Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 9
CINCO - Kalik




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Algumas horas antes, Kalik havia se deparado com Adélia, pela primeira vez. Contudo, assim que a viajante, coberta de tatuagens, tocou sua mão, ele se deu conta de que, na verdade, eram velhos conhecidos, portanto, não havia qualquer anormalidade em passar a noite em seu casarão.

— Bom dia, querido! — Adélia cumprimentou, após fechar a porta atrás de si — O que achou do quarto que preparei para você? Se preferir, eu posso conseguir outro...

O pescador bocejou, alisando o peitoral, sob a camisa listrada. Assim que seus olhos se acostumaram com a iluminação ofuscante do candeeiro suspenso no teto, ele se sentou na cama e esfregou os joelhos.

— Bobagem! Você já fez muito por mim. Se não fosse por sua intervenção, eu não teria o que comer ou mesmo um lugar para dormir, não é mesmo? — ele tentou sorrir, mas o sentimento de culpa e vergonha pareciam pesar, como concreto, em suas costas.

— Ora, não diga isso! — Adélia fingiu modéstia, o que parecia destoante a forma que estava vestida — Sabe que eu faria o mesmo por qualquer outra pessoa.

— Sim, eu sei. Ainda assim, sinto que deveria retribui-la por tudo o que tem feito, durante todos esses anos. Se ao menos, houvesse uma maneira...

Ela mordiscou o polegar, como se ponderando o que diria a seguir.

— Bem, sabe que há algo que me incomoda, há muito tempo. Meus amigos foram presos, injustamente, na maior presidio de Saritéia, mas...eu nunca poderia ajudá-los, mesmo porque, seria impossível conseguir um momento, a sós, com os responsáveis, para tentar convencê-los de que cometeram um engano. Aqueles seguranças são tão violentos...

— Ei, não está lembrada? Eu sou um deus! —  Kalik sorriu, prestativo — Posso ajudá-la com isso!

— Acho que estou entendendo aonde quer chegar. Vejamos, já que você insiste...

Adélia apertou as bochechas do rapaz, como se fosse uma criança ingênua, e andou até o guarda-roupa, selecionando as peças mais discretas que, anteriormente, pertenceram aos verdadeiros proprietários do imóvel, cuja memoria já não era mais tão confiável.

O tráfego nas ruas ainda era lento, como costumeiro, naquele horário da manhã. Os comércios estavam começando a abrir, as pessoas estavam sonolentas, sem muita disposição para papear, a única exceção era um casal de idosos, envolvidos em uma discussão calorosa no interior de seu veículo.

— Eu realmente não entendo! — Áquila resmungou — O que estava passando pela sua cabeça quando você decidiu confrontar Kalik com aquelas coisas?

— Eu já disse que estava cansada, não dormi praticamente nada naquela noite. — Nayeli umedeceu os lábios enrugados — Talvez ele tenha razão, deveríamos continuar a nossa busca pelo Sol, separados.

— Está prestando atenção no que está dizendo? — o alfaiate estalou o língua — Os dias que passamos juntos não significaram nada para você?

— Não sou nenhum monstro! Tentei ser gentil, mas Kalik não estava colaborando! — bufou — Nós temos um objetivo em comum, que poderia e ainda pode ser prejudicado se ele não aprender a lidar com seus problemas!

— Um objetivo? É só nisso que está pensando?

— No que você está pensando, Áquila? Já descobrimos que ele foi embora em uma van com um bando de hippies, enquanto Kalik estiver rodeado de pessoas, tenho certeza de que Émile e Aima não vão fazer nada para prejudicá-lo.

— Não é essa a questão!

— Então qual é? Eu estou aqui, tentando te agradar, já pedimos informações em outras cidades...

Áquila exalou.

— Não me importo em ceder, de vez em quando, você também não deveria se importar.

— O que mais está esperando que eu faça? — a sacerdotisa se empertigou — Kalik não é meu filho!

— Eu...nunca disse que era.

— Mas gostaria que fosse!  — Não houve resposta — Realmente não me importo se prefere vê-lo dessa forma. Você é um homem maravilhoso, Áquila, tenho certeza de que poderia ser uma ótima figura paterna...

O marido a encarou, como se soubesse que ainda tinha algo mais para dizer.

— Porém... — ela prosseguiu — Não pode contar comigo para agir como se fosse a mãe dele. É muita responsabilidade!

Nayeli apertou os punhos sobre o colo, o que fez com que Áquila, enfim, entendesse.

— Não consegue mesmo senti-lo buscando por você? Como quando o encontramos pela primeira vez?

Ela moveu a cabeça, em um sinal de negação.

— Vamos fazer uma parada. — Propôs, com um suspiro — E então...podemos decidir o que fazer!

O alfaiate deixou o jipe próximo da calçada e saiu para se alongar.

Nayeli fez o mesmo e enquanto espairecia, sua atenção foi atraída pelo conteúdo de uma banca de revistas há poucos metros de distância. Não havia muitos livros de temática religiosa, que fossem de seu interesse, mas em uma prateleira, estavam empilhadas várias cópias do jornal semanal da cidade.

Ela reconheceu, imediatamente, o rapaz estampado na capa, misturado a uma multidão de rebeldes que protestavam contra um evento de discriminação, que ocorrera em uma loja de conveniências não muito distante dali.

— Kalik passou por aqui. — Concluiu.

— Então talvez estejamos perto. Deveríamos continuar perguntando sobre ele. — Áquila acrescentou rapidamente: — Ao menos para esclarecer tudo o que aconteceu. Se for isso o que ele...Se for isso o que vocês realmente querem, nós dois podemos seguir em frente.

Mesmo com um aperto no peito, Nayeli concordou.

O alfaiate trocou algumas notas de dinheiro pelo periódico e os dois iniciaram sua busca por mais informações.

Encontraram-se primeiro com o gerente da loja que estampava a publicação. Ele os atendeu com receio, como se tivesse medo de que provocassem alguma confusão, mas foi genuíno quando afirmou que não fazia ideia do paradeiro do pescador.

Logo em seguida, esbarraram com uma das manifestantes, que estava caminhando, despreocupada, por uma praça. A garota de cabelos castanhos, vestindo calças bocas de sino, pareceu desconfiada no início, mas revelou que não o viu partindo com a amiga, Jada.

Os dois checaram vários estabelecimentos nas proximidades, até chegar a um bar, onde um senhor calvo e musculoso, responsável pelo serviço, disse tê-lo atendido e ainda deu detalhes sobre uma mulher elegante com quem havia conversado.

— Ele deve estar sendo manipulado por essa golpista! — Nayeli cochichou para o marido, conectando as pistas com uma velocidade fora do comum.

Áquila colocou o braço em torno da cintura da sacerdotisa, em um gesto de proteção, observando, aterrorizado, enquanto um cavalo passava correndo ao lado deles, derrubando no chão, o cavaleiro atordoado.

A dupla seguiu o animal até uma penitenciária, cujos visitantes fugiam em disparada.

Adélia observou, atônita, enquanto a torre de vigilância era envolvida por aves urbanas furiosas, então passou sorrateiramente pelos seguranças, que estavam reunidos, tentando conter uma tropa de equinos selvagens e convenceu uma funcionária desorientada, a sua maneira, de que deveria levá-la até o diretor do edifício.

O alfaiate, porém, evocou seus poderes e fez com que ambas fossem derrubadas pelo tecido de seus trajes, desabando, inconscientes, sem sequer saber o que as atingiu.

Kalik estava por perto, escondido em um beco coberto por uma cerca de madeira, de frente para a única fenda que lhe permitia contemplar o alvoroço que estava provocando.  

Estava tão concentrado no que fazia que não percebeu quando o rosto de uma mulher, com um par de tranças caindo acima dos ombros, tapou sua visão. Ela pressionou sua testa por menos de um segundo, e foi o suficiente para que o rapaz sentisse o corpo formigar.

Kalik se afastou rapidamente, mas Aima e Émile saltaram o bloqueio e chegaram mais perto. Devido a ação de Adélia em sua mente, o pescador não se lembrava de seus perseguidores, mas lá estavam eles, para terminar o que haviam começado.

— Quem são vocês? — perguntou, com a voz trêmula.

O homem bem-vestido, com cachos castanhos caindo sobre os olhos, fez um gesto com a mão e o asfalto abaixo de Kalik ameaçou se dissolver, completamente.

Ele entrou em pânico e tentou se concentrar em qualquer forma de vida que pudesse tirá-lo daquela situação. Os cavalos não estavam mais respondendo aos seus comandos mentais, os insetos rastejando pelas paredes não teriam qualquer utilidade, de qualquer forma, mas havia algo mais, á que ele poderia recorrer.

Em uma ação inesperada, a raiz de uma árvore, que deveria estar enterrada no solo há anos, irrompeu para a superfície e envolveu Émile, esmagando seus ossos e retornando a terra, como se nada tivesse acontecido.

Aima, que tinha uma expressão permanentemente desanimada, ficou ainda pior. Seus olhos se encheram de lágrimas, seu nariz começou a escorrer e ela recuou, assustada, correndo para o mais longe que suas pernas eram capazes de levá-la.

O pescador fez o mesmo, mas seguiu pelo caminho oposto.

Havia um misto de emoções tentando dominá-lo. Estava com medo, por Adélia, que ficara para trás. Estava triste, por Aima, que vira o amigo ser morto diante de seus olhos, e principalmente, estava com raiva de si mesmo, por não compreender por que se sentia, subitamente, tomado pelo desejo de encontrar alguém, que não conhecia...O guardião do poder do Sol.

“Ele está mexendo comigo.” pensou “É tudo culpa dele!”.

Áquila estava tão ocupado tentando ajudar os guardas que trabalhavam no presídio, que só percebeu, no último minuto, que a esposa estava tentando alertá-lo sobre Kalik.

O garoto estava prestes a desaparecer outra vez, em um conversível, estacionado no outro lado da rodovia.

— Não podemos perdê-lo de novo! — exclamou a sacerdotisa.

Ela agarrou a mão do cônjuge e caminharam para a saída.


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