Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 4
DOIS - Kanna




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Yandina sempre prezou pela praticidade, por esse motivo, não era boa com conversas casuais, onde as outras pessoas poderiam gastar horas confabulando sobre o clima ou os problemas recorrentes de seu cotidiano.

Kanna, em contrapartida, sentia-se intimidado pela quietude, então sempre que a irmã se fechava para seus assuntos, ele ocupava a mente, batendo as mãos nos joelhos ou cantarolando uma música tradicional das Ilhas de Sunan.

 — Pode parar de fazer isso, por favor? — perguntou a mulher, enquanto conduzia a lancha — Estou tentando manter o foco.

— Essa foi a melhor desculpa que conseguiu encontrar? Nós dois sabemos que você nunca precisou de muito esforço, para se tornar uma boa pilota! — ele argumentou, afundando as costas no banco do passageiro.

— Meu dom tem limitações, Kanna. Eu consigo replicar os movimentos que vejo, mas conduzir exige outras habilidades.

— Quer dizer que podemos ficar encalhados no meio do oceano? — o rapaz endireitou a postura — Talvez ir embora de casa não tenha sido uma boa ideia!

Yandina não brigou dessa vez, preferiu continuar atenta ao horizonte, onde o azul do céu começava a se fundir permanentemente com o azul da água.  

Até que algo diferente cruzou seu olhar.

Com alguma dificuldade, ela identificou um rebocador preto e vermelho, se aproximando em uma velocidade impressionante, com duas lanchas em seu encalço.

— Está vendo isso? Tem um grupo de mulheres, com roupas muito parecidas, vindo na nossa direção. — A agricultora mencionou, com os olhos semicerrados — Talvez sejam da guarda costeira. Nós podemos pedir orientação!

Kanna se levantou. Como um leitor ávido, ele havia desenvolvido um conhecimento considerável sobre diversos assuntos. Após vasculhar suas memórias, ele encontrou uma imagem, uma fotografia recente dos patrulheiros responsáveis pelo mar.

— Não são guardas. — seu timbre vacilou — São piratas!

Yandina tentou dar meia volta, mas as criminosas estavam próximas demais. Uma figura esguia, trajando um roupão marrom com um capuz e uma bandana que cobriam grande parte do rosto, saltou da proa da embarcação inimiga, deu um giro no ar e caiu de pé em seu veículo, com um par de machetes afiados em mãos.

— Rendam-se agora ou sintam o terror de minha armada! — ameaçou a lutadora, cujos olhos negros e impiedosos se destacavam na pele amarelada.

Kanna não teve tempo de raciocinar, apenas agarrou um tonel contendo um monte de biscoitos duros e reunindo toda a pouca força que possuía, o arremessou contra a adversária. Ela se esquivou, saltando sobre a amurada e o objeto rolou para fora do barco.

No mesmo minuto, três novas guerreiras invadiram o convés, tão ágeis e ferozes quanto sua precursora.  A primogênita se afastou da condução e atingiu uma delas com um soco no estomago, forçando-a a recuar. Outra tentou agarrá-la por trás, mas foi lançada ao mar, pela gola de sua vestimenta.

A terceira adversária empunhou sua lâmina. A agricultora conseguiu evitar dois de seus golpes, mas foi pega de surpresa, quando o metal atravessou o tecido de sua calça, abrindo um corte profundo.

— Vão embora! — Kanna gritou, com o corpo irradiando feixes luminosos, mas suas palavras não surtiram efeito algum.

Mais piratas surgiram.

Yandina foi cercada e ferida por chutes e pancadas até perder a consciência.

O rapaz tentou defendê-la, montando nas costas de uma das oponentes para afastá-la da irmã, mas foi lançado para trás como um saco de batatas.

Kanna bateu a cabeça no chão e desmaiou.

Quando abriu os olhos novamente, estava em um contêiner, que ele logo reconheceu como sendo o compartimento inferior do rebocador de seus captores. O garoto tentou se erguer da cadeira onde estava sentado, mas sentiu cordas rodeando seu corpo, prendendo-o ao assento e ao corpo de uma outra pessoa.

Yandina gemeu em seu lugar. Sobre a iluminação fraca proveniente das janelas redondas do cubículo, Kanna identificou vários hematomas na pele exposta. O ferimento em sua coxa havia sido estancado e coberto com gaze, mas seu aspecto era pálido e debilitado.

— Não!

O tabelião se concentrou e energia cintilante envolveu os dois, remendando a pele rasgada, suavizando as lesões e eliminando a dor até que não restasse qualquer sinal do que havia acontecido alguns minutos antes.

— Se Veve tivesse visto o que aconteceu... — Yandina balbuciou — Teria aproveitado a oportunidade para me lembrar de como fui burra em abandonar suas aulas de autodefesa.

— Você sabe por que ela agia assim. — disse Kanna — Mamãe queria nos deixar preparados para tudo, no caso de termos que lidar com outra tragédia.

— Isso não torna as coisas menos ruins! — Rebateu — Eu queria aprender a cuidar da terra, fiquei muito feliz quando descobri que poderia pilotar, mas Veve transformava tudo em uma busca pela perfeição. Quando ela decidiu que eu deveria dominar seu estilo de luta...

— Do que você está reclamando, exatamente? — Kanna grunhiu — Você se tornou boa em todas essas coisas! 

— Mas eu passei a detestar todas elas!

O rapaz apertou os lábios, com as veias saltando na testa.

— Durante anos, eu acreditei que não possuía nenhum talento especial. Comparado a todas as suas habilidades, nossa mãe começou a pensar que eu deveria ter algum problema e por isso passávamos tanto tempo na biblioteca.

— Isso...é bobagem.

— Ninguém contava que eu poderia me destacar como um grande guerreiro ou agricultor, então eu foquei nos livros e em me tornar mais inteligente! — Yandina quase sentiu empatia por suas palavras — Agora que sou eu o mais poderoso, tenho que aturar você se vitimizando!

A mulher jogou o peso do corpo para trás, o que derrubou o irmão de cara no chão, com um sonoro baque. Duas piratas, que estavam guardando a porta, se aproximaram para desvendar a origem do estrondo.

— Olha só, a moça se recuperou rápido! — uma delas escarneceu, levantando as sobrancelhas — E o que vocês dois estão tramando? Não estavam planejando fugir, certo?

A outra sufocou uma risada e se aproximou do rosto de Yandina, provavelmente, porque assumiu que ela estava mais vulnerável psicologicamente.

— Digam-nos quem são seus familiares e nós podemos solicitar um resgate... Por um valor específico, é claro!

Os olhos de Yandina se encheram de lágrimas, mas ela manteve o sigilo

— Pois bem! — a criminosa fitou Kanna, com alguma desconfiança, e proferiu, antes de se retirarem: — Ficarão sem comida e água até decidirem colaborar!

Após alguns minutos, Kanna forçou os dois para outra posição, onde ambos podiam sentir o piso de madeira abaixo de seus ombros. Sua situação, contudo, não pareceu melhorar. Eles não tocaram mais em assuntos familiares, principalmente porque ambos estavam estressados demais e depois cansados demais para fazer isso.

O único som que ainda conseguiam ouvir era a voz da capitã balbuciando ordens no pavimento acima deles, onde ficara responsável por controlar a rota do navio.

— Você também notou isso? — Kanna indagou, murmurando.

— Isso o quê?

— A comandante soa exatamente como as guardas que estão protegendo nossa saída, e as roupas delas não são apenas parecidas, são idênticas!

— Aonde você quer chegar com isso?

— Nós não a vimos utilizando nenhuma habilidade especial. Eu estou começando a achar que essa pode ser uma tripulação formada por uma só pessoa, o restante são clones, que detêm a mesma personalidade e os mesmos talentos de sua criadora.

— Se for o caso, nós só precisaríamos derrubá-la para vencer seu exército. — Yandina fechou os olhos, pensativa. — Mas ela com certeza não está na ponte de comando. Seria óbvio demais!

Kanna assentiu, tentando se virar de frente para a agricultora. Embora não tivesse obtido êxito no que almejara, ele sentiu algo pontiagudo espetando sua cintura, era uma lasca da cadeira que havia se desprendido quando eles caíram. Ele só precisava forçá-la um pouco com uma das mãos livres para que pudesse ser utilizada como uma estaca.

— Eu tenho uma ideia!

Mais tarde, as sentinelas retornaram para supervisioná-los.

No instante em que empurraram a porta, Kanna, que estava de pé e completamente liberto, lançou sua luz sobre todo o veículo, ofuscando qualquer criatura viva que tivesse ousado cruzar seu caminho, até que restasse apenas uma, na extremidade oposta da embarcação, com as mãos cobrindo as pálpebras.

A primogênita passou por ele, e com igual perícia a de sua sequestradora, atravessou correndo sobre a borda do barco. Ela tomou impulso e nocauteou a pirata com um único chute nas costelas.

— Detesto pensar que ela, provavelmente, ficará impune. Mas deveríamos ir embora, antes que acorde. — disse Yandina, e em seguida, começou a amarrar os pés e as mãos da criminosa incapacitada.

— Podemos acionar as autoridades em outro momento, mas já fizemos tudo o que podíamos. — Ele ficou de joelhos e tomou para a irmã, uma dupla de machetes, que ela segurou, como se estivem cobertos de veneno — Nós tivemos sorte dessa vez, vamos torcer para que não haja uma próxima.

A contragosto, a mulher reuniu seus pertences, que haviam sido saqueados e guardados em uma dispensa abaixo do convés, e os dois retornaram para seu veículo.

— Você ainda quer voltar para casa? — questionou a agricultora.

— Não... — Kanna ponderou, desfrutando do formigamento que o poder causava em suas mãos — Não quero!


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