Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 8
QUATRO - Kanna




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Kanna avistou uma cachoeira no meio do caminho e encontrou em seu leito, a oportunidade perfeita para saciar sua sede. Ele se ajoelhou a margem do rio e uniu as mãos em forma de concha, saboreando a água gelada escorrendo por sua garganta.

 — Yandina, eu disse para esperar no carro! — o tabelião resmungou, para a sombra que havia se projetado na grama, ao seu lado.

Quando subiu o olhar para a imagem refletida no líquido translúcido, se deparou com a figura de um senhor, com a pele avermelhada e cabelos longos e lustrosos, que escorriam sobre seus ombros como seda negra.

Kanna deu um salto, ficando de frente para o sujeito, que ainda não havia esboçado qualquer emoção. Seu corpo, involuntariamente, começou a reluzir.

— O que você quer comigo?

— Eles tinham razão... — o senhor murmurou, protegendo o rosto com as mãos. Apesar de tudo, havia um sorriso em seu rosto — É você, o Deus-Sol!

— Do que você está falando?

— Os espíritos me contaram tudo! — gargalhou, eufórico — Sou um grande devoto de sua divindade, por favor, permita-me ajudá-lo!

O garoto se acalmou, levando a mão ao peito.

— Sua divindade? — ele ajeitou o lenço em seu pescoço — Eu gostei disso.

Yandina chegou logo depois, com as madeixas crespas presas em um coque alto. Ela parecia pronta para o combate, mas nem um pouco entusiasmada para tal.

— Raoni, sou o pajé representante de um seleto grupo de fiéis. — o senhor se apresentou, se curvando para Kanna, de maneira exageradamente teatral — Seria uma honra, oferecer a você minha morada e meus serviços, em troca de suas bençãos.

Kanna teria aceitado sem hesitar, se a irmã não o tivesse interrompido.

— Ele não pode se comprometer com isso, ainda não desenvolveu todas as suas habilidades. — Ela explicou, temerosa.

— É mesmo? — Raoni arregalou os olhos, cobrindo os lábios com as mãos — É possível que tenha enfraquecido sua ligação com as energias superiores, quando assumiu uma forma humana. Se me derem uma chance, estou certo de que consigo ajudá-los a solucionar esse problema!

Yandina ergueu o indicador para protestar, mas não encontrou motivos para fazê-lo.

Por fim, acabou concordando.

Kanna interpretou o gesto da irmã como um sinal de que havia decidido confiar naquele senhor e o acompanharam até um humilde complexo, composto por palafitas e cabanas cobertas de palha.

— Pai! — chamou uma figura feminina, vestindo uma camisa larga e bermudas.

Não foi difícil compreender que ela estava falando com Raoni, os dois eram fisicamente muito parecidos, mas suas madeixas escuras formavam cachos abertos até a altura dos ombros, e os lábios eram mais grossos, algo que Kanna e Yandina, imediatamente, concluíram, se tratar de traços que havia herdado da mãe.

— Niara, eu avisei para não se preocupar! — ele a abraçou — Os espíritos guiaram meu caminho, em segurança, até o grande Deus-Sol!

Seu reencontro amistoso foi interrompido por uma risada estridente. Assim que se viraram, os quatro notaram a presença de um rapaz, com óculos escuros e alargadores nas orelhas, conduzindo uma caminhonete há poucos metros de distância. 

— Não acha que já está velho demais para acreditar nessas bobagens, Raoni? Até quando vai insistir nessa história de fantasmas? Não é mais fácil admitir que não possui nenhum dom? — ele zombou, antes de desaparecer na estrada de terra, deixando uma nuvem de poeira para trás.

Yandina se virou para encarar o pajé, que parecia indiferente, ao contrário de Niara, que havia deixado de sorrir e agora estava vermelha como um tomate.

— Vamos, Kanna! Deixe as garotas conversarem. — Raoni solicitou, simpático — Temos algo grande para realizar!

O tabelião prosseguiu até os fundos do interior de uma casa de pau a pique. Kanna notou que, em comparação com sua moradia nas ilhas de Sunan, havia poucos moveis espalhados pelos cômodos, o que tornava o ambiente mais espaçoso e arejado, mas também lhe causava uma sensação desconfortável de incompletude.

— É aqui onde eu durmo. — o pajé, que agora ostentava um cocar de plumas azuis no todo da cabeça, apontou para uma cama de solteiro na extremidade do quarto — Mas também é onde realizo meus rituais.

Ele se agachou e retirou do interior de uma gaveta de sua mesa de cabeceira, um charuto e uma caixa de fósforos. Raoni acendeu o instrumento e o levou a boca.

— Eu garanto que você não terá muito trabalho!  — afirmou Kanna — Estive treinando, a minha própria maneira, quando estive em Obirú. Meu poder de cura deixou todos impressionados!

— Você mostrou a extensão de seu dom a outras pessoas? — o pajé elevou o tom de voz, mas sem demonstrar irritação — Como elas reagiram?

— Eu...acho que ficaram confusas, talvez ainda estejam digerindo o que aconteceu.

— Entendo. É possível que seja esse o seu objetivo na terra, converter os infiéis!

— Talvez. — o tabelião deu de ombros — Mas antes, eu preciso encontrar a Lua.

— Oh! — Raoni deu uma volta no quarto, entusiasmado, e agarrou um par de chocalhos que estavam pendurados em um suporte de madeira — É como a lenda dos amantes proibidos!

— O quê? — Kanna deixou escapar uma risada — Não me leve a mal, mas eu prefiro a outra versão do mito. O meu amigo sempre disse que o Sol e a Lua eram forças semelhantes, mas não se relacionam. Isso é o que os humanos fazem!

— Bem, nesse momento, você parece muito humano para mim!

O garoto sorriu, sem graça, enquanto o pajé iniciava uma melodia harmoniosa com seus maracás.

Ainda que houvesse quase dez metros a separando do irmão, Yandina pôde ouvir a música penetrando em seus ouvidos, do lado de fora. Ela ignorou a presença de Niara, por um minuto inteiro, o que bastou para que a garota fosse derrubada de costas no chão, após uma tentativa fracassada de escalar um jambeiro.

— Essas frutas estão verdes. — A agricultora explicou — Você vai acabar se machucando se continuar tentando colhê-las!

Niara não rebateu, na verdade, ela continuou deitada, com os olhos fechados.

— Você...está bem? — Yandina empalideceu — Responda, por favor!   

A garota se levantou em um salto, se desmanchando em risadas.

— Deveria ter visto a sua cara! Achou mesmo que um tombo desses iria acabar comigo?

— Isso foi ridículo! — ela cruzou os braços sobre o peito, emburrada.

— Que mal humor! Também tem medo de que meu pai seja um farsante?

— É claro que não! — as bochechas de Yandina ficaram quentes — Eu só...não quero me meter em nenhum problema.

— Você não parece mesmo esse tipo de pessoa. — Niara a analisou, de cima a baixo, sem qualquer malícia — Algumas pessoas costumam dizer que o universo se encarrega de resolver as injustiças. É algo que eu gosto de acreditar.

A agricultora franziu o cenho,

— Quem era aquele rapaz? Na caminhonete?

— Cobi. Nunca conversamos. Ele é um idiota!

— Percebi.

Elas gargalharam, juntas.

— Seu irmão teve sorte. Tenho certeza de que quando forem embora de Hibira, ele vai estar muito mais habilidoso. — Niara torceu o nariz — Não me leve a mal, eu gosto do lugar onde eu vivo, mas não acho que terei muitas oportunidades para aprimorar os meus talentos. Ao que parece, terei que terei que passar o resto da vida usando meus poderes para fazer contas para colares.

— Eu entendo o que quer dizer, não há nada pior do que se sentir pressionada.

— É mesmo? E você? O que sabe fazer?

Yandina ergueu o queixo, contemplando a copa da árvore mais próxima.

Ela se agarrou ao seu tronco, escalou meia dúzia de galhos com maestria e atirou um fruto nas mãos da garota.

— Aqui. Encontrei um bom! — sorriu.

Os sons harmoniosos que reverberavam no interior do quarto de Raoni, não pareceram surtir nenhum efeito de início. Entediado, Kanna se sentou no chão e fechou os olhos por um segundo.

Quando os abriu novamente, sentiu o chão faltar, abaixo de seus pés. Na verdade, tudo ao seu redor parecia diferente. O próprio ambiente onde estava inserido, parecia ter sido substituído por uma imensidão infinita, coberta por nuvens brancas.

— Onde eu estou? — o tabelião questionou, assustado. Com o canto dos olhos, ele interceptou um vulto disforme se movendo atrás de si, mas quando se virou para encará-lo, não havia nada — O que são essas coisas?

— Concentre-se, Kanna! — disse o pajé, com um ar imponência que não parecia pertencê-lo. Aterrorizado, o garoto chegou à conclusão de que poderia se tratar de um fragmento, de sua própria consciência — Tudo no universo possui uma energia e uma função. Você é o Sol.

O tabelião recuou.

No plano material, seu corpo permanecia inerte, flutuando sobre o piso. Mas isso não bastou para impedir que a temperatura de toda aldeia se elevasse em alguns graus, deixando os moradores e visitantes, ligeiramente, desconfortáveis.  

Kanna estava permitindo que a insegurança se apossasse de seu corpo, como quando era menor. Mas agora ele sabia, podia sentir, em seu âmago, que não havia motivos para tal.

— Eu sou o Sol!

O tabelião urrou e quatro feixes de luz avançaram, de maneira desordenada, na direção de Raoni.

Um deles atingiu um dos chocalhos, que o homem empunhava, reduzindo-o a estilhaços fumegantes.

— Você teve um avanço, e ainda assim, errou o alvo. — O pajé observou, com criticismo — Por quê?

— Eu...não queria machucá-lo de verdade.

— Mentira! — sua expressão endureceu — Encontre o que está te limitando e assuma o controle!

Muitos pensamentos vieram a mente do garoto.

Ele havia deixado uma vida confortável, amigos, sua própria mãe, para se aventurar em uma jornada cujo resultado era impossível de prever, mas após um instante de reflexão, optou por concentrar seus esforços em algo diferente.

— Esse...lugar. É muito estranho para mim.

— Pois então o modifique!

— Eu não sei fazer isso! — bufou.

— Como pode ter tanta certeza, se nunca tentou?

 Kanna respirou fundo e o cenário reagiu as suas emoções, tremeluzindo e mudando para um espaço aberto, com areia e água salgada.

Uma miragem.

Estava tão focado em si mesmo, que não ouviu o som de algo arranhando a parede da residência de Raoni, localizada no plano material.

— Encontrou um idiota que paga para ouvir as suas mentiras? — debochou Cobi, retraindo suas garras, afiadas como as de um falcão.

Yandina e Niara avistaram o rapaz e seu veículo, enquanto se aproximavam.  Elas se entreolharam, e sem dizer uma só palavra, chegaram a um acordo.

A agricultora derrubou Cobi no chão, desferindo uma rasteira.

Niara ergueu o braço para o céu e estalou os dedos, fazendo com que todas as janelas da caminhonete explodissem.

Kanna e Raoni chegaram algum tempo depois, e encontraram as duas de pé, lado a lado, conversando sobre algo que eles não conseguiram compreender.

— O que foi, querida? — indagou o pajé — Aconteceu alguma coisa?

Ela fez que não, antes se voltar para a amiga, buscando apoio.

— Pai, eu andei pensando e... vou embora com eles.

Raoni perdeu o folego.

— Você decidiu partir em missão com o deus do Sol? Niara, isso é maravilhoso! Eu estou muito orgulhoso de você!

A garota sorriu, acanhada.

— Foi uma experencia interessante, Raoni. — disse Kanna, indiferente a novidade — Eu...espero realmente que tudo dê certo na sua vida!

Para a surpresa de Yandina, aquilo pareceu ser suficiente para deixá-lo extasiado.

— Muito, muito obrigado mesmo, sua divindade!  

O tabelião mirou a irmã, como se tentando decifrar o que ela estava escondendo, enquanto Niara pôs-se a revirar as próprias acomodações, tentando se preparar para as mudanças que seu futuro reservava.


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