Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 11
CINCO - Adélia




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Por uma fração de segundo, Adélia desejou ter continuado inconsciente. Sua mente afiada, logo concluiu, que o plano, que passara as últimas horas articulando, havia dado, terrivelmente, errado.

Os cavalos que deveriam servir de distração aos guardas do presídio, enquanto se dirigia até as autoridades responsáveis por manterem seus velhos companheiros cativos, galopavam, desesperados, pelo pátio, o que só poderia significar que Kalik não estava mais domando seus instintos primitivos.

Ela teve certeza do fato, quando um corcel ameaçou afundar as ferraduras em seu crânio, mas foi impedido por uma mulher uniformizada – a mesma que Adélia instigou a apoiá-la, com seus poderes, assim que atravessou os portões.

A funcionária, Lizeth, que tinha uma pinta próxima da boca e ombros largos, a empurrou para longe, jogando seu corpo sobre o dela.

— Obrigada...minha querida. — Adélia sorriu, contemplando a face de sua salvadora — Agora me leve até o seu superior, o mais rápido possível, está bem?

Lizeth escancarou a porta de um cômodo espaçoso e olhou dentro dos olhos de um senhor, atarracado e bem-vestido, enquanto perambulava, em círculos, pela própria sala.

— O que está fazendo aqui? Deveria estar trabalhando com seus colegas para conter esse desastre! E quem é a sua amiga...?

Adélia caminhou para mais perto do diretor da penitenciária e tocou seu peito.

— Perdoe a minha intromissão, senhor Holman, mas temos algo importante para resolver. Meus amigos não deveriam estar encarcerados. Vá até os seus subordinados, cheque os seus documentos e faça o que for preciso para que essa injustiça seja reparada. — Ela ordenou, com uma expressão suave.

— É claro. Nesse mesmo instante!

O homem se afastou, abruptamente, mas Adélia o agarrou pelo pulso.

— Mais uma coisa, depois que trouxer os três para mim, preciso que você e Lizeth encontrem Kalik e seus inimigos. Quero todos eles no meu casarão, em meia hora, mas sejam discretos! O dia já foi turbulento o bastante.

Seria prepotência supor que qualquer um dos habitantes daquela cidade daria atenção a sua presença, enquanto um evento muito maior e mais selvagem se desenrolava diante de seus olhos.

Holman e sua subordinada cruzaram os portões do estabelecimento, vestindo suas roupas casuais, chapéus e óculos escuros, assumiram o controle de uma viatura policial e iniciaram sua busca.

Eles encontraram o corpo de Émile, frio e ensanguentado, e o esconderam em seu porta-malas. Após alguns minutos, se depararam com Aima, chorando, em um ponto de ônibus.

— Entre no carro. — Lizeth a encarou, o braço que tocava a porta do veículo imitava a substância metálica — E não se atreva a nos tocar, sabemos do que é capaz. Estamos em maior número.

A xamã enxugou o rosto, fez o possível para endurecer suas feições e, a contragosto, obedeceu.

Quando seus mais novos comparsas retornaram e comunicaram a Adélia, tudo o que haviam testemunhado, ela se voltou para Aima, que estava amarrada em uma poltrona no centro da sala, como se estivesse coberta de esgoto.

— Você...matou o seu amigo?

— Não.

A mulher tatuada atravessou os dedos pelas madeixas claras, desconfiada, e deu um passo na direção da refém.

— Também conheço suas habilidades. Eu e Émile estávamos rondando Kalik e vimos o que você fez com ele. — Embora parecesse constantemente desanimada, Aima sabia demonstrar imponência, se assim desejasse — Imagino que saiba que se encostar em mim, posso neutralizar os seus poderes.

— O dom de Kalik não desapareceu, permanentemente. — Adélia argumentou, ultrajante.

— Você não é uma divindade.

A proprietária do imóvel passou a língua pelos dentes. 

— Nós podemos fazê-la falar! — sugeriu Holman, projetando a extremidade de seus ossos para fora dos punhos.

Lizeth assentiu.

— Na verdade, eu preciso de outro favor. — Adélia soltou um longo suspiro — Levem o defunto para o mais longe possível e queimem-no até virar cinzas.

Aima emitiu um soluço, o que despertou um sorriso nos lábios da mulher.

— Sim... — ela discorreu — Esse homem é o seu ponto fraco. Então está dizendo a verdade. Não foi você quem o matou. Foi Kalik, não é?

A xamã ergueu o queixo, seu corpo estava trêmulo.

— Desde que Émile e sua esposa pisaram em Thulen, nós dois estivemos juntos, nos momentos mais importantes da vida um do outro. As outras pessoas não compreendiam que... — ela se conteve — ...a verdade sempre esteve diante de seus olhos.

— Parece uma história interessante. Continue falando, enquanto eu decido qual será o destino de seu amigo.

Adélia se sentou em um sofá, arranhando o encosto com as unhas tingidas de preto.

— O que está esperando que eu diga? Quando o conheci, já éramos adultos. Muitos dos habitantes da minha tribo temiam a mim e meus poderes, mas sempre existiram alguns, mais corajosos, que buscavam por meus conselhos, quando ninguém estava olhando. Um dia, Émile me procurou para que eu falasse sobre os deuses, disse ter visto sobre eles, nos livros que havia trazido de sua terra natal.

— Então você o convenceu de que o Sol e a Lua eram mais do que criaturas mitológicas?

— Não. — Aima quase sorriu — Eu apenas fiz com que se sentisse seguro. Alguns dias depois, ele confessou que éramos iguais. Nos tornamos amigos e confidentes, desse momento em diante.

— Em seguida, vocês conheceram Kalik, concluíram que ele era o deus maligno descrito em suas escrituras e decidiram caçá-lo...

— Você vasculhou as memórias dele. Quer que eu confirme o que viu?

Adélia assentiu.

— Eu vi Kalik, discutindo com alguns de seus amigos, e naquela mesma noite, o lugar onde vivíamos foi invadido por lobos. A companheira de Émile ficou, gravemente, ferida e eu o vi, implorando aos céus, por um milagre. Quando ela começou a se recuperar, decidimos agir, antes que algo pior acontecesse.

— Entendo. — ela ficou de pé e lançou um olhar de advertência para Holman e Lizeth — Bem...O que estão esperando? Façam o que eu pedi!

Os dois caminharam para a saída, enquanto a xamã se debatia no assento.

— Está, pelo menos, ouvindo o que estou dizendo?

— Aima, pense bem. — Adélia se aproximou, cautelosa — Não acha que foi tola o bastante? Kalik já havia relatado a outros pescadores, que achava que estava sendo vigiado...

— O quê?

— ...E você se deixou ser vista pelo casal que estava responsável por ele, quando o atacou em Tinensia.

— Nós investigamos, não deixamos nada que pudesse nos incriminar.

—  Tem certeza disso? O diretor da penitenciária me disse que havia um poço de concreto líquido, onde o corpo de Émile foi encontrado.

Aima abaixou o olhar, nervosa.

— Ele deveria ter cuidado disso, com seus poderes. Tínhamos um ótimo plano, Émile já estava acostumado a viajar para outros países para estudar novas culturas, novos povos, foi por isso que se mudou para Thulen. Ninguém desconfiava que estávamos trabalhando juntos. — Murmurou, para si própria — O que quer de mim, Adélia?

— Quero que esqueça esse homem e se junte a mim!

— Não há nenhuma possibilidade de que isso venha a acontecer! Você pretende usar Kalik como uma marionete, apenas para seu próprio benefício, mas ele é perigoso vivo! Estamos diante do mal primordial, uma escuridão tão poderosa que ameaça à integridade do Deus Sol e todas as suas criações.

— Em outras palavras, divindades podem ser inconstantes. Isso é compreensível. Por esse motivo, preciso de aliados fortes ao meu lado. Nós necessitamos. Esse Deus Sol, a que você se refere, é ainda mais grandioso que o rapaz desaparecido, não é mesmo?

A xamã inclinou a cabeça, confusa.

— Eu o quero para mim! E assim que o conseguir, dou minha permissão para que faça com Kalik, tudo o que achar pertinente. Dessa forma, nós duas sairemos ganhando!

Ela rodeou a prisioneira e prosseguiu:

— Veja, você nunca foi igual a Émile, você é igual a mim! Por essa razão nos encontramos nesse impasse. Não podemos nos aproximar demais uma da outra, pois sabemos que somos perigosas. Eu sempre fui uma jovem problemática, por esse motivo, não conseguia fazer amizades...

— Se pretende me convencer do que está dizendo, deveria ser mais cuidadosa com as mentiras que conta. Sei o quanto estava empenhada em libertar seus parceiros de crime, imagino que estejam agora, em algum cômodo desse casarão, ouvindo tudo o que estamos dizendo.

Adélia franziu a testa.

— Você é ainda mais ingênua do que pensei.

Ela uniu as palmas, em um aplauso sonoro.

Após alguns segundos, três silhuetas desceram as escadas do andar superior e se posicionaram ao lado de sua convocadora.

O primeiro deles, era um rapaz magro e retinto, com olhos esbugalhados, carregando uma pasta volumosa debaixo do braço, seguido de perto por uma figura andrógena, de expressão perdida, ombros curtos e cabelos, cor de caramelo, bem penteados.

O último não surgiu, imediatamente, mas o odor malcheiroso que exalava, era perceptível, mesmo há vários metros de distância. O senhor desdentado, com a cabeleira desgrenhada e roupas encardidas sorriu para Aima, fazendo com que a mulher torcesse o nariz, em repugnância.

— Permita-me apresentá-los, formalmente. Esses são Isandro, Savon e... — ela fez uma pausa, como se o fedor emanado pelo velho tivesse, subitamente, invadido suas narinas — ...Darrion. Eu a asseguro que fariam tudo por mim...

Adélia envolveu os recém-chegados, em um abraço coletivo. O contato, pele com pele, tornou a situação dolorosamente óbvia.

— ...Assim como eu faria por eles, é claro!

Aima estalou a língua.

— Como eu poderia ajudá-la?

— Prometa lealdade a mim, e em pouco tempo, nos tornaremos maiores do que qualquer deus ou mortal, que já ousou entrar em nosso caminho!

Dessa vez, a xamã não hesitou.

— Que assim seja.

Adélia se sentou novamente, com as pernas cruzadas e sorriu, triunfante.


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