Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 19
Treze




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Sangue pulsava nos ouvidos de Kanna, em oscilações ritmadas, enquanto os amigos se entretinham, arrumando as malas para a sua próxima viagem.

— Vocês ainda não estão prontos? — Niara bocejou, sentada em seus pertences, devidamente, acomodados.

Yandina se voltou para a amiga, com a testa franzida.

— Você tem poucas roupas, por isso terminou mais rápido.

Ela deu de ombros. Quando rolou os olhos, percebeu que o tabelião a estava observando. Simbo também notou e tentou camuflar o nervosismo.

— Kanna... — Nayeli chamou, preocupada — ...está tudo bem?

— Ei... — Kalik esfregou a testa suada — Você pode pegar uma água, para mim? Está começando a esquentar, aqui.

O ar em torno do tabelião crepitou.

— É claro! Você quem manda!

Ele chegou ao refeitório e pediu um copo de água.

Bebeu todo o seu conteúdo e sem dar qualquer explicação, partiu para longe da albergaria, deixando uma marca escura e fumegante, onde seus pés tocaram o chão pela última vez.

A voz de Rizvan, gritando seu nome, muitos metros abaixo, o alcançou como um sussurro ininteligível.

“Eu deveria ter ouvido os outros!” pensou “Kalik não é confiável. Nenhum deles é!”.

Kanna cortou uma nuvem, que foi, imediatamente, destroçada por uma explosão de luz. Ele mergulhou em direção ao chão. em alta velocidade, mas parou, subitamente, quando estava sobrevoando um parque, com muitas árvores e nenhum ser humano para contemplá-las.

— Não vou fugir! Ele precisa saber o que eu penso sobre tudo isso! — declarou para si mesmo, virando-se de costas.

Ao mesmo tempo, uma van estacionou próxima a um banco, não muito distante.

As portas do veículo se abriram e um homem, que Kanna imaginou se tratar de um morador de rua, caminhou para o lado de fora. Em questão de segundos, todos os pelos de seu corpo se multiplicaram, cobrindo as roupas e a pele exposta, deixando a mostra, apenas os olhos amendoados e o nariz redondo.

Kanna tentou recuar, mas Darrion esticou o braço e seus cabelos agarraram o calcanhar do rapaz, puxando-o para baixo em um movimento brusco, que arremessou seu corpo contra o piso de paralelepípedos.

— Não se aproximem! — o tabelião gritou, mas seus lábios e todo o restante do corpo, foram enclausurados em madeixas escuras e oleosas.

Um homem branco e gordo, com um paletó elegante e chapéu fedora se aproximou, acompanhado de perto por pequeno exército, composto por homens e mulheres mal-encarados.

— Parece que não vai precisar da ajuda dos meus. — ele comentou, desgostoso — Para um deus, esse garoto foi muito fácil de conter. Basta mantê-lo assim, até que perca a consciência...

Kanna brilhou e feixes luminosos reduziram a cinzas, os cabelos que o cercavam.

Os inimigos foram lançados para longe, com queimaduras graves.

Assim que ficou de pé, o tabelião avistou um rosto com cabelo louro correr do interior da van para o monte de vegetação a esquerda.

— Não vai ter por onde fugir! — Kanna esticou a palma e o veículo de metal foi pulverizado.

Ele gastou alguns minutos buscando pela mulher fugida, com os olhos. Ouviu um farfalhar de folhas próximas e se armou, materializando um globo incandescente.

Quando se virou, Adélia estava tocando seu peito, na área do coração.

— Agora sou eu quem dou as ordens, querido.

O badalar dos sinos de uma Igreja distante marcou o início da tarde.

Kalik, Yandina e os outros se reuniram no saguão do prédio, tentando reunir pistas sobre o desaparecimento de Kanna.

— Mas porque ele fugiu? — Rizvan massageou as têmporas — Isso não faz sentido!

— Nayeli, o que foi? — Áquila indagou — Você ficou tão quieta...

— Kanna fugiu porque estavam mentindo para ele. — ela afirmou, enfim. Desviando sua atenção para Kalik e Yandina — Quando vocês disseram que saíram para comprar livros para mim, eu notei que não estavam contando a verdade. Então eu contei a ele, o que estava pensando.

O pescador arregalou os olhos.

— Você fez o quê? Como sabia que estávamos mentindo?

— Por que vocês dois fizeram isso? — Rizvan gritou, irritado.

— Fomos atrás de uma velha inimiga, para tentar descobrir algo sobre o plano de Aima. — Yandina respondeu, contida — Mas a coisa saiu um pouco do controle. Ficamos sabendo coisas sobre o nosso passado, que não deveriam ter sido reviradas.

— Não tenho mais certeza se essa foi a decisão correta. — Simbo admitiu, massageando a testa.

— Você não tinha o direito de fazer isso. — Áquila resmungou para a esposa, com uma expressão decepcionada.

— E você não tem o direito de me dizer o que fazer!

Uma aura de luz dourada envolveu o corpo da sacerdotisa.

Ela bateu o pé no chão, criando uma rachadura no piso. Os lustres, que pendiam no teto, sacudiram, para desespero dos demais hóspedes presentes.

—Você está mesmo mudada. — Niara assoviou, impressionada.

— Mas sem o seu antigo dom, será, praticamente, impossível encontrar Kanna. — Rizvan fitou cada um de seus amigos, que pareciam ter chegado a mesma conclusão.

Yandina levantou o queixo.

— Aima ainda está lá fora, apenas esperando por um deslize como esse. Ao invés de ficarmos culpando uns aos outros, deveríamos nos unir para encontrar o meu irmão, antes que algo pior aconteça!

— Estivemos em uma estação de rádio, há alguns dias. Podemos mandar uma mensagem para a população. Talvez Kanna tenha sido visto em algum lugar. — Kalik propôs.

Os outros, assentiram.

Quando chegaram ao local indicado, a secretária, que já era conhecida, correu para perto do pescador, com um sorriso largo e os olhos arregalados de ansiedade.

— Você voltou!

— Preciso de mais um favor. — pediu o rapaz, sem fazer rodeios — Nosso amigo, o deus Sol, desapareceu. Acreditamos que você possa ajudar.

— O quê? — ela gargalhou — Não se preocupe! Kanna está aqui! Suas amigas pediram um tempo, para que ele pudesse fazer um comunicado aos nossos ouvintes.

— Suas...amigas?

Eles correram até o andar superior do prédio e encontraram o tabelião, no interior de um estúdio, com um microfone posicionado diante dos lábios. Aima e Adélia, que estavam de pé, em frente ao painel de mixagem, se viraram para a porta.

— Chegaram tarde. — disse Adélia — Não vão conseguir impedi-lo de contar a verdade.

— Kalik, você está doente! Nós duas nunca tivemos a intenção de te fazer mal. — Aima começou a chorar, aquele parecia um gesto natural para ela — Eu deveria ter desconfiado que havia algo errado quando meu melhor amigo desapareceu. Agora, sabemos o que fez com ele!

— Kanna nos disse o quanto você andava agressivo e paranoico, mas não imaginávamos que chegaria a tanto. Como se atreve? Estava tentando nos incriminar! Pode ter enganado seus amigos, mas logo, todos saberão do que você é capaz!

Kalik não conseguiu se conter.

Avançou contra a xamã, com sangue nos olhos.

Ela forçou um gemido, quando suas costas se chocaram contra a parede.

Os funcionários que estavam responsáveis por ouvir o pronunciamento de Kanna, tentaram afastar o rapaz, desferindo socos e chutes em suas costas. No entanto, foi Adélia quem conseguiu pará-lo. Tocou o seu ombro, sorrateiramente, e Kalik desabou no chão.

Nayeli e Yandina apartaram a briga, derrubando os agressores, através da força ou do próprio peso de seus corpos. Contudo, o estrago já havia sido feito. O pescador tinha várias marcas roxas espalhadas pela pele e se contorcia no chão, onde havia caído.

Rizvan sacudiu os braços, para chamar a atenção de Kanna, mas ele apenas ficou de pé, e o encarou de longe, impassível.

— Levante-se, Kalik! —  Niara pediu, colocando um dos braços, em torno dos ombros do garoto — É melhor irmos embora.

— Eu...não me lembro como fazer isso.

A sacerdotisa o carregou no colo e saíram, sem olhar para trás.

— Foi aquela mulher miserável! Tenho certeza de que está manipulando Kanna. Só pode ser isso! — Áquila concluiu.

— Eu sei. — Yandina enxugou uma lágrima — Vamos voltar para casa e pensar em uma estratégia!

De volta a sua residência, Nayeli deitou Kalik, em sua cama.

Simbo, Yandina, Rizvan e Niara se aglomeraram ao seu redor.

— Não consigo identificar nenhum ferimento incapacitante. É apenas psicológico. Observe como nós fazemos e logo voltará a andar. — aconselhou o estudante.

— Eu não posso acreditar que isso está mesmo acontecendo. — ele piscou, com os olhos vidrados, encarando o teto — É tudo culpa minha.


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