Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 17
Onze




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Na delegacia, Nayeli assistia ao marido, discutindo com o escrivão responsável por documentar a sua denúncia, como se estivessem muito distantes. Kanna estava sentado ao seu lado, segurando sua mão e murmurando palavras de conforto.

— Essa criminosa está nos perseguindo há meses! — Áquila bateu as mãos na mesa, exaltado — Ela atacou a minha esposa! O que mais precisa acontecer para que vocês tomem uma atitude?

— Senhor... — o atendente elevou o tom — Estou vendo que já foram iniciadas investigações sobre o caso, mas as autoridades estão tendo dificuldades para localizar a mulher a quem se refere. Além do mais, sua esposa disse não ter lembranças sobre o local ou as circunstâncias do ocorrido, portanto, não há evidências conclusivas do fato.

— Como não? As habilidades de Nayeli desapareceram!

— De acordo com o que ela disse, sim. Mas não existem, ainda, ferramentas capazes de assegurar que seu dom foi, realmente, suprimido. Especialmente, se tratando de uma capacidade tão...subjetiva, como a percepção.

Kanna agarrou o braço de Áquila, impedindo que ele avançasse contra o funcionário.

O trajeto de volta para casa foi silencioso e hostil. Nayeli teria notado a maneira como os nós dos dedos do companheiro, perdiam a cor, enquanto ele apertava o volante do jipe, ou os olhares amargos que lançava para Kanna, vez ou outra, se não estivesse ocupada, contemplando a rodovia.

Em casa, ela não fez muito, além de caminhar até o seu quarto e trancar a porta.

— Preciso ficar sozinha, ok?

Deitada na cama, a sacerdotisa conseguia ouvir Rizvan perguntando “O que aconteceu”, cheio de preocupação, e o marido gritando para Kanna “Isso é culpa sua! Se ela não tivesse decidido buscá-lo...”.

— Eu posso resolver isso! — Kanna exclamou, com as mãos na porta — Me deixe curá-la, por favor!

Kalik estava no chão, com as mãos na cabeça.

— Já chega! Isso já foi longe demais!

O pescador vestiu uma jaqueta e saiu.

A voz de Yandina atingiu seus tímpanos:

— Onde pensa que está indo? Não vai encontrar Aima!

— Eu sei! Mas eu posso encontrar outra pessoa. Adélia, os policiais que ameaçaram Landon... — seus lábios estavam trêmulos — Qualquer um! Aima disse que nossos inimigos estavam reunidos...

— Nós não sabemos quais inimigos, exatamente. Ela poderia estar blefando...

O rapaz esfregou os olhos.

— Eu... — Yandina engoliu em seco — ...entendo como você está se sentindo. Quando eu e meu irmão fomos atacados por piratas, tivemos que deixá-las, depois de terem nos sequestrado e me espancado. Eu nunca me senti tão impotente.

— Então vamos atrás da capitã! — Kalik bateu o punho em uma das palmas — Se ela souber de alguma coisa, podemos fazê-la falar! Eu não quero viver sentindo medo, não mais!

— Isso é loucura! Não vamos conseguir encontrá-la. Ela já deve ter saqueado várias regiões diferentes, poderia estar em qualquer lugar, agora. — algo parecia ter acendido em seu interior — Mas se a capitã é mesmo tão famosa, não deve ser tão difícil conseguir informações sobre a sua localização...

— O que me diz? Vamos fazer isso?

Kalik estendeu a mão para um cumprimento.

Após um instante de hesitação, Yandina aceitou o gesto.

Os dois retornaram para a hospedagem, para contar aos amigos o que haviam decidido.

— Parece uma péssima ideia. — disse Kanna — Em primeiro lugar, vocês não podem provar o envolvimento dela no que aconteceu. Em segundo, essa mulher é perigosa. Yandina, você viu do que ela é capaz.

— Sim. Eu vi. — a primogênita afundou as unhas nas palmas.

— Porque não usam o seu tempo livre para achar algo que Nayeli possa se interessar? Ela não quer me ver, de jeito nenhum! Talvez precise de um incentivo.

— Certo. — Kalik e a agricultora trocaram um olhar discreto — Nós vamos fazer isso.

— Ótimo!

Assim que Kanna deu as costas, Niara e Simbo se voltaram para a dupla, com as testas franzidas.

— Isso não me pareceu muito convincente. — a garota resmungou.

— Yandina, por favor, não faça nenhuma bobagem! O seu irmão pode parecer cabeça dura as vezes, mas ele confia em você... — Simbo moveu a cabeça na direção do pescador — .... em vocês dois, aliás.

— Isso é importante! Não se preocupem, eu vou garantir que não haja nenhum exagero. — o rapaz, oriundo de Thulen, sentiu-se, pessoalmente, afetado pelo que estava dizendo — Continuem agindo normalmente. Nós voltaremos, o mais rápido, possível!  

Ainda era cedo, quando Kalik e Yandina se dirigiram até a estação de rádio mais próxima, em busca de informações. Eles aguardaram do lado de fora, até que uma mulher baixinha, de cabelos encaracolados longos decidiu aparecer.

 — É a proprietária? — Kalik perguntou, exibindo um sorriso simpático.

— Sou a assistente dela. Como posso ajudar alguém tão importante quanto o senhor? — a mulher indagou, com as bochechas coradas.

Yandina empurrou o rapaz, com o ombro, insinuante.

— Vocês...possuem uma rede direta com os jornais da cidade, não é? — Kalik perguntou, recebendo uma confirmação nervosa, em resposta — Poderia verificar quais os últimos relatos sobre uma armada de mulheres piratas, vestindo robes e capuzes cobrindo o rosto?   

— Precisamos disso para uma missão confidencial. — a agricultora destacou a última palavra — Em troca, Kalik poderia te conceder uma entrevista exclusiva, assim que retornarmos.

A mulher ficou quieta, como se avaliando a proposta.

— Está bem. Me deem um minuto!

Passaram-se mais do que alguns minutos, mas a assistente retornou, com uma tira de papel nas mãos.

— A capitã se chama Zou Yan, e não é vista na região, há meses. — os ombros de Yandina desabaram — Sinto muito, pelo visto, hoje não é o seu dia de sorte.

— É claro... — a agricultora balbuciou, desanimada.

— Porém, eu consegui o endereço de um antigo conhecido da capitã, com quem falamos, há cerca de um ano. Ele mora há quase quatro horas daqui, se estiverem com tempo...

Kalik se aproximou de Yandina e cochichou, em seu ouvido.

— Essa pode ser a nossa melhor chance. Aima não tinha amigos e os de Adélia, provavelmente, ainda estão presos em Saritéia, do outro lado do oceano.

Ela respirou fundo e aceitou o que a assistente tinha a oferecer.

Kalik alugou o carro mais barato que conseguiu encontrar e partiu, com Yandina, para muito além do que seus olhos poderiam alcançar.

— Não vai falar comigo, até encontrarmos o homem? — o pescador interrogou, sentindo o silêncio pesar em seus ombros, como concreto.

— Desculpe. — Yandina umedeceu os lábios — Não é nada pessoal. Eu não tenho o hábito de externalizar o que estou pensando. Você também não disse muito...

— Sei que deve estar se sentindo culpada, por mentir para o seu irmão. Mas teve a chance de recusar a minha ideia, quando eu ofereci.

— Não estou me sentindo culpada. Entendo que mentir pode ser necessário, em alguns momentos. Mas... ele ficaria muito mal, se descobrisse. Quando meu pai se acidentou, Veve demorou muitos dias para nos contar o que havia acontecido. Eu já era mais velha e acabei descobrindo a verdade por conta própria, mas Kanna...ficou arrasado.

— O que houve com o seu pai, exatamente?

— Ele era muito bom em compreender o funcionamento das coisas, mas acabou se acomodando, confiando demais em seu dom. Um dia, nosso pai perdeu o controle do seu trator e acabou caindo em uma ribanceira. — ela afundou no banco do motorista — Nossa vida nunca mais foi a mesma.

— Ele deve ter sido uma pessoa incrível...

— Tem razão. — Yandina sorriu — Papai era muito mais apegado a Kanna, os dois passavam horas brincando. Eu não me importava muito, sinceramente, pois sabia que ele me amava, nós só éramos diferentes. Para me agradar, nosso pai sempre comprava presentes. Alguns deles, eu ainda guardo no meu quarto...

— Parece incrível. Eu tinha um amigo, Silla, ele era bem mais velho e me ajudou quando eu fugi do orfanato onde morava. Às vezes, dividíamos os peixes que conseguíamos pescar.

— Você disse que fugiu do orfanato? Eu pensei...que só tivesse saído, quando atingiu a maioridade.

Kalik deu de ombros, se recolhendo em si mesmo.

— Não é algo que me orgulho...

— Tudo bem. Imagino que tenha tido um bom motivo.

— O diretor do orfanato não se importava com as crianças que viviam lá, não de verdade...

— Sinto muito.

— Eu também.

Yandina estacionou o carro rente a calçada.

Acima de suas cabeças, o Sol se erguia, impiedoso.

Não muito distante, havia uma casa, com as paredes cobertas por azulejos e janelas de madeira polida.

Kalik foi o primeiro a sair do veículo.

— Chegamos. Está pronta para o que estamos prestes a encarar?

A agricultora respirou fundo, deu alguns passos até entrada da residência,

E tocou a campainha.

Quase imediatamente, um homem surgiu.

Ele tinha pouco mais de trinta anos, cabelos escuros penteados para trás, com gel, e olhos negros, que Yandina considerou, estranhamente, semelhantes aos de sua sequestradora.

— O quê...? — o olhar dele mudou de Kalik, para a agricultora, rapidamente — O que vocês estão fazendo aqui?

— Estávamos procurando Zou Yan. — Yandina esclareceu — Você era amigo dela?

O homem começou a bater os dentes.

— Sim, mas...faz tempo que não conversamos.

—  Qual o seu nome? — a agricultora indagou.

— Chen. Não sou criminoso...

—  É claro. — Kalik chegou mais perto. Frente a frente, o pescador fazia Chen parecer uma criança assustada — Você se importaria se entrássemos, para conversar?

Yandina franziu os lábios.

O homem negou com a cabeça, dando espaço para que passassem.

— Então, já ouviu falar de nós? —  Kalik questionou, quando se sentaram, ao redor de uma mesa redonda, na sala de estar.

— Não é nada demais. Todo o mundo já ouviu falar nos deuses e seus acompanhantes, não é mesmo?

— Está certo. — Yandina tomou a voz — Quando foi a última vez que você e Zou Yan se falaram?

— Já faz mais de um mês. Agora, ela está tentando andar na linha, mudou muito desde que o seu... — ele esfregou os dedos, nervoso —   .... último encontro.

— Como você e ela se conheceram?

— Nós saíamos juntos, antes dela entrar para o negócio da pirataria.

— Imagino que fossem próximos... — a agricultora concluiu.

Ele assentiu, com as mãos tremendo ao redor da xícara de chá.

— Nós dois éramos jovens, com os hormônios a flor da pele, queríamos passar todo o tempo que tínhamos, lado a lado. — Chen exalou — Mas não cheguei a apresentá-la para os meus pais. Na verdade, me relacionei com poucas mulheres desde então e nunca foi algo sério.

— Bem, toda ajuda é bem-vinda. — Yandina disse, perdendo as esperanças —   O que sabe sobre ela?

— Ela sempre foi muito ambiciosa e acredito que quisesse se tornar a capitã mais bem sucedida da história. Se envolveu com outro homem, depois de mim, que já não está mais entre nós, e seus aperitivos favoritos eram pãezinhos fritos com gergelim, entreguei alguns a ela, na semana passada...

Kalik estalou a língua.

— Você não disse que se falaram há cerca de um mês?

O homem se jogou no chão, de joelhos.

— Por favor, não a machuquem! Ela já perdeu a visão e está na prisão, pagando por tudo o que fez, não há necessidade de prosseguirem com essa perseguição!

— Ela perdeu a visão? Mas como? —  Yandina arregalou os olhos.

— Entendemos que foi um acidente. O Deus Sol não tinha a intenção...

Os lábios de Yandina se abriram em um perfeito “O”.

Ela se lembrou de Kanna, espalhando sua luz ofuscante por todo o navio para derrotar Zou Yan, e da inimiga, parada no convés, com as mãos nas pálpebras.

— Isso...não é possível.

— Não! Está tudo bem! Ela não prestou queixa. —  Chen uniu as palmas diante do rosto, suplicante — Não queremos mais problemas!

A agricultora massageou a testa. Suas escleras estavam vermelhas.

— Não pode ser...

Kalik permaneceu onde estava, atônito.

— Nós vamos embora agora, Chen. Não se preocupe, não o incomodaremos mais!

Eles voltaram para o carro que os havia guiado até ali, e bateram as portas.

— Kanna poderia curá-la... — Yandina disse, para si mesma.

— Mas ele não vai se perdoar se souber o que fez, se souber o que nós fizemos. — Kalik apertou os olhos — Não precisamos contar a ele o que descobrimos. É para o seu próprio bem!

De volta ao hotel, encontraram o tabelião, esperando-os, com uma expressão bem-humorada.

— Vocês não vão acreditar no que aconteceu... — ele parou quando notou que os amigos tinham vários livros nos braços — O que é isso?

— Saímos para comprar algo que pudesse animar Nayeli. Tivemos sorte de encontrar livros religiosos, em uma loja de conveniências, há algumas horas daqui.

— Não vamos mais precisar! Ela aceitou a minha ajuda. Estava hesitante, pois não queria que eu a visse tão vulnerável.

— É mesmo? E como ela está, agora? — Yandina quis saber, cortando a multidão formada por Simbo, Rizvan e Áquila.

A sacerdotisa se virou, apertando os punhos.

Ela parecia diferente, e não apenas no sentido físico da palavra.

Seus olhos estavam dourados e uma aura brilhante a envolvia, da cabeça aos pés.

— Eu nunca me senti tão viva!

Kanna encarou Kalik.

— Suas habilidades originais ainda não retornaram, mas eu acredito que seja apenas uma questão de tempo. Ela está, literalmente, brilhando, isso não é incrível? — ele uniu as palmas, orgulhoso de si mesmo — Como foi a sua viagem, com Yandina?

O pescador rangeu os dentes, desviando o olhar.

— Eu não quero falar sobre isso.

— Ok! Calma! Só espero que não tenham se estranhado muito. — Kanna mostrou a língua.

Nayeli contemplava a cena, como um espectador a parte.

Depois que todos os outros se dispersaram, ela caminhou até Kanna, que estava entretido, folheando um dos livros que Kalik e a irmã trouxeram, em suas acomodações.

— Eu não sei como te falar isso, você me salvou, hoje... — ela acariciou a face do rapaz.

O tabelião esboçou um sorriso, que logo desapareceu, quando Nayeli prosseguiu, dizendo:

 — Eu conheço Kalik há mais tempo que você. Ele está mentindo.

 


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