Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 5
TRÊS - Kalik




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Enquanto Kalik dormia no banco traseiro do carro, Nayeli balbuciava orientações sobre o percurso que deveriam seguir para chegar as fronteiras do país vizinho. Áquila não fez nenhum comentário durante a viagem, o que deixou a esposa inquieta.

— Você encontrou o seu primo quando esteve fora? — ela perguntou, penteando uma mecha do cabelo com as mãos — É por isso que começou a pensar em ter filhos?

Não houve necessidade de uma resposta verbal. O talento de Nayeli a tornava excelente em decifrar enigmas.

— Você foi visitá-lo, mas essa sua ideia não é tão recente. — Concluiu a mulher — Quando conversamos sobre isso pela primeira vez, concordamos que não era algo necessário, mas com o tempo, você mudou de ideia e ficou com medo de me dizer...

— Nayeli, por favor! Você vai acabar acordando o Kalik.

A sacerdotisa olhou para o marido, depois para o rapaz atrás deles e por último, para si mesma, através do reflexo do espelho retrovisor.

— Entendi.

O garoto se moveu, desconfortável, no lugar.

— Presta atenção na pista, Áquila! — alertou Nayeli.

— O que você disse?

A mulher agarrou o volante e tomou o controle do automóvel, há tempo de desviarem de um enorme felino, com manchas escuras espalhadas por todo o pelo amarelado, que decidira, inesperadamente, cruzar a rodovia.

O veículo mudou de faixa e se chocou contra uma árvore, o que fez o motor exalar fumaça. Antes que Áquila ou o recém-desperto Kalik pudessem processar o que havia acontecido, o jaguar desapareceu.

— Não! Não! Não! — o alfaiate empurrou a porta e em seguida levantou o capô amassado, como se tivesse alguma ideia do que estava fazendo.

— Ao menos não atropelamos aquele animal. — disse Nayeli, se aproximando do marido.

Kalik pigarreou, fitando a paisagem.

— A rua está vazia. Deveríamos aproveitar para empurrar o carro até um lugar seguro, antes que haja outro acidente. — Ele sugeriu, esfregando o cotovelo.

O trio de viajantes dedicou alguns minutos e uma boa quantidade de esforço físico para levar o veículo por cerca de dez metros, onde se depararam com uma placa enorme com os dizeres “Bem-vindos a Quatum!”. Eles foram recebidos pelo dono de uma hospedagem, que ofereceu seu telefone para que pudessem chamar um guincho.

— O conserto deve demorar alguns dias. Não querem alugar um quarto? — perguntou o senhor Espinosa, com um sorriso acolhedor. Ele tinha um cavanhaque no queixo e sua pele era morena como a de Nayeli, embora as madeixas naturalmente escuras denunciassem que possuía alguns anos a menos.

— Não é como se tivéssemos outra opção... — murmurou o pescador, o que fez o homem enrubescer.

Durante o almoço, os consortes pediram tortilhas de milho recheadas com carne de porco, Kalik, por outro lado, preferiu algo com peixe. Ele, contudo, quase não tocou na comida, passou a maior parte do tempo arranhando a porcelana do prato com o talher.

— Você veio de Thulen. — disse Áquila, tentando criar uma conexão — Deve estar sendo difícil se acostumar com o clima da região. Nós estamos na primavera, então você não vai ver nenhum sinal de gelo ou neve por um bom tempo!

— Estou mais impressionado com o barulho, na verdade. — respondeu, mordiscando o lábio — Quero dizer, Thulen não é muito populosa e tem poucas lojas, é um pouco estranho ouvir pessoas conversando e gritando o tempo todo.

O alfaiate gargalhou, como se tivesse ouvido a melhor das piadas.

— Você cruzou um longo caminho para chegar até aqui, rapaz. Certamente deixou alguém importante para trás... 

Ele moveu a cabeça, negativamente.

— Eu passei grande parte da minha infância em um orfanato e quando saí, aprendi a me virar, trabalhando com pescadores mais velhos. — explicou, acariciando o bigode — Quando eu disse que achava que estava sendo vigiado, eles não me deram ouvidos, pensaram que estava sendo paranoico. Nós brigamos e eu decidi que era melhor ir embora.

— Deve ter sido muito difícil. — disse Nayeli, olhando-o nos olhos — Mas, veja, agora você está muito acima de qualquer uma dessas pessoas. É uma peça fundamental de um evento de proporções divinas!

O garoto deu de ombros.

— Até o momento, minha vida de deus não tem sido nada gloriosa...

Áquila levantou uma das mãos, chamando a atenção da atendente.

— Onde eu posso conseguir informações sobre os pontos turísticos da cidade?

A funcionária, cujo uniforme vermelho destacava a tez pálida, correu até o balcão e tirou de uma gaveta, um folheto com várias fotografias, que ela entregou nas mãos do alfaiate. Após algumas observações, Áquila e Nayeli chegaram a um consenso.

Eles alugaram uma balsa, com vários outros clientes. A sacerdotisa comprou um sanduiche para a viagem, mas uma gaivota o agarrou em pleno ar e grasnou, com agressividade, quando Áquila tentou afugentá-la.

— Você parece enjoado, Kalik. — comentou o alfaiate.

— Já passei tempo demais no mar. — ele se debruçou sobre os joelhos, como se estivesse prestes a vomitar.

— Chegamos! — disse o guia, de aparência cansada, forçando entusiasmo.

Os turistas foram direcionados até um vilarejo, onde um grupo de indivíduos exibia seus produtos para quem quisesse ver. Áquila ficou maravilhado quando se deparou com uma senhora, flutuando uma bolha de tinta sobre um vestido que acabara de ser costurado.

— Não é incrível como nossas habilidades definem o nosso lugar no mundo? — indagou Nayeli — Eu poderia ter sido apenas mais uma criança perdida e confusa, se minha mãe não tivesse aberto meus olhos para tudo que precisava saber!

— Isso é... ótimo. — Kalik desviou o olhar — Também foi assim com você, Áquila?

— Para ser sincero, eu queria trabalhar na cozinha como o meu primo. — A esposa revirou os olhos — Mas meus pais insistiram que era melhor que eu me dedicasse em algo que tinha certeza que poderia me destacar. Eu não entendia na época e por isso nós brigávamos o tempo todo. Agora que estou mais velho...percebo que eles tinham razão.

— Contemplem a nossa atração principal... — bradou o guia, com os cachos se agitando acima dos ombros, em sincronia com o vento — O vulcão mais ativo do continente!

A montanha não cuspiu nenhuma coluna de fogo, mas isso não fez com que parecesse menos impressionante aos olhos dos visitantes. Eles gastaram horas percorrendo e analisando os arredores da montanha.

— Que tal uma recordação para a família?  — Ofereceu uma fotógrafa, que estava escondida atrás das cortinas do instrumento.

Eles posaram, lado a lado, de costas para o monumento. Áquila estava sorrindo de orelha a orelha, com Nayeli inexpressiva a sua direita e Kalik constrangido, a esquerda. 

No outro dia, eles foram fotografados próximos as ruínas da grande civilização que vivera naquela região, muitos anos antes.

Os rapazes não viam aquele amontoado de rochas velhas como algo valoroso, mas a sacerdotisa mostrou-se extasiada quando se depararam com um conjunto de figuras riscadas glorificando o céu, uma evidência de que sempre houve pequenos grupos de fiéis, resistindo ao extremismo racionalista vigente.

— Sabem de uma coisa? Acho que eu estava mesmo precisando de férias! — disse Áquila, com o rosto corado e um semblante sereno — Vou ter que vender muitas peças de roupa para isso, mas posso me acostumar com esse estilo de vida!

— Está sendo melhor do que eu imaginei, realmente. — Complementou Nayeli — Mas não podemos nos esquecer de nosso objetivo. Você disse que estava sentindo a presença do Deus-Sol longe daqui. Certo, Kalik?

O pescador assentiu.

— Eu...sinto que ele está se movendo. Ainda está distante, mas não tanto quanto estava quando eu cheguei a Tinensia.

A sacerdotisa uniu as palmas.

— Ótimo! É um sinal de que ele também deve estar buscando por você!

O alfaiate dormiu como um bebê naquela noite, todavia, Nayeli, que tinha o sono leve, não conseguiu pregar os olhos, passou a madrugada inteira aturdida com o ruído de cães uivando nas proximidades.

— Os funcionários do guincho ligaram, seu carro foi consertado! — anunciou Kalik, que estava dividindo o quarto com o casal.

 — Você ouviu isso, Nayeli?

A esposa não respondeu. Ainda estava enrolada nas cobertas, encarando o teto, com olheiras escuras abaixo dos olhos.

— Vou começar a juntar nossas coisas. Vocês dois podem ir para o restaurante e pedir algo para nós três. — O homem se levantou e abriu as cortinas, permitindo que a luz do dia entrasse.

Nayeli obedeceu ao pedido, mas assim que ficou cara a cara com Kalik, com apenas uma pequena mesa redonda os separando, não conseguiu sustentar o silêncio.

— Se algo estiver te incomodando, você pode nos dizer. — Ela engarfou uma panqueca.

— Claro. Vou dizer. Pode deixar. — respondeu o rapaz, bebendo um gole de suco.

— Estou dizendo isso porque quando eu estou com algum problema, eu acabo ficando estressada e nervosa, Áquila diz que fico impossível de lidar! — sorriu — E quando se é um deus, imagino que as consequências possam ser ainda maiores...

 O pescador engoliu a comida, concentrado.

— Falando nisso, você já desenvolveu alguma habilidade especial? Eu sou muito perceptiva. Sou boa em decifrar emoções, pensamentos, presenças, esse tipo de coisa.

— Está...usando seu dom em mim? — ele rangeu os dentes.

— Você passou por coisas terríveis com seus perseguidores, pensou que poderia superar tudo o que aconteceu, mas seus sentimentos são tão intensos que tem afetado os animais a nossa volta, mesmo contra a sua vontade. E essa não foi a primeira vez, quando seus amigos te deixaram...

— Eu não quero falar sobre isso!

— Kalik, é meu dever garantir que você esteja bem, para cumprir seu destino...

O pescador bateu as mãos na mesa.

— Acha que não percebi o que você está fazendo? Está me usando para encontrar o Deus-Sol! — Nayeli saltou no assento, recebendo dezenas de olhares assombrados dos outros clientes — Eu pensei que precisava de sua ajuda, mas... acho que posso muito bem me virar sozinho!

Ele atravessou a saída, pisando duro e ignorando os apelos desesperados da mulher.

Áquila chegou logo depois, e encontrou a companheira de pé, virada para a porta.

— O que aconteceu? Onde está o Kalik?

Nayeli enrubesceu.

— Ele...foi embora.


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