Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 20
Catorze




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Kalik conhecia o medo. Por esse motivo, não pôde deixar de se sentir intimidado, quando notou o terror estampado no olhar do gerente do hotel, assim que se encontraram.

— Sinto muito... — o homem começou, com os cabelos ralos grudados de suor — Não é como se eu não acreditasse em suas palavras. Mas os outros clientes... estão se sentindo intimidados pela mensagem do Deus Sol. Por essa razão, decidimos finalizar a nossa parceria, por enquanto. Tenho certeza de que você e seus amigos logo encontrarão um novo lar.

— Kalik... — Niara apertou seu ombro, impedindo que agisse por impulso, mais uma vez — É melhor irmos embora.

Mais tarde, enquanto desembolsava uma quantia considerável, para pagar sua estadia em uma nova e humilde residência, ouviu uma garotinha gritar, quando passou por ele. A mãe pediu desculpas pela filha, com os olhos marejados.

— Você não pode ficar deitado o dia todo! — Rizvan o advertira, de pé, ao lado da cama — Precisa se levantar e contar a sua versão da história! Kanna precisa da sua ajuda!

O pescador cobriu o rosto com o edredom.

— Está na hora de agirmos! — a agricultora determinou.

A situação de Kalik não progrediu com o passar dos dias. Todas as manhãs, alguém o acordava para suas refeições rotineiras, contudo, o rapaz não se permitia a muito mais do que isso. Vez ou outra, ele podia ouvir Simbo balbuciando palavras de conforto, antes de retornar para suas atividades cotidianas.

— Kalik, já se passaram semanas. — o conselheiro espiritual tentou disfarçar, mas era perceptível o quanto estava abalado — Levante-se! Nós estamos com você.

Dessa vez, não houve sequer um murmúrio em resposta.

Simbo seguiu para o lado de fora da residência e depois, até uma praça, onde uma multidão havia se formado. Dentre todos os presentes, alguns ele reconhecia, por terem participado da festa, em homenagem ao primeiro encontro dos deuses.

O conselheiro espiritual passou por Raoni, Melina e depois contornou um grupo de hippies, composto por Landon, Jada e Kayla, antes de alcançar Yandina, que estava posicionada no centro do pandemônio.

— Todas essas pessoas vieram por nossa causa? — perguntou Simbo, embasbacado.

— Não se deixe impressionar. — disse a agricultora, desviando o olhar — Kanna também conseguiu muitos aliados. Teremos que nos esforçar, ao máximo, se quisermos salvá-lo.

Uma mulher de pele escura e músculos salientes alisou as costas de Yandina.

— Vamos conseguir! — Veve assegurou, com altivez — Vocês já têm um plano?

Rizvan se aproximou, segurando uma prancheta em uma das mãos.

— Ainda estamos juntando todas as informações que temos. Sabemos que Adélia vai continuar manipulando Kanna, enquanto puder tocá-lo. Então precisamos pensar em uma forma de mantê-los afastados.

— E se confrontássemos Adélia e Aima, diretamente? — sugeriu a agricultora — Quero dizer, poderíamos propor um acerto de contas, assistido pela população. Dessa forma, elas não poderiam se esquivar, alegando que estão se sentindo ameaçadas.

— As coisas poderiam sair, facilmente, do controle. Uma discussão acalorada poderia se transformar em um embate e pessoas inocentes sairiam feridas. Contudo... — Veve franziu os lábios — .... essa parece ser a nossa melhor chance. É uma boa ideia, Yandina.

As pupilas da agricultora brilharam.

Antes que alguém notasse, ela se virou, em silencio, para o grupo de pessoas, que a ouviam.

— Onde está Kalik? Pensei que fossemos vê-lo! — interrogou um homem de cabelos negros, cortados na altura do queixo e pele cor de creme.

— Ótima pergunta, senhor... — Simbo apontou o dedo na sua direção — Como se chama?

— Silla. — ele respondeu, nervoso.

— Ele ainda está se recuperando de tudo o que aconteceu. Enquanto isso, nós precisaremos do máximo possível de testemunhas para confirmar a nossa história. Com quais de vocês, poderemos contar?

Uma fileira de mãos erguidas se projetou no ar.

Niara tentava reclamar a atenção para si, quando Melina tocou sua cintura.

— Não estou me sentindo muito bem. Podemos dar uma volta?

— O quê? É claro! Para onde você quer ir?

— Qualquer lugar!

Ela ofereceu o braço e Niara aceitou, sorrindo.

Em menos de dez minutos, encontraram um banco de madeira, onde poderiam apreciar tudo o que estava acontecendo nos arredores, sem serem incomodadas pelo barulho.

— Parece que está quase sempre frio, em Elendor.  — resmungou Niara, afundando as mãos nos bolsos do sobretudo — É isso que está te perturbando? Você não está vestindo um casaco...

— Não é isso. Eu... — ela abaixou o tom de voz, como se confidenciasse um segredo — Estou com medo.

— Garota, por favor! — Niara chegou mais perto — Eu protejo você!

— Você me protege? — arqueou as sobrancelhas — Essa é boa! Só porque você viajou o mundo com o Sol e a Lua, não quer dizer que é a única que sabe se defender.

— E eu não sei? Você já esteve na cadeia, eu nunca vou conseguir superar isso.

Embora tivesse dito como uma brincadeira, Melina ficou séria.

— Fui presa por roubo, não por agressão.

A garota esfregou a nuca, constrangida.

— Desculpe. Piada insensível.

— Tem razão. Você não tem o direito de julgar as outras pessoas, assim...

Niara engoliu em seco

— Mas eu agradeço, por pedir desculpas. As outras pessoas não costumam fazer isso. Mostra que você se importa!

— É claro que me importo! Você me conhece. Trocamos cartas durante meses! Eu contei coisas a você, que nunca contaria a ninguém.

— Só está dizendo isso, para que eu me sinta importante.

— Você sabe que não.

Niara passou os dedos pelos cabelos curtos de Melina.

Um floco de neve despencou do céu e flutuou ao seu redor, interrompendo o momento.

— Está nevando! — Niara observou, maravilhada.

— Pensei que você não gostasse de frio.

— Não gosto. Mas é a primeira vez que eu vejo algo assim.

Melina gargalhou.

Um manto branco e espesso cobriu o chão e Niara se deitou sobre ele, movendo os braços e pernas para criar uma imagem, como uma criatura alada.

— Você está parecendo uma criança. —  disse a atendente, mas não havia maldade em suas palavras. 

— Já faz um bom tempo que não nos encontramos, pessoalmente. Não acha que deveríamos aproveitar?

— Os seus amigos já devem ter voltado para casa.

— Vai dar tudo certo!  — Niara murmurou, com os olhos fechados — Tem que dar.

Melina deu de ombros e afundou, ao seu lado.

Quando a tarde chegou ao fim, Niara estava moldando uma bola de neve para arremessar contra Melina, que tinha os braços em frente ao rosto, em um gesto de proteção. A garota de cabelos cacheados atingiu o rosto da amiga, que se desfez em risadas.

— Pare com isso! — ela protestou, limpando o nariz. Sua expressão mudou, de um segundo para o outro — Eu falei sério, quando disse que estava com medo! Todos vocês parecem dispostos a lutar, até o último minuto, pelo que os seus amigos acreditam. Mas eu não sou assim! Não quero tomar partido em nenhuma disputa.

Nesse instante, Niara parou o que estava fazendo, para dar atenção as suas palavras.

— Porque se eu estiver errada... — a atendente prosseguiu — Eu sei que as coisas ficarão ainda piores para mim.

— Melina... — Niara tocou o peito, comovida — Você não deveria ignorar os seus desejos, apenas porque tem medo de cometer um erro. Mas se isso for mesmo algo tão importante para você... Não precisa enfrentar ninguém! Eu não ficaria feliz, se soubesse que está indo contra si mesma, apenas para cumprir as minhas expectativas.

Melina soltou a respiração, como se tivesse se libertado de um grande fardo.

As duas se abraçaram.

Em seu quarto, Yandina tentava reorganizar os pensamentos. Ela fechou a porta atrás de si, e permitiu que seus olhos percorressem o cômodo de paredes cor de ocre, até encontrar um objeto, entre tantos outros, que Kanna havia deixado para trás.

Era a faixa que ele havia utilizado, quando decidiram sair, para fazer uma trilha.

A agricultora apertou o tecido contra o peito e murmurou para si mesma.

— Nunca pensei que sentiria tanto a sua falta.

— É claro que sentiria. — Veve adentrou o recinto, sem pedir licença — Kanna é seu irmão. E mais do que isso, ele é o deus-Sol. Não há ninguém mais importante para o mundo, do que ele.

Yandina fechou a cara.

— É claro que você iria dizer isso. Sempre fomos objetos para você, não é? — a jovem mulher percebeu que estava se deixando levar pela emoção, e tentou se conter — Quer saber? Isso não importa. Estou surpresa que veio me ver, depois de tanto tempo.

— Pode não parecer, Yandina, mas eu me importo, de verdade, com vocês. Se você não passasse tanto tempo trancada no quarto, sozinha, talvez percebesse.

Yandina não retrucou, o que serviu como incentivo, para que Veve continuasse.

— Vamos lá, seja valente, diga o que está pensando! Não há necessidade de ficar se contendo, sou sua mãe!

— Às vezes, eu queria que não fosse.

Veve piscou, magoada.

— Desculpe! Não foi isso o que eu quis dizer.

— Foi, sim. Deveria saber que tudo o que eu fiz, foi para tornar vocês mais fortes! Você e seu irmão são como uma parte de mim, Yandina.

— Eu não sou como você. Não sou uma guerreira!

— Não... — Veve deu um passo à frente, ficando há centímetros, da filha — Você tem muito mais força de vontade. Poderia se tornar uma líder ainda melhor do que eu jamais fui. Eu só queria que se desse conta, de seu verdadeiro potencial.

— Não vai me manipular, como fez com Kanna. Sabe o quanto ele se importava com a sua opinião. Você era a pessoa favorita dele, deveria tê-lo apoiado quando ele precisou!

— Eu não posso fazer isso. Não posso fingir que concordo com todas as suas decisões. Mas eu quero que saiba que sempre a admirei muito, por estar disposta a criar o seu próprio caminho, mesmo contra a minha vontade. — A chefe alisou a bochecha de Yandina, demonstrando dominância, mas também, gentileza — Você é a minha pessoa favorita. Sabe disso, não sabe?

A agricultora ficou de costas para a mãe.

— Adélia e Aima são a minha maior preocupação agora. Elas têm que pagar pelo que fizeram! Depois, podemos conversar sobre isso.

— Que assim seja.

Antes de se retirar, Veve beijou a testa da filha.

Surpreendida pelo gesto, Yandina soltou a faixa que estava segurando e uma brisa suave a levou para longe.


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