Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 7
QUATRO - Kalik




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Quando seus pés se cansaram, Kalik parou de caminhar e se acomodou em um ponto de ônibus na lateral da rodovia, tentando organizar os pensamentos. Ele afundou as mãos nos bolsos e reuniu um punhado de moedas que havia guardado em outro momento.

Concluiu, com um grunhido cansado, que não estava em boas condições, e praguejou em voz alta, amaldiçoando os céus por sua falta de sorte.

 — Teve uma manhã difícil, amigo? — perguntou um homem barbudo que estava dirigindo uma van estampada com flores — Que tal relaxar um pouco com a gente?

A porta do veículo se abriu, revelando duas mulheres, usando vestidos chamativos. Uma delas tinha dreadlocks na cabeça e estava sentada no chão, confeccionando uma coroa de flores, a outra, estava deitada no sofá, alisando uma mexa do cabelo ruivo, com uma satisfação estranha no olhar.

— Preciso ir para um lugar. — respondeu o rapaz, receoso.

— Nós levamos você! — disse o motorista — A não ser que esteja esperando alguém...

Ele riu, sem humor, e se sentou no banco do passageiro.

— Meu nome é Landon, e aquelas são minhas amigas, Jada e Kayla. — Kayla desviou a atenção de seus fios e murmurou algo para o teto — Qual é o seu destino?

— Meu...destino? — o pescador gastou algum tempo digerindo a palavra — Eu estou tentando encontrar alguém.

— Quer dizer...alguém desaparecido? — Landon estalou a língua — Talvez seja melhor procurar a polícia...

— Não acredito que isso vá ser necessário... — Kalik desconversou, rolando os olhos — ...ou útil, para falar a verdade.

O homem deu de ombros.

— Entendo. — Ele alisou os pelos do rosto — Quando eu era jovem, também não gostava de falar sobre os meus problemas. As pessoas, especialmente os mais velhos, geralmente estão muito ocupados discutindo por causa do trabalho ou do aluguel. É algo difícil de suportar...

— Está certo. — O rapaz comentou, como quem não quer dizer muito — Eu não sou daqui, ainda estou tentando me estabilizar, mas quando conseguir, prometo que irei retribuir o seu favor.

— Bem, talvez seja difícil nos encontrar de novo. — Landon salientou — Estamos sempre viajando.

Kalik semicerrou os olhos.

— Você...não tem uma casa?

— Nenhum de nós têm. — falou Jada — Eu sei que essa ideia deve soar estranha para você. Somos criados com essa visão de que todos precisamos fazer as mesmas coisas para terem sucesso. Eu mesma demorei a perceber que essa rotina não era para mim, era tudo monótono demais...

— Na verdade... — o pescador coçou a cabeça — Eu também não tenho onde morar, acabei tendo que me afastar das pessoas que estavam responsáveis por mim.

Os olhos do motorista brilharam e ele jogou um dos braços, que não estava conduzindo o volante, em torno dos ombros de Kalik.

— Tenho certeza de que vamos nos dar bem! — Landon exibiu os dentes amarelos — Fale mais sobre essa pessoa que você está procurando.

— Não é bem isso o que vocês estão pensando. É uma história complicada.

Kayla se levantou, em um sobressalto e encaixou o rosto entre os bancos, a centímetros dos dois.

— Está tentando encontrar a sua alma gêmea? — ela perguntou, o que deixou o garoto vermelho — Não precisa se envergonhar! Mas se quer um conselho, é bom levar as coisas com calma, ninguém gosta de ser tratado como propriedade.

Em seguida, ela soprou uma nuvem de fumaça, que foi rapidamente sugada pelas narinas de Kalik. Uma sensação de bem-estar e leveza tomou seu corpo no mesmo instante e as cores das nuvens e das árvores, que ladeavam a estrada, se tornaram mais brilhantes.

— Kayla! — xingou uma voz, que ficara subitamente distante.

— Não...Está tudo bem! — o pescador abriu um sorriso, de orelha a orelha.

Kalik não poderia dizer com certeza quanto tempo passou dentro da van, mas se lembrava vagamente de ter iniciado um dueto enérgico com Jada; enquanto ela entoava uma canção sobre a natureza, ele descrevia acordes desafinados em um violão.

Antes que se desse conta, estava desabafando sobre os acontecimentos de seu passado para Landon, que desatou a chorar em seu ouvido.

Os quatro fizeram uma única pausa para comprar pães e frutas frescas em um mercado, que foram suficientes para saciá-los por um longo período, até que o painel do automóvel sinalizou que precisavam parar para abastecer.

— Conheço esse lugar. Tem um posto de gasolina no fim da rua! — anunciou Jada.

Assim que estacionaram, Kalik desceu para apreciar a vista. Seu interesse foi dominado pelas estatuas de mulheres e animais rotundos decorando as praças, as casas com paredes coloridas, que pareciam combinar, perfeitamente, com seu novo meio de transporte e o cheiro de café fresco que preenchia o ar, enchendo-o de energia.

Ele se esqueceu de tudo o que estava o perturbando por um minuto inteiro, até que algo o trouxe de volta para a realidade.

— Eu já disse que não roubei nada! — gritou Landon, tentando se livrar dos braços de uma dupla de guardas, trajando uniformes completos, que havia prensado seu rosto contra a parede de uma loja de conveniências.

Kayla começou a gritar e Jada tentou ajudar o amigo, batendo nas costas de um dos homens, sem sucesso. Eles vasculharam as roupas do motorista, com agressividade, para só então, permitirem que ele fosse embora.

— Você viu isso? — perguntou Jada enquanto corria ao encontro de Kalik, assustada.

— Eles não têm o direito de tratá-lo dessa forma! — rangeu os dentes

— Não seja impulsivo! Não temos como lutar contra esses brutamontes. — Landon apertou seu ombro, com o semblante ressentido — Em situações como essa, precisamos usar a cabeça!

O pescador não compreendeu, mas as amigas chegaram mais perto, concordantes.

Kayla cochichou algo para Jada, que, literalmente, desapareceu diante de seus olhos. Landon segurou Kalik pelo braço e o levou, com sua outra acompanhante, até uma papelaria, onde eles gastaram as próximas horas, discutindo o que fariam.

Quando a noite começou a cair, eles eram apenas quatro diante das portas do estabelecimento, segurando cartazes que expunham sua revolta pelo acontecido algumas horas antes, mas então surgiram mais pessoas, empunhando megafones e bandeiras, exigindo um pronunciamento.

— O poder deve ser utilizado para garantir a segurança de todas as pessoas da comunidade! — discursou Kayla, que estava posicionada na linha de frente — Situações de abuso e discriminação não podem ser toleradas!

Os clientes no interior da loja começaram a se levantar, alguns se aproximaram da porta de vidro, tentando entender o que estava acontecendo, outros arrumaram suas coisas e foram embora rapidamente, temendo o confronto que estava por vir.

— Não há necessidade de um escarcéu! — disse um senhor calvo, com suspensórios, que Kalik supôs que fosse o gerente — Estou certo de que se trata de um evento isolado que pode ser facilmente explicado.

Parte da multidão começou a vaiá-lo, expondo sua indignação.

Kalik analisou o entorno, com expectativa, como se aguardando uma reação ainda maior.

E foi o que aconteceu.

Os agentes que haviam imobilizado Landon, mais cedo, se aproximaram, com os punhos cerrados de ódio.

— Vocês, baderneiros, deveriam sentir vergonha! — xingou um deles, que tinha a pele escura e os cabelos cortados bem curtos sob o quepe — Estão prejudicando os negócios de um homem inocente!

O outro, que era tão pálido quanto encorpado, permaneceu em silêncio, mas alguns dos manifestantes, que estavam em seu campo de visão, começaram a cambalear, atingidos por uma onda de medo.

Kalik franziu o cenho, sentindo o sangue ferver nas veias. Por um momento, pensou que a raiva estivesse confundindo seus sentidos, fazendo seus ouvidos zunirem, mas o ruído foi se tornando mais e mais sonoro, e de um segundo para o outro, um enxame composto por centenas de insetos escureceu o céu, pairando acima de suas cabeças.

O gerente engoliu em seco, enquanto seus últimos fregueses gritavam em agonia.

— Nós, ahm, podemos conversar em um ambiente mais reservado? — ele perguntou, olhando nos olhos de seus subordinados, enquanto arregaçava a gola da camisa cinza.

A discussão foi longa e exaustiva, especialmente para Kalik, que decidiu continuar de pé, até que tudo fosse resolvido. Os guardas saíram pela porta dos fundos, enfurecidos, e os integrantes do protesto entrelaçaram os dedos, permitindo que um sorriso satisfeito tomasse forma em seus lábios.

Mais tarde, o pescador e seus companheiros de viagem se reuniram na van, e comemoraram a vitória a sua maneira.

— Aquilo foi inacreditável! — Landon exclamou, flutuando um rolo de cartolina ao redor do corpo, como se fosse uma ferramenta de combate — Vocês acham que algum dos nossos aliados teve algo a ver com o que aconteceu?

— Não seja ridículo, uma única pessoa nunca seria capaz de algo tão grandioso! — disse Jada, convicta — Foi como uma praga! Tivemos sorte de que nada grave aconteceu!

O garoto optou por permanecer em silêncio, aprendera, há muito tempo, que se atraísse muita atenção, poderia acabar piorando a sua situação.

Ele ainda era uma criança quando desenvolveu o seu talento natural com os animais, e continuou progredindo com o passar dos anos, ao ponto em que Aima, a xamã da tribo, decidiu observá-lo.

Um dia, Kalik se cansou de viver com medo e foi largado a própria sorte por seus únicos amigos, as pessoas que mais confiava. Naquela noite, ele perdeu o controle pela primeira vez e o seu dom, que antes era visto como uma dádiva, passou a ser uma maldição.

— Vou procurar um banheiro!

O pescador sentiu o vento gelado penetrando em seus ossos, a cada passo que dava, explorando a rua desconhecida.

Para sua sorte, logo encontrou um bar, onde, após feito tudo o que necessitava, ele pode se sentar em uma cadeira e tirar um tempo para respirar todo o ar que seus pulmões exigiram.

— Ei! — chamou uma mulher, com pouco menos de quarenta anos, vestida com um terno elegante e saltos altos — Eu conheço você, estávamos hospedados no mesmo hotel em Quatum, também sou uma viajante!

Kalik a observou, com apreensão, tentando captar algo familiar em sua fisionomia, no entanto, as tatuagens estranhas, gravados por quase toda a extensão da tez dourada, tornavam quase impossível dar atenção a qualquer uma de suas outras características.

Ela afastou uma mexa dos longos cabelos loiros, que estava caindo sobre os olhos e tomou a liberdade de se aproximar, tocando a mão do pescador, como se já fossem íntimos.

— Eu conheço você! — ela repetiu.

O garoto sentiu algo penetrando em sua mente, revirando suas memorias, modificando-as e apagando pedaços que faziam dele, o que era.

Assim que retornou a si, sentia que era diferente, tinha certeza disso.

— É claro, Adélia. Nós somos amigos. — respondeu.

Antes de desaparecer em um conversível prateado, com Adélia, Kalik contou a Landon e as amigas que seguiria sozinho, deixando-os desolados e temerosos.


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