Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 10
CINCO - Kanna




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No início da tarde, Kanna começou a se comportar de maneira estranha. Não havia muito tempo que haviam deixado a residência de Raoni, contudo, o tabelião insistiu que era necessário fazerem uma parada, para que ele pudesse treinar um pouco mais seus poderes.

Desgostosa, Yandina reuniu três garrafas de vidro, que encontrou em uma lixeira, e as ordenou sobre diferentes galhos de uma árvore, localizada em um campo afastado.

— Tome cuidado! Você pode acabar provocando um incêndio. — alertou a primogênita.

— Vai fundo, raio de Sol! — Niara gritou, ignorando o olhar reprovador da amiga.

Kanna respirou fundo e ergueu um braço até a altura dos ombros, mirando o recipiente a sua direita, há cinco metros de distância.

Seus dedos, escuros e trêmulos, começaram a brilhar, antecedendo o disparo de uma esfera de luz, que penetrou o tronco, criando um buraco profundo na madeira espessa.

A garrafa, porém, se limitou a dar um pequeno sacolejo, que o tabelião pareceu ter tomado como uma provocação pessoal.

— Isso foi bom!  — Niara elogiou.

— Raoni disse que eu ainda preciso trabalhar a minha pontaria. — Kanna admitiu, como se fosse doloroso fazê-lo.

— Tenho certeza de que ele pode ter soado mais urgente do que pretendia. — Ela apoiou o peso do corpo nos cotovelos — Mamãe costumava passar horas reclamando do quanto era dramático e exagerado, quero dizer, antes dos dois se separarem.

— Vocês duas ainda mantem contato? — Yandina indagou.

— De vez em quando nós conversamos ao telefone. Ela voltou para a casa dos meus avós e passa a maior parte do tempo ocupada trabalhando como diarista. É claro que eu a amo, mas...escolhi ficar com o meu pai, com quem eu me sinto mais à vontade.

Uma nova explosão luminosa cortou o ar diante das espectadoras, errando o casco, por centímetros, e se chocando contra uma rocha distante. O impacto abriu uma rachadura na superfície, o que fez chover cascalho para todos os lados.

— Meu problema é diferente. — disse a agricultora — Eu e meu irmão somos filhos da melhor guerreira da nossa ilha, preferimos ir embora enquanto ela estava dormindo, porque sabíamos que seria impossível lidar com seu mal humor se nos visse desobedecendo as suas vontades.

— Vocês fugiram de casa? — Niara sorriu, boquiaberta.

— Acreditaria se eu dissesse que derrotamos uma armada de piratas, no caminho até aqui?

Quando se deu conta de que havia falhado pela terceira vez, Kanna encarou o objeto transparente, ainda intacto, e vociferou um palavrão.

— Ei, não acha que está levando isso a sério demais? — Yandina apoiou o queixo em uma das mãos, arqueando a sobrancelha — Que tal continuarmos depois?

— Eu sou o Sol! — o tabelião exclamou, batendo o pé no chão — E me recuso a ir para qualquer lugar, até que aquela garrafa esteja em pedaços!

Niara moveu o indicador e o recipiente tombou para trás, se espatifando no chão.

— Pronto! Podemos ir agora?

A primogênita soltou uma risada tímida, o que serviu apenas para piorar a situação.

— Vocês não entendem! — Kanna esbravejou, os olhos piscando como faróis — Nós estamos muito próximos da Lua, agora! O que ela vai pensar de mim, quando souber que eu não tenho controle sobre os meus poderes?

— Oh. Então é isso o que está te incomodando. — Yandina franziu o cenho — Kanna, nós ainda não temos nenhuma informação sobre a sua contraparte! Existem tantas versões diferentes do mito, que é impossível prever o que vai acontecer quando vocês se encontrarem.

— Sua irmã tem razão. Deveríamos seguir em frente, não é como se você estivesse muito melhor, do que quando começamos.

Kanna rosnou, a grama abaixo de seus pés assumiu uma coloração fluorescente e começou a crepitar.

— Respire fundo... — Yandina pediu, tocando o ombro do caçula — Agora, tente de novo. Tenho certeza de que vai se sair melhor!

O garoto assentiu, reacendendo o brilho em seus punhos.

Dessa vez, ele focou sua atenção em um alvo diferente, a sua esquerda...

E o atingiu.

— Certo... Eu estou apenas adiando o inevitável. — Kanna mordiscou o lábio inferior — Vamos voltar para a estrada. Foi para isso que viemos, não é mesmo?

O tabelião caminhou até o seu veículo e assumiu o controle do volante, seguindo pelo asfalto. Ainda estavam há meia hora de distância da cidade vizinha, quando as pupilas de Kanna assumiram um tom permanente de dourado.

— O que eu devo dizer quando estivermos cara a cara? — perguntou, com as pálpebras semicerradas.

— Eu não sei. Você sempre foi melhor do que eu para lidar com outras pessoas. — Yandina rebateu — Pode começar perguntando o nome dele...

— Ou dela. — Complementou Niara — Diga algo positivo sobre as suas roupas ou o seu cabelo. Todo mundo gosta de elogios!

— Bem, eu gostaria de ter ido ao barbeiro antes de começarmos essa viagem...

— É para falar sobre o cabelo dele, Kanna! Não o seu! — Yandina grunhiu.

O veículo parou no acostamento.

Uma figura masculina e atlética, com espinhos verdes crescendo sobre a pele, começou a ganhar forma no horizonte. Mesmo nunca tendo visto seu rosto antes, Kanna conseguiu identificar quem era o garoto com a pele cor de creme e cabelos negros, que estava caminhando em sua direção.

— É você! — o tabelião esfregou a nuca, envergonhado — Finalmente nos encontramos...

— O que você está fazendo na minha mente? Mandou aquele homem para me executar?

Kanna hesitou, confuso.

O que tornou ainda pior, a tensão que pairava entre os dois.

Kalik levantou o antebraço e seus espinhos foram arremessados contra o rapaz.

O tabelião teria sido perfurado, se Yandina não tivesse tomado a frente, utilizando seu par de machetes para partir os projéteis, antes que o atingissem.

Kalik moveu o pulso e uma raiz, do tamanho de um tronco, irrompeu sob os pés de Kanna, lançando-o para o ar.

— O que está acontecendo? — Niara se aproximou, nervosa.

Antes que sua mente pudesse reagir a súbita mudança de eixo, o corpo do rapaz das ilhas de Sunan ficou estático, pairando sobre os carros, que seguiam como se não houvesse um evento celestial se desenrolando acima de suas capotas.

Uma mulher mais velha e seu marido, despontaram de uma das extremidades da rodovia, sacudindo os braços para chamar a atenção dos combatentes.

O sol e a Lua disseram, ao mesmo tempo:

— Fiquem fora disso!

E uma força invisível forçou todas as pessoas e objetos nos arredores a permanecerem em seus lugares, como se tivessem se tornado incapazes de sustentar o próprio peso.

Kalik tomou impulso e flutuou até o adversário, encarando-o nos olhos.

— Tenho certeza de que isso não passa de um mal-entendido. — Kanna argumentou — Eu não quero machucar você!

O pescador sorriu, com cinismo.

— Você acha que conseguiria?

No instante seguinte, um feixe de luz atirou Kalik por cima da carreta de um caminhão paralisado. Ele tentou se levantar, mas suas costelas protestaram com o esforço.

— Eu... — o tabelião aterrissou — ...não deveria ter feito isso.

Kanna tentou se aproximar do rival subjugado, para curar o estrago que havia feito. Contudo, um pássaro negro mergulhou do céu e rasgou seu ombro com as garras.

Ele emitiu um urro de dor, concentrando energia no ferimento. O animal recuou, assustado, assim que a temperatura começou a subir, regenerando a pele e os músculos danificados.

— Kalik está sendo manipulado! — gritou Nayeli, ainda imóvel — Cure a mente dele!

Uma revoada de urubus rodeou a dupla.

O tabelião deu mais um passo e sentiu um puxão.

Kalik o agarrou pela camiseta e chocou suas costas no metal da carreta, montando em seu colo. Mesmo ferido, o pescador parecia pronto para nocauteá-lo, usando apenas a força dos punhos, quando Kanna segurou seu rosto e forçou suas testas a se tocarem.

Centelhas dançaram entre os dois, iluminando o anoitecer em todo o distrito, os animais se dispersaram.

Lentamente, Kalik recuperou suas lembranças originais e se afastou, deixando o rival desconcertado.

— Você é forte! — disse Kanna, alisando os músculos expostos do rapaz.

Mas ele se limitou a esboçar um meio sorriso, desviando seu foco para a sacerdotisa, que estava encarando os dois, como se tivesse esquecido como usar as palavras.

— Kalik, — Áquila chamou, chegando mais perto — é bom saber que você está bem.

— Eu... — a voz dele falhou — ...fiz uma coisa horrível!

Assim que o pescador retornou para o chão, o alfaiate o abraçou.

Yandina e Niara abaixaram a guarda, ao mesmo tempo em que dezenas de motoristas decidiram dar as caras, para averiguar a fonte de todo aquele poder.

Eles se reuniram em torno de Kanna, o engrandecendo, enquanto Kalik se afundava em mágoas.


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