Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 15
Nove




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Nayeli manteve o olhar fixo em Áquila, enquanto o marido retornava à albergaria, que haviam escolhido para passar os seus próximos dias, com duas sacolas cheias em mãos.

— O que é isso? — ela interrogou, enquanto uma nova ruga ganhava forma em sua testa.

— São lembrancinhas! — ele respondeu — Visitamos diversos países nas últimas semanas! Entendo que Kalik e Kanna estejam muito ocupados, na maior parte do tempo, atendendo aos necessitados e participando de conferências entediantes, mas você e as crianças deveriam estar aproveitando o seu tempo livre, para se divertir!

— Nenhum deles têm menos do que vinte anos. Já não são mais crianças, há muito tempo!

— Eu me lembro de você, quando tinha vinte anos. Definitivamente, não era um exemplo de maturidade.

— Já você, Áquila, não mudou nada, desde que nos conhecemos. — um sorriso surgiu em seus lábios, mas logo, desapareceu — Quero dizer, quase nada. Nunca imaginei que você poderia se apegar tanto a esse papel de cuidador. Nós dois, costumávamos abominar esse estilo de vida conservador...

— Muito do que eu fazia, era apenas para te impressionar. Sabe disso, não sabe?

A sacerdotisa abriu a boca para retrucar, quando, de um segundo para o outro, notou que Áquila havia deixado todas as suas compras se esparramarem pelo chão.

Rizvan estava caminhando em sua direção, com um olho roxo e as mãos trêmulas.

— O que aconteceu, rapaz? Foi atacado? — Áquila o segurou no rosto, enquanto Niara e Yandina despontavam da faixa de segurança, há alguns metros de distância.

— Ele, realmente, foi atacado. Por Yandina. — explicou a garota, contendo uma risada.

— Pare com isso! Nós estávamos treinando em uma academia... — a agricultora choramingou — É por isso que eu odeio lutar! Alguém sempre sai ferido.

— Isso é óbvio! — Niara se curvou, com as mãos no estomago, enquanto gargalhava.

— Está tudo bem! Não me machucou de verdade...

Rizvan exprimiu um gemido, quando os dedos enrugados de Áquila tocaram o hematoma em seu rosto.

— Ouça o conselho de alguém experiente, garoto... — o alfaiate balbuciou — Eu também não gosto de chamar atenção para os meus problemas, mas não deveria ignorar o que está sentindo, apenas porque tem medo de incomodar as outras pessoas.

— Certo. Eu...estou trabalhando nisso. — Rizvan se concentrou, apertando as pálpebras — Só quis dizer que não é nada demais. Na verdade, é algo muito fácil de resolver. Está vendo? Não está doendo mais, eu só preciso manter a concentração...

— Não se preocupe, Áquila. Ele é mais forte do que parece. — Nayeli elogiou, jogando uma mexa dos cabelos ondulados por cima do ombro — Yandina, você me surpreendeu! Onde aprendeu a brigar assim?

— Veve me ensinou.

— Quem é Veve?

— A mãe dela. As duas não se dão bem. — Niara decidiu se intrometer — Veve queria treiná-la como um de seus guerreiros, contra a sua vontade, por isso Yandina acabou se acostumando a chamá-la apenas pelo nome.

Se fosse mais pálida, a agricultora teria ficado vermelha.

— Nós...conseguimos conviver pacificamente, sob o mesmo teto. Sempre faço o possível para evitar qualquer conflito.

Nayeli pigarreou.

— Não parece uma boa qualidade para um combatente, se me permite dizer.

— Eu também sei cuidar da terra, ganhava um bom dinheiro vendendo verduras e legumes para os meus vizinhos...

— Quando você estiver mais velha, ficará feliz se continuar trabalhando com isso? Não acha que poderia fazer muito mais?

Yandina deu um passo para trás, sentindo-se, subitamente, exposta, como se a sacerdotisa pudesse ler os seus sentimentos. O que ela, de fato, podia.

— Nayeli! — o marido a censurou — Já conversamos sobre usar seu dom em outras pessoas. O que aconteceu com Kalik... Não se lembra?

— É claro! Eu só queria ajudar. Yandina me pareceu muito promissora, classificando os pedidos de ajuda aos deuses e me ajudando a organizar a sua agenda. Talvez não seja mesmo uma lutadora, e não há nada de errado nisso!

A mulher mais jovem, esfregou os cotovelos, pensativa.

— Deveríamos entrar e pedir algumas pedras de gelo para Rizvan. Eu prometo pegar mais leve, da próxima vez...

— O quê? — o timbre do estudante se elevou em duas oitavas — Nem pensar!  Você e seu irmão estiveram comigo, nos meus piores momentos. Eu sou parte da equipe agora, se Kanna precisar da minha ajuda, eu tenho que estar pronto!

Niara e Yandina abraçaram o amigo, ao mesmo tempo, como se fosse um bebê, que havia acabado de pronunciar as suas primeiras palavras.

A sacerdotisa o analisou, com curiosidade, antes de se posicionar ao lado de Áquila, ajudando o companheiro a recolher os seus pertences caídos.

Na estrada ao lado, caminhões, abarrotados de bombeiros, pediam passagem entre os demais veículos, com suas sirenes estrondosas. A maior parte deles tinha o mesmo objetivo, apaziguar as chamas que estavam consumindo florestas em todo o país.

Enquanto alguns oficiais recém-chegados lutavam contra o fogo, que havia se alastrado até uma aldeia, Kalik tentava proteger os moradores aterrorizados, alertando-os sobre um caminho seguro, que os levaria para longe do perigo.

Quando o último casal passou correndo por ele, o pescador fechou os olhos e apertou os punhos, até os nós dos dedos perderem a cor.

 — Estou tentando me conectar com os animais das redondezas, mandá-los para o mais longe possível... — ele grunhiu, decepcionado — ...nem todos vão conseguir se salvar!

Kanna, que estava pairando sobre o caos, como a divindade que de fato era, moveu os dedos para o céu, e tal qual o maestro de uma orquestra, ordenou que o calor e a luz incidentes se dissipassem.

Como consequência, as labaredas que cobriam casas e grande parte da vegetação circundante, começaram a desaparecer, levantando uma nuvem de fumaça.

— Finalmente! — disse Kalik, fingindo não estar impressionado — Estava começando a pensar que não seria capaz de um feito tão grandioso.

Kanna desviou o olhar, prestes a rebater, quando notou o sorriso do amigo.

Ele sorriu de volta, com as sobrancelhas arqueadas.

Assim que o tabelião retornou ao solo, uma tropa de oficiais, completamente uniformizados, invadiu sua linha de visão.

— Durante muitos anos, eu senti que precisava esconder minhas crenças para ser aceito pelas outras pessoas! — confessou um deles, enquanto retirava o capacete, deixando visíveis os cabelos despenteados — E aqui estão vocês, os gêmeos filhos do firmamento!

Kalik e Kanna assentiram, igualmente confusos e embaraçados.

— Pois sabem o que eu acho?  — disse uma colega, cujo rosto quadrado, estava empapado de suor — É muito bom saber que os deuses estão agindo em casos de extrema necessidade, mas deveriam tomar cuidado. Nós dependendo do nosso trabalho, do nosso esforço. Sei que não sou a única que pensa que podem estar se envolvendo demais!

O pescador semicerrou os olhos.

Kanna tocou suas costas.

— Bem, tenho certeza de que a maioria das pessoas concorda com o que estamos fazendo. — ele se voltou para os outros bombeiros — Não é mesmo?

Antes que pudesse obter uma resposta, Simbo se revelou, sacudindo as mãos sobre o rosto, para afastar a névoa negra que o rodeava. Quando Kanna retornou seu olhar para os oficiais, percebeu que estavam partindo, de volta para seus veículos.

Kalik sibilou.

— Pelo visto, não poderemos contar com eles para capturar os responsáveis por esse desastre. — ele balbuciou, esfregando o queixo — Tem certeza de que seu sonho foi uma visão do futuro, Simbo?

— Eu nunca poderia dizer isso. — o conselheiro espiritual afirmou — Mas se a minha intuição estiver correta e eu acredito que está, os criminosos já devem ter chegado à estrada, com todos os bens que roubaram dos primeiros aldeões que fugiram, com medo do fogo.

— Nesse caso, vamos garantir que não consigam ir longe!

Kanna e Kalik se concentraram um no outro, por um segundo, agarraram Simbo, e sem qualquer aviso prévio, lançaram seus corpos para o ar.

Na rodovia, motoristas enfurecidos berravam a plenos pulmões, exigindo uma explicação dos deuses, por seus veículos paralisados.

— Eles estão naquele carro vermelho, a direita! — anunciou Simbo.

O tabelião sorriu, confiante, e os três flutuaram até o automóvel.

— Com licença, senhor, fomos chamados para solucionar um caso, se puder colaborar com nossa investigação...

Ele deu duas batidas no vidro fumê e aguardou, debruçado para a janela.

Assim que a superfície que cobria a abertura se recolheu, um punho largo, desconectado do restante do corpo, o acertou, bem entre os olhos, e o rapaz desabou no asfalto.

Kalik e Simbo ficaram tão espantados com o acontecido, que não perceberam quando o membro independente retornou para o corpo do motorista e ali se fixou, como se nada tivesse acontecido.

O adolescente esguio chamou a atenção de sua comparsa, uma garota vesga e delgada, sentada no banco traseiro, e os dois começaram a correr, para longe dos deuses.

O pescador tentou acompanhá-los, voando, mas um dos jovens seguiu em linha reta pela estrada e o outro adentrou a floresta ao lado.

Enquanto tentava abrir caminho entre as árvores, a menina lançava olhares periódicos por cima do ombro, para verificar se estava sendo seguida. Suas pupilas, mesmo desviadas, eram capazes de enxergar através dos pinheiros e já haviam lhe concedido acesso as mais diferentes riquezas e informações. Naquele momento, poderia afirmar, com veemência, que não havia ninguém em seu rastro.

No entanto, uma sombra passou sobre ela e quando virou o rosto, encontrou Kalik, a sua espera, com um casal de chacais raivosos em seu entorno.

A criminosa levantou os braços, impotente.

Logo em seguida, os animais reapareceram diante do rapaz transgressor, impedindo que prosseguisse com sua fuga. Aterrorizado, ele girou os calcanhares, apenas para se deparar com o olhar intimidante de Simbo.

Após um longo bocejo, o adolescente caiu no sono.

A polícia chegou cerca de meia hora depois, e trocaram poucas palavras com os bombeiros presentes, antes de vistoriar os itens roubados pela dupla, no porta-malas de seu veículo. Eles parabenizaram a interferência de Kanna e Kalik, com uma salva de palmas, que contagiou todos os transeuntes.

— Eu sei que as coisas nem sempre tem sido fáceis para vocês dois. — Simbo disse, como se lesse os seus pensamentos — Mas eu admiro muito o que estão fazendo e na minha opinião, mereciam muito mais do que estão recebendo. Se precisarem de alguém, para conversar sobre tudo o que está acontecendo, contem comigo.

Kalik franziu a testa, tentando deduzir se aquele comentário, de alguma forma, estava relacionado aos poderes de vidência do amigo.

— É melhor você ir se acostumando com esse tipo de coisa... — Kanna o olhou nos olhos — Nós somos uma equipe agora. Isso quer dizer que nos importamos.

— Obrigado... — o pescador chegou mais perto, subiu os dedos pelo pescoço de Kanna e afagou seus cabelos — Eu também me importo com vocês.

Simbo observou, com atenção, enquanto o bibliotecário tentava estabilizar a respiração.

— Já está ficando tarde... Podemos ir embora, rapazes?

— Claro. — Kalik se afastou, rapidamente — Eu vou procurar o nosso veículo.

Quando ficaram apenas os dois, o conselheiro espiritual gesticulou para Kanna, indicando, sutilmente, o rapaz que caminhavam alguns metros, a frente deles.

— O que você dizia, sobre mim e Yandina?

— Não seja ridículo! — ele revirou os olhos e seguiu, correndo, para perto de Kalik.


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