Quam superesse in paradiso escrita por Lara Coimbra


Capítulo 4
Sobrevivência e descoberta


Notas iniciais do capítulo

Me atrasei na postagem do capítulo por causa de trabalho...
Enfim, está aqui, e voltaremos a acompanhar Mono nas Terras Proibidas.
O que será que ela vai encontrar? Será que a criança tem chances de viver?
Descubra nesse capítulo!



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Com o manto padronizado com costuras de Yath, o qual utilizou para aquecer a si e o bebê, Mono criou uma espécie de sling para segurar o pequeno contra seu tórax. Assim, suas mãos estariam livres para trabalhar e explorar o que as Terras Proibidas tinham a oferecer. Agro era muito inteligente, e sempre seguia à frente da moça, guiando-a para onde havia mais do fruto que aumentava sua vitalidade e energia. Nos primeiros dias, era tudo que conseguira encontrar para comer. Naturalmente, ela foi percebendo estas peculiares características do alimento. A criança indefesa continuava insistindo em sugar o seio de Mono. Só dessa maneira parava de chorar de fome. A princesa orava todas as noites para que não acordasse com o bebê morto ao seu lado, então, enquanto ele continuasse tentando mamar, ela sabia que ainda estava vivo. Outra novidade, era que a égua Agro demonstrava alguns sinais de melhora, mancando um pouco menos. Mono estava confiante em sua recuperação. Se Agro fosse capaz de ser montada novamente, ela poderia explorar melhor o que não conhecia, procurar mais comida e, quem sabe, uma saída. 

Ainda na primeira semana após seu despertar, Mono fez outra pequena descoberta. Outra fonte de alimento acessível em volta do Santuário da Adoração e no Jardim Secreto: lagartos. Havia dois tipos de lagartos nas Terras Proibidas, assim como havia dois tipos de frutos. Os lagartos pretos por inteiro demoravam muito para cozinhar e não eram nem um pouco saborosos. Já os lagartos pretos de cauda branca eram mais macios e nutritivos. A cauda era a melhor parte, e Mono sentia que toda as vezes que a comia ficava mais forte e resistente, superando seus objetivos e cumprindo as missões que ela mesmo postulava para melhorar sua condição de vida. Às vezes ela triturava as caudas para fazer uma sopa, e forçava o bebê a engolir. Todas as vezes em que fazia isso, o estômago da criança não reagia bem, mas era o que podia fazer para mantê-la viva. Sua determinação e força de vontade, porém, não foram em vão. Após dias deixando o pequeno sugar seus seios para confortá-lo, Mono começou a sentir um pouco de dor, o que era bem estranho. Depois percebeu que os mamilos escureceram. Mesmo estando constrangida e sem entender porque essas mudanças estavam ocorrendo, Mono seguiu vivendo e aprendendo.

Em duas semanas, Mono já havia aprendido a atirar flechas decentemente. Conseguia atingir frutos em galhos mais expostos, e acertar lagartos tomando sol, distraídos. Nesse tempo, também percebeu que o esforço de Agro para subir e descer as rampas para o Jardim Secreto todos os dias estava atrasando sua recuperação. Se ela conseguisse se instalar na parte inferior do Santuário da Adoração, e construísse algo para estocar a água, suas visitas ao jardim seriam menos frequentes. Ajudaria também se ela achasse mais fontes de água doce. Lá de cima ela tinha uma noção de onde os oásis estariam, mas ela ainda precisava de tempo para construir ferramentas. Agro ainda não poderia ser montada, e Mono tinha medo de sujeitar o bebê a doenças se viajasse sem garantia de comida ou abrigo. Ela estava literalmente à espera de um milagre, algo que fizesse superar a barreira que a impedia de evoluir. Não era culpa da criança, por mais que esta fosse o principal empecilho. Mono dependia completamente de sua melhora para prosseguir. Eis que o milagre que tanto pediu se concretizou de forma inesperada e surpreendente. Ao se levantar de um cochilo, Mono percebeu que sua camisola estava úmida na região do tórax. Eram duas grandes manchas molhadas circulares. 

Mono estava um pouco envergonhada, mas confusa, além de tudo. Ela era jovem, mas não era ignorante. Começou a chorar, emocionada, processando a informação fresca em sua mente. Estava produzindo leite. Ela mesma, quando foi recém-nascida, precisou de uma ama de leite. Agora, quem servia como ama de leite era Mono. Isso deu a ela a certeza de que a criança sobreviveria. Até Agro parecia mais contente, ao ver seu pequeno protegido lactando, depois de tanto tempo sofrendo. A princesa perdida não se sentia mais como uma substituta. Ela era mãe. A mãe verdadeira, e nada a faria pensar o contrário. Sua responsabilidade para com o bebê tornara-se maior, e isso a fez pensar que já havia passado tempo demais referindo-se a ele apenas como “menino”, ou “pequeno”. Mono precisava dar-lhe um nome. O primeiro que lhe veio à cabeça foi, obviamente, Wander. Assim como seu desaparecido amante, a criança era corajosa, teimosa, e não desistia. Mesmo assim, Mono não queria ficar presa ao passado, e se entristecer todas as vezes em que chamasse por ele. 

Wander tinha significados muito profundos, e os xamãs estavam certos quando deram-lhe esta designação. Mover-se sem destino definido, proceder em caminho irregular. Wander não era um homem perdido que perambulava sem objetivos, como as duas primeiras definições tentavam deixar transparecer. Os xamãs deixaram escapar outra característica, esta que se tornaria fundamental na personalidade de Wander, também presente nas escrituras dos livros: aquele que não se conforma com os princípios morais e com as normas. Mono se lembrava de como ele era cético em relação à Ordem dos Xamãs, e sempre desafiava suas leis. Ele costumava levá-la em aventuras e pequenas viagens secretas, e quase se encrencou fazendo isso uma vez. Essas novas lembranças fizeram Mono perceber algo diferente. Já que Wander era tão crítico quanto à religião do reino de Yath, não fazia sentido que ela estivesse dentro de um santuário sagrado das Terras Proibidas, deitada num altar misterioso. Wander não acreditava nessas coisas, ou melhor, não acreditaria, a não ser que algo muito grave tivesse acontecido e abalado sua fé. 

“Agro, será que foi Wander quem me trouxe aqui? Será que minha última lembrança antes de acordar foi algo real e não um pesadelo?”

Agro agia como se entendesse, pois respirava forte a cada vez que o nome de Wander era pronunciado. 

“Lorde Emon teria sido capaz de me matar...? De verdade?”

O animal reagiu de forma agressiva quando Lorde Emon foi mencionado. Seria loucura insistir em se comunicar com uma égua, mas se Mono não acreditasse em alguma coisa, ficaria louca. Mais lágrimas escorriam por seu rosto. Vasculhando seus conhecimentos sobre os rituais dos xamãs, Mono se lembrou que os representantes eram autorizados a matar em duas ocasiões: a primeira era no caso de um crime grave, e a segunda era em ritual de sacrifício, caso as visões denunciassem algum perigo para o reino acerca da vida de um indivíduo. Wander causou, junto a Mono, muitas confusões, e crimes passíveis de punição, mas nada tão sério que fosse punido por morte. Ela era a princesa, a única herdeira de Yath, não podia ser simplesmente assassinada.

“Bem, chega de pensar nisso! Eu não tenho a mínima chance de descobrir o que aconteceu comigo e com Wander sozinha, ou conversando com um cavalo. Me desculpe, Agro.”- Exclamou Mono, balançando a cabeça, e acariciando o animal, logo depois. 

Mono se acalmou quando voltou sua atenção ao bebê, fascinada, enquanto ele continuava a lactar. “Eu quero que você caminhe sem preocupações por estas terras, meu pequenino. Quero que, mesmo nessa imensidão inóspita, você encontre lazer e felicidade, a cada passo que der. Por isso, meu doce menino de chifres, lhe chamarei de Saunter, aquele que passeia alegremente.”

Passado mais algum tempo, Mono percebeu que Saunter havia ganhado peso, e se mostrava mais forte. Agro também estava mais disposta e já trotava. Agora sim, era possível explorar um pouco mais além, e começar a descobrir os limites das Terras Proibidas. A princesa afixou o sling no corpo, com o bebê seguro, contra sua pele. Ele não cairia com o cavalgar do cavalo. Era uma bela manhã quando os três aventureiros deixaram os limites do Santuário da Adoração mais uma vez. Mono já estava familiarizada com aquela região do vale. O solo era uma mescla entre capim e gramado, que pintavam a paisagem de verde esmeralda. Em algumas partes, a grama simplesmente não crescia, deixando à vista o chão um pouco arenoso, com material sedimentado das rochas altas que enfeitavam a paisagem aqui e ali. A árvore da onde Mono coletou seus primeiros frutos ficava em cima de uma pedra de um dos conjuntos que coexistiam com a beleza esverdeada.

 Agro a levou para o fundo do vale, onde um rochedo semicircundava toda a área, como se escondesse algo atrás de uma parede gigantesca. Sem descer do cavalo, Mono observou o local.  Torres entranhadas na rocha simulavam um portão. Aquilo era certamente a entrada para algum local. Portas de pedra estavam tombadas, passarelas incompletas, escadas quebradas, e pilares destruídos pelo tempo e pelo abandono. Mono não fazia ideia de há quanto tempo jaziam aquelas ruínas, mas poderiam ser até mais de mil anos. Os bibliotecários de Yath não deixavam que nenhum habitante procurasse mais conhecimento em relação às Terras Proibidas além das coisas que já ensinavam para as crianças. Não se deve ir lá e ponto final. Como era princesa, Mono sabia que livros sobre as Terras Proibidas existiam, e que apenas o xamã mais velho e mais sábio tinha acesso a eles. Na sua geração, o responsável era Lorde Emon. 

“Ainda não sou capaz de escalar essas paredes”, ela disse. “Mas ainda vou encontrar uma forma.” - Prometeu a si mesma. 

Agro deu meia volta, mesmo sem nenhuma ordem de Mono. Do lado esquerdo do paredão havia uma fenda com uma trilha, mas era coberto por uma névoa de poeira. A princesa ficou receosa. O cavalo seguiu de volta para o santuário, mas não entrou nele. Em vez disso, ela contornou a construção colossal pelo lado esquerdo e parou de repente, ao mando de quem a montava. Mono ficou simplesmente deslumbrada com o tamanho do desfiladeiro à sua frente. Ele cobria todo o horizonte, de leste a oeste. Lá embaixo, o mar conseguira abrir caminho, desenhando uma bela e esguia praia no meio das falésias. Era como se a Terra Proibida estivesse partida ao meio, como um pedaço de torta. A própria natureza havia erguido uma passagem, uma ponte de pedra que se alongava e atravessava todo o buraco. As colunas que desciam à praia para segurar a estrutura não possuíam o toque humano ou bestial. A obra foi dada pela própria terra. Agro já havia atravessado a ponte várias vezes, e entendia que Mono poderia ter medo, então foi devagar. Mono tremia, mas seguia em frente, confiando no animal. Além da ponte, havia o que parecia ser outro país inteiro, de tão grande, mas era para lá que seguiam os rastros de destruição da ponte de acesso para o Santuário da Adoração. Ou seja, se esta outra magnífica ponte ainda estivesse de pé, Mono já teria voltado para casa. Na areia abaixo dela estavam pedaços obliterados do que um dia foi sua chance de retorno. 

Por algum motivo, Agro estava interessada nessa mesma enseada e, em vez de seguir em frente, virou à direita, onde havia uma passagem construída para acessá-la. Muros delimitavam o caminho, que fazia uma curva, enquanto descia. Na verdade, um dos destroços da ponte de acesso havia atingido o caminho, mas a trupe conseguiu descer à praia, apesar do obstáculo. Tanto a areia quanto a água tinham ruínas espalhadas por seu espaço. Era algo incrível, observar o que o poder da destruição era capaz de fazer. Mono tocou e estudou cada unidade que pode. Não havia escrituras na ponte. Depois, a princesa colocou os pés na água. “Que gelado!” - Exclamou. Depois provou da água. - “É, definitivamente, isso é o mar. Eu deveria construir um barco algum dia.”

Mais tarde, Agro insistiu para que Mono a acompanha-se para mais longe dentro da enseada. A moça, curiosa, a seguiu. A égua parou em frente a uma estranha montanha de areia. Surpresa e tentando entender o que era aquilo, percebeu que partes de uma armadura estavam expostas, junto com cascos animalescos. O parecia ser o crânio nada mais era que um capacete de pedra, com cavidades para os olhos, e uma estrutura bucal nunca antes vista. Um cadáver qualquer estaria já estaria pútrido naquelas condições, mas o que estava diante de Mono parecia esparramar-se na areia, juntando-se a ela, transformando-se no próprio ambiente. Sobre seu corpo decomposto cresciam gramíneas, liquens, e até uma árvore. Esta última, sem folhas. 

“O que é essa coisa?”, aos poucos, ela foi traçando o tamanho médio da criatura que acabara de encontrar. Deveria ter a altura de um castelo, se estivesse de pé.  As patas sozinhas já eram do tamanho de uma cabana.

Saunter ficou muito inquieto quando Mono encostou nos restos mortais do animal. Parecia muito chateado, o que desencadeou um choro forte. Mono não sabia porque ele ficara tão alterado. Era como se soubesse o que era aquela besta, ou algo nela despertara sentimentos ruins na criança. “Está tudo bem.” - Mono o acalmou, enquanto o ninava nos braços.

Ainda mais ao fundo, era possível ver a entrada de uma caverna. Era aproximadamente do tamanho suposto da criatura. Mono tentava reconstruir seus últimos passos com a imaginação. “O monstro se chocou contra a parede e caiu, ou será que isso foi resultado de uma batalha?” - Indagava. “Quem seria virtuoso o suficiente para matar essa criatura?” 

O que Mono desejava mesmo era pensar que Wander não tinha nada a ver com isso. Tinha medo de encontrar o corpo dele jogado por ali também. Por último, a jovem entrou na caverna, procurando por mais pistas. Lá não tinha nada. Só vazio e escuridão. Decepcionada, e ao mesmo tempo aliviada, Mono retornou para o que por enquanto era sua casa. Teve muita dificuldade para dormir. Sentia falta de Wander, e não sabia se era melhor ele estar desaparecido e vivo, ou morto e bem diante de seus olhos. Mono estava triste e completamente sozinha, num mundo onde as paredes sussurravam e ainda sim não diziam nada. Por um momento, ela parecia não se importar com a vida, e muito menos com a morte. A única coisa que queria, naquela noite, eram respostas.


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Notas finais do capítulo

Pessoalmente eu tenho muito orgulho desse capítulo...
Espero que vocês tenham sentido a mesma emoção que eu ao escrevê-lo.
Até a próxima pessoal!



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