.

— Nenhum. — Ele balançou a cabeça e mudou de assunto. — Eu gostei bastante desse aqui, C... — o menino disse o nome do poema, fazendo a amiga voltar a observá-lo. — Já leu?

— Ler eu já li, né. Mas meu cérebro provavelmente apagou depois da prova de Literatura na semana passada. — Com a resposta da amiga, Lysandre riu e Clarice sorriu. Era engraçado como a risada do amigo variava entre grave e agudo. Logo aquilo terminaria e a voz dele se firmaria no grave de vez.

— Ouça — ele pediu e a moça jogou para longe os pensamentos sobre a risada do amigo e concentrou-se nele e na leitura que começara. — Sim! Coroemos as noites com as rosas do himeneu... — ele começou com uma exclamação, suavizando o ritmo dos versos em seguida. Lysandre era bastante expressivo em sua leitura, a moça pontuou para si. — Entre as flores de laranja, serás minha e serei teu!

Lysandre recitou cada um dos versos do poema, mas, se ele questionasse a amiga sobre o que acabara de ler, Clarice não saberia nem dizer sobre o que se tratava. Seu foco estava hipnotizado pelas expressões formadas no rosto do amigo. Os olhos coloridos passando para lá e para cá pelas páginas, os lábios se movimentando suavemente, a voz oscilando...

Clarice percebeu que as bochechas coraram, sentindo-se uma boba por tudo aquilo.




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Notas finais do capítulo

Volta e Meia, o Terno: https://youtu.be/9-bnkdOiuZ0
O poema que o Lysandre lê é C... da coletânea Lira dos Vinte Anos de Álvares de Azevedo, escritor ultraromântico brasileiro.
Hummmm dona Clarice, por que se lembrar dessa memória em específico?
Até mais, povo o/



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