Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 6
TRÊS - Kanna




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Os dois dias que sucederam sua vitória contra a armada pirata, foram estranhamente pacíficos. Quando Yandina precisava descansar, Kanna assumia o volante e mantinha os olhos atentos para qualquer ameaça que pudesse surgir em seu caminho.

Vez ou outra, quando ambos estavam despertos, eles conversavam sobre suas expectativas quanto a viagem. O caçula admitiu sentir saudades da areia da praia esfoliando a sola dos pés, enquanto a primogênita fez o mesmo comentário, sobre o perfume dos alimentos frescos que degustavam em cada refeição.

— Enfim, chegamos! — disse Kanna, estacionando em um porto.

— Onde nós estamos? — Yandina indagou, enquanto levantava a saia para subir em uma plataforma de madeira.

— Se fizemos certo, estamos em Obirú, um país do lado sul. — ele observou o entorno, composto por pequenas casas de alvenaria e montes verdes cobrindo o Sol — Parece ser um lugar tranquilo. Não devemos ter nenhum problema para...

Ouviu-se um grito.

Quando o tabelião se virou, sua atenção foi tomada por um sujeito de trinta anos, com cabelos negros e pele cor de caramelo, estirado em uma cadeira de rodas.

— Dominic! — choramingou o rapaz, mais jovem, que parecia tê-lo trazido até ali — Responda, por favor!

Por estar trajando um jaleco, Kanna supôs que se tratava de um estudante da área da saúde. Seu rosto trigueiro era anguloso e os fios castanhos e longos estavam presos em um rabo de cavalo alto, que deixava visíveis os furos que possuía nas orelhas.

— O que há de errado com ele? — perguntou Yandina, nervosa.

— É difícil dizer! Ele teve que amputar as pernas, mas isso não é algo recente, não é possível que esteja infeccionando... — apenas nesse momento, Kanna notou que, o homem não possuía os membros inferiores — Talvez a pressão dele tenha caído ou esteja sendo afetado pelo calor...

— Para trás! — Kanna ordenou, abrindo espaço entre as diversas pessoas que pararam para observar o acontecido — Eu tenho poderes de cura, posso tentar ajudá-lo!

O tabelião se aproximou de Dominic e tocou sua testa, cobrindo-o com centelhas douradas. Embora permanecesse debilitado da cintura para baixo, ele começou a abrir os olhos, lentamente.

— Eu estava certo, Rizvan. Não foi uma boa ideia sair de casa hoje! — disse o homem mais velho, antes de unir seus lábios aos do companheiro.

A multidão aplaudiu e tão rápido quanto havia se formado, começou a se dispersar, à medida que os transeuntes retornavam as suas atividades cotidianas.

— Qual o seu nome? Como posso recompensá-lo por sua ajuda? — perguntou Rizvan, extasiado.

Kanna estufou o peito.

— Eu me chamo Kanna e essa é a Yandina, minha irmã. Se você puder nos indicar um quarto barato para alugarmos...

— O quê? Sem chance! — protestou o rapaz — Não vou permitir que durmam em qualquer lugar! Fiquem na minha casa o tempo que precisarem, tem espaço de sobra!

Dominic exibiu um meio sorriso, enquanto Rizvan gesticulava, exasperadamente, para um grupo de trabalhadores musculosos que estava caminhando pela calçada.

— Levem os suprimentos e a lancha desses viajantes para minha casa, por favor! Garanto que serão bem recompensados!

Eles obedeceram, sem que houvesse a necessidade de qualquer complemento. 

O estudante guiou os dois até uma mansão de paredes amarelas no fim da rua, ladeada por um imenso jardim. Rizvan passou pelos portões e cumprimentou todos os empregados com um aceno simpático, enquanto Kanna e Yandina observavam, maravilhados, toda a beleza e requinte que emanavam do ambiente.

— Você tem uma bela residência.... —  disse a mulher, boquiaberta.

— Meus pais são diretores da própria agência de publicidade. Eles trabalharam duro para que tivéssemos as melhores condições de vida. — Rizvan esclareceu, enquanto caminhava — No momento, estão aproveitando as férias, em um resort distante.

— Nós também viemos de longe. — comentou Kanna.

— É mesmo? E o que os trouxe até aqui? — Dominic levantou a sobrancelha.

— Estamos procurando a Lua!

Yandina emitiu um ruído de espanto.

— Isso é uma gíria da sua região? — o homem mordiscou a parte interna da bochecha — Se estão procurando a Lua, esperem anoitecer e olhem para cima!

Ele gargalhou, e o noivo fez o mesmo, admirando seu entusiasmo.

— Se forem seguir por terra, vão precisar de outro veículo.

— Estávamos pensando em negociar nossa lancha por um automóvel.

— Eu ficaria feliz em ajudá-los com isso! Nós nunca tivemos um barco para passeio.

O interior da construção era tão luxuoso quanto a parte externa. Depois que os irmãos tomaram um banho e vestiram roupas novas, cada um deles se aconchegou em uma assento na cozinha e aguardou, pacientemente, até que uma senhora com um avental se aproximasse, carregando um bule e um conjunto de xícaras de porcelana.

— Seu poder é realmente interessante, Kanna. — Rizvan elogiou, cruzando as pernas enquanto bebericava o chá — Imagino que também se interesse por medicina.

— Ahm, para falar a verdade, eu sempre admirei profissões de maior status. — o tabelião admitiu — Mas descobri minha habilidade para a cura muito recentemente, quando já estava trabalhando em outra área, então nunca cogitei essa possibilidade.

— Deve ter sido ruim passar por isso na infância. — Dominic franziu os lábios — Eu atuei durante muito tempo em uma fábrica, na minha antiga cidade. Vocês deveriam ter me visto em meus dias de glória, conseguia deixar meus músculos com o dobro do tamanho atual. Mas desde que me envolvi em um acidente, não tenho mais tanto vigor...

Rizvan apertou a mão do noivo, com ternura, o que deixou Yandina comovida.

— Talvez Kanna ainda possa fazer algo! — ela propôs, soando mais imperativa do que planejava — Como ele mesmo disse, antes desconhecíamos o seu talento. É possível que esteja apenas precisando de prática, para torná-lo mais eficiente!

— Isso é fácil de resolver! — disse o estudante, subitamente motivado — Eu estou no meu intervalo, posso levá-lo ao hospital comigo e podemos praticar juntos! Tenho certeza de que meus superiores não vão se incomodar em tê-lo do nosso lado.

Kanna ponderou.

— Eu...acho que podemos tentar.

Rizvan saltou do assento, envolvendo-o em um abraço apertado.

Algum tempo depois, lá estavam eles, em uma sala totalmente branca, acompanhados por uma mulher de meia idade, com tranças de jumbo caindo nas costas. A chefe da residência observou, perplexa, enquanto Kanna fazia desaparecer, por completo, uma cicatriz de cinco centímetros que estava exposta na coxa de um paciente.

— Doutora Maylin, entende por que eu disse que, dessa vez, deveríamos ignorar o protocolo? — Rizvan segurou, com mais força, a prancheta que carregava — Todos temos as nossas qualidades, mas isso, é incrível! Eu me comprometo a cobrir o custo de todas as consultas, se for necessário!

— Certo. Eu posso orientá-lo por hoje. — Ela determinou — Desde que ele prometa que irá pensar na possibilidade de se unir a nossa equipe, permanentemente.

— Eu prometo! — mentiu o garoto, com um sorriso radiante no rosto.

— Ótimo!

Maylin caminhou até a sala de espera do hospital e solicitou que todas as pessoas cujos hematomas fossem medianos ou superficiais, seguissem-na até um corredor afastado. Uma menina de oito anos, usando um vestido amarelo e marias-chiquinhas, foi a primeira a ser atendida, ela havia se acidentado na cozinha de casa.

— Essa é uma queimadura de segundo grau. — explicou a doutora, tocando, gentilmente, a mão machucada — Você notou alguma mudança na aparência do ferimento quando chegou aqui? Tentou usar algum tratamento caseiro?

A garotinha olhou para a mãe, esperando que respondesse por ela.

— Nós só lavamos com água gelada e depois de um tempo, começaram a surgir bolhas. — respondeu a mulher, enquanto esfregava os ombros.

— Deve estar dolorido. — Rizvan analisou — Deixe-me ajudar!

Ele fechou os olhos e acariciou sua palma.

Kanna esperou que algo incrível acontecesse, mas, visivelmente, não conseguiu identificar nenhuma mudança. O semblante da menina, porém, tornou-se menos aflito no mesmo segundo.

— Agora parou de doer. — ela riu.

— O que...? — o tabelião arqueou as sobrancelhas.

— Rizvan possui domínio sobre as sensações. — disse Maylin — Tem potencial para se tornar o melhor dos anestesistas.

— Essa é a minha primeira opção, mas ainda estou incerto. Eu quero muito ajudar as pessoas, mas parece que nunca consigo fazer o bastante.

Kanna curou a queimadura.

— Eu já conheci alguns médicos na minha terra natal, mas nem todos pensavam dessa forma. Pelo que acabo de ver, você realmente se preocupa com os outros. É uma boa pessoa, Rizvan.

O estudante sorriu e ajeitou uma mecha do cabelo, envergonhado.

Kanna passou mais de uma hora tratando de escoriações, perfurações e desconfortos provocados pelas mais diversas circunstâncias. A chefe continuou oferecendo seu suporte, ditando informações detalhadas sobre cada lesão que lhes era apresentada.

— Bem, eu não vou dizer que as coisas foram fáceis. — Rizvan exalou — Dominic tentou me conquistar com cartas e presentes secretos. Eu não me interessei muito no início, mas então ele se revelou. Foi tão agradável e gentil, acho que tinha medo de como eu reagiria a sua condição. Nós vamos completar três anos juntos, esse mês!

— As pessoas realmente mudam quando estão apaixonadas, não é? — brincou a doutora Maylin, girando um anel prateado que possuía em um dos dedos.

— Com certeza. — Kanna grunhiu, zombeteiro — Minha irmã fica insuportável quando começa a falar sobre o melhor amigo dela.

O estudante apoiou as costas na parede, bem-humorado.

— Vocês dois parecem tão unidos! Eu sempre quis ter uma irmã para me ajudar a pentear meus cabelos, dar conselhos sobre o que vestir, conversar sobre as decepções amorosas...

— Você poderia pagar alguém para fazer isso.

— Não seria tão simples, quanto parece! — Rizvan esboçou uma careta e Kanna rebateu, devolvendo o gesto.

— Doutora Maylin! — um enfermeiro, de expressão angustiada, chamou sua atenção — Estão precisando de você, na emergência! Houve um acidente na rodovia, dois adolescentes ficaram gravemente feridos!

A médica apressou o passo para chegar até outro cômodo, seguida pelos pupilos.

Assim que passou pela porta, Kanna sentiu suas pernas bambearem.

Estirado em uma maca, havia um jovem inconsciente, de olhos claros e rosto sardento, com cerca de dezesseis anos. Um de seus braços havia sido decepado e a gaze utilizada para conter o sangramento, estava manchada de vermelho.

Deitado ao seu lado, estava outro paciente, um pouco mais velho e corpulento, se debatendo no colchão, tentando afastar os profissionais que o cercavam.

— Digam-me o que está acontecendo! — implorou ele, deixando perceptível o quanto estava embriagado — Fui eu quem fiz isso?

— Vocês encontraram a parte que falta? — perguntou Maylin, sem perder a compostura.

Um funcionário se aproximou com uma caixa de isopor fechada.

— Ótimo! Preparem-no para a cirurgia. Quais informações temos?

— Eu posso ir junto! — Rizvan sugeriu — Assim não precisarão sedá-lo.

— Eu também quero ajudar! Acredito que não sou bom com ferimentos graves, mas posso eliminar as feridas menores!

Kanna respirou fundo e ergueu os braços, fazendo com que sua força se alastrasse até a vítima. Ela acordou, gritando a plenos pulmões, enquanto sacudia o novo membro que crescera, magicamente, sobre os resíduos do antigo.

Nenhum dos presentes pronunciou uma só palavra sobre o acontecido.

Estavam atônitos.

Mesmo depois, a chefe não procurou por Kanna para conversarem sobre sua proposta. O tabelião permaneceu ao lado de Rizvan, enquanto ele pedia à secretária, o telefone, para que pudesse informar ao noivo, o que havia acabado de presenciar.

— Oh, olá Yandina! — ele cumprimentou a agricultora do outro lado da linha— Seu irmão evoluiu muito hoje! Ele mesmo não está conseguindo acreditar no que acabou de fazer! Tenho certeza de que Kanna já está pronto para tratar Dominic novamente...

Os dois continuaram a conversa durante alguns minutos, enquanto Kanna tentava encontrar as palavras certas para dizer que não estava se sentindo mais poderoso ou hábil, desde que chegaram ao hospital.

— Eu vou dizer a Dominic que vocês estão voltando para cá... — Yandina respondeu.

Todavia, quando ela se virou, não encontrou o homem sentado em sua cadeira de rodas.

Dominic estava no quarto do companheiro, de pé sobre duas pernas completamente saudáveis, escondendo um monte de joias em sua mala. Antes de sair da casa, pela porta dos fundos, sua forma mudou, transformando-se em um idoso de aparência inofensiva.

— Ele...sumiu? — Rizvan estava trêmulo, quando recebeu a notícia — Mas isso não faz sentido!

— Eu desconfio que Dominic estivesse mentindo, esse tempo todo. — Kanna umedeceu os lábios — Seu poder não era apenas aumentar o tamanho dos músculos, era um transmorfo e usou isso para fingir que tinha uma deficiência. Eu...sinto muito mesmo!

— Mas...nós nos amávamos! — o rapaz sacudiu a cabeça — Deve haver outra explicação!

Yandina esfregou os olhos e foi nesse momento, que Rizvan desmoronou.

Ele curvou o corpo para frente e urrou, enquanto fios de lágrimas escorriam por suas bochechas.

Kanna segurou o ombro do amigo e enxugou seu rosto com os dedos.

— Se você quiser, nós podemos ficar aqui com você, até que esteja se sentindo melhor...

— Não! — Rizvan se afastou, forçando um sorriso, como quem não quer incomodar — Já está tarde, pedirei que arrumem um quarto para passarem a noite. Amanhã de manhã, podem seguir com sua viagem, no meu carro. Eu preciso de um tempo sozinho!

Yandina tomou a frente, compreendendo a importância de sua decisão.

— Rizvan...Obrigada por tudo!

Os três se abraçaram e prometeram que aquela, não seria a última vez que se veriam.


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