Queen of Hearts escrita por Luna Lovegood


Capítulo 3
Capítulo 2 - Make me feel something


Notas iniciais do capítulo

Ei, ando meio sumida, desanimada, decepcionada, mas tô aqui, tentando.

Espero que apreciem.



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Touch me someone 

I'm too young to feel so 

Numb, numb, numb, numb 

You could be the one to 

 

Make me feel something, something 

Make me feel something, something 

Show me that you're human, oh 

Make me feel something, something

(Feel Something - Jaymes Young)

Oliver Queen

45. 46. 47. 48...

— Sr. Queen? - Ergui minha cabeça ao escutar meu nome ser chamado, amaldiçoando a pessoa que me fez perder a contagem. Esse era o número de vezes que eu bati a caneta sobre a mesa. Contrariando minha irritação o encarei e sorri polidamente.

— Desculpe, o que disse? – perguntei ao notar que todos na mesa esperavam por uma resposta à uma pergunta que eu era completamente alheio. Não sei dizer em que momento meus pensamentos se perderam. Tentei puxar a memória mais recente do início da reunião, e tudo o que consegui foi um belo e gigantesco nada.

Embora eu disfarçasse bem, eu havia desligado no instante em que me sentara naquela cadeira, deixando os outros discutindo o meu futuro. Dei-me um indulto no começo. Eles sempre começavam com uma recapitulação da última semana. Por onde eu estive, em quais jornais eu fui notícia e o que eles disseram.  Eu não precisava saber disso, afinal eu vivia essa parte, sabia melhor do que eles. Depois falavam um pouco sobre as pessoas que estavam começando a ver meu potencial, e o quão benéfico isso poderia ser. E nesse ponto a conversa se perdia um pouco quando cogitavam algumas articulações, mas logo voltava aos trilhos quando discutiam o meu itinerário para a semana.

Era sábado pela manhã.

Eu poderia estar dormindo até mais tarde ou fazendo algo mais interessante. Inferno, escutar Thea reclamando no café da manhã sobre o idiota do seu novo professor de matemática era mais interessante do que estar aqui e agora, tendo pessoas discutindo e fazendo planos sobre a minha vida.

Por que minha presença era necessária, afinal? Eu poderia simplesmente pegar minha agenda após o final da reunião e fazer o que estava assinalado.

Apenas pisquei quando Alex terminou de repetir a pergunta. Novamente, eu havia me distraído com meus pensamentos, ao invés de prestar atenção no que meu relações públicas dizia.

— Parece bom. – dei uma resposta genérica a pergunta desconhecida e todos ficaram calados. Um par de olhos preocupados vieram para mim, sobrancelhas unidas e lábios apertados, dizendo-me que eu não engara a todos.

— Você não tem estado exatamente focado desde o assalto. –  senti a mão da minha mãe sobre a minha, apertando-a. Mantive minha expressão blasé. - Tem certeza de que está bem, querido? – As pessoas se afastaram. Vi os olhares de todos se desviando, estranhamente concentrados em planilhas e celulares ou falando sobre pesquisas e dados na outra extremidade da mesa. Fingindo nos dar privacidade.

Baboseira. Isso não existia para mim.

— Isso foi há semanas. – Três semanas e dois dias. E sim, aquilo ainda estava em minha cabeça, mas não pelos motivos que minha mãe pensava. Não estava traumatizado ou assustado, mas não conseguia não repassar cada um daqueles minutos. Entrei em contato com a polícia algumas vezes para verificar o avanço, mas o caso ainda estava em aberto, eles não tinham novas pistas e isso me enfurecia, não fazia sentido. Eu não queria parecer um bebê sensível que precisa de atenção, já era difícil demais que, em meus trinta anos, minha mãe ainda controlasse não apenas a minha vida política, mas todo o resto. - Estou bem, mãe. – me esforcei para lhe dar meu melhor sorriso.

Aquele sorriso.

Um pequeno riso me escapou ao me lembrar... Sorriso de comercial de pasta de dentes. Ela dissera.

— Talvez seja melhor cancelarmos a reunião de hoje. – Com sorriso ou não, Moira Queen não se convenceu. - O que acha, Walter?

Walter se sentava ao meu outro lado e de frente para a minha mãe. Como meu chefe de campanha e provavelmente meu vice, caso não encontrássemos outra pessoa até o anúncio oficial da candidatura, tudo passava antes por ele. Meus discursos, minha agenda. Até mesmo a gravata que eu usaria deveria ser validada por ele antes. Eu não questionava seu método, ele estava há anos nesse trabalho, foi o grande responsável por toda a carreira política do meu pai até chegar ao senado, e agora era responsável pela minha.

— Podemos remarcar, não é nada urgente. – Garantiu com um breve e estoico olhar. Os dedos eficientes já digitando uma mensagem, que eu deduzia ser de cancelamento, no seu celular.

— É sobre aquela escola, certo? – franzi o cenho correndo rapidamente os olhos pela folha do meu itinerário do dia. Não havia muito. Breves declarações que precisavam ser dadas, e que eu tinha certeza já tinham sido escritas por mim, a reunião na parte da tarde, e um jantar de família a noite. Se eu cancelasse eu teria a maior parte desse dia de folga, e a mera ideia de um tempo para mim, era tentadora. Mas reconheci o nome do lugar, um pequeno bolor no peito se formando ao me lembrar da razão para o primeiro cancelamento. - Já remarcamos uma vez por causa do incidente, não quero parecer que não cumpro meus compromissos, ou que isto não é importante para mim. Se sentirem que não estou certo do que faço, podem recuar e não aceitarem uma terceira tentativa. – argui, retomando algum controle. - É apenas uma reunião com a coordenação sobre o a minha participação no projeto, não vou levar mais do que um par de horas.

Nós três trocamos olhares.

— Certo, então nós vamos seguir com o planejado. – minha mãe alinhou as folhas que tinha a sua frente, batendo-a algumas vezes sobre a mesa, antes de se levantar, com toda a classe e desenvoltura tão naturais para ela. - Vou dizer ao Diggle para preparar o carro, e ligarei para a Susan do Starling Journal. Não sei se conseguiremos a capa novamente, mas contanto que Adrian não esteja nela, uma das primeiras páginas seria bom para nós. – fiz uma careta. Eu estava exausto de ver meu rosto em jornais e revistas. - Você precisa usar um terno mais claro e uma gravata azul, seus eleitores dizem que destaca seus olhos. – ela sorriu.

Não correspondi ao sorriso.

— Eu espero que meus eleitores saibam que é preciso mais do que um par de olhos azuis para administrar a cidade. – Respondi mal-humorado, e ela apenas riu.

— Elas sabem, mas ajuda ter algo bonito para se olhar. – piscou para mim.

— Sua mãe está certa. – Walter interviu em seu tom profissional. Levantou-se também e começou a distribuir as tarefas - Evelyn, separe uma gravata azul marinho e um terno cinza claro, camisa lisa branca. – uma garota baixinha e tímida que raramente olhava para mim assentiu antes de sair apressadamente da sala. - Alex prepare uma declaração sucinta para a mídia, peça para a equipe estar pronta às duas da tarde. Vamos precisar de um maquiador para tirar essas olheiras do Sr. Queen, um fotógrafo nosso, os jornais tendem a pegar os piores ângulos e também prepare...

Ah, merda.

Eles faziam parecer que eu estava indo para o Met Gala.

— Não preciso de todo o staff comigo. – me ergui da cadeira, também erguendo minha voz antes que mais decisões fossem tomadas. - Posso ir sozinho, como uma pessoa normal. – Todos pararam o que faziam olhando de mim para Walter, sem saber quem obedecer.

Tecnicamente, ele era o chefe deles.

Mas era a minha vida. Era suposto que eu tivesse algum direito sobre ela, certo?

— Você não é uma pessoa normal, Oliver. – Minha mãe contrapôs em seu tom conciliador, a mão se colocando sobre meu ombro. Segurei a vontade de revirar meus olhos, eu conhecia bem o discurso que viria a seguir, eu o ouvia por muitos anos. - O seu sobrenome tem peso. As pessoas se sentem atraídas por ele, querem estar ao seu lado, saber o que um Queen faz, como vive. – Afastei de seu toque, dando as costas. Perdi a batalha interna e revirei os olhos, soltando também um suspiro aborrecido. - Todos estão assistindo você. Eles têm expectativas. E nem sempre são as melhores, não podemos nos dar ao luxo de cometer um erro.

— É suposto que fosse apenas caridade, não um maldito evento social. – resmunguei.

— Imagem é tudo. – Foi resoluta. - E toda a publicidade é bem-vinda.

— Não quando é obtida assim. – virei-me para ela, notando que agora a sala de reunião estava vazia, a não ser por nós dois e Walter. Todos saíram de fininho como se soubessem que um jogo de poder estava prestes a começar, e que eles não passavam de peões no tabuleiro. - Não quero meus eleitores questionando se meus atos são todos friamente calculados para ganhar votos. – Expliquei. - Eles precisam me enxergar como uma pessoa normal, humana e tangível, meu sobrenome, por mais nobre que seja, não pode ser uma barreira.

Minha mãe não me respondeu.

Ficamos presos nesse impasse.

Eu normalmente não me empenhava tanto para provar um ponto. Eu confiava na experiência de Walter e da minha mãe, eles tinham anos nos bastidores desse jogo, enquanto meu conhecimento se limitara a ficar ao lado do meu pai algumas vezes no palanque e sorrir, e aulas de oratória e ciências políticas que jamais me prepararam para a realidade. Eu estava satisfeito em confiar na capacidade dos dois para tomar as decisões, mas, quanto mais me permitia que escolhas fossem feitas em meu nome, mais eu sentia que estava perdendo algo essencial.

— Oliver tem razão. – me surpreendi quando Walter se pronunciou - Promoção demais pode passar a ideia errada. Deixe-o ir sem fazer alarde, em algum momento a impressa irá descobrir sozinha o que ele está fazendo, e quando esse momento chegar, a publicidade será ainda maior. – Não era o que eu tinha em mente, mas funcionava.

— Excelente.

— Tudo bem. – Por mais que Moira Queen gostasse do controle, minha mãe sempre concordava com Walter. - Mas leve Diggle com você. – exigiu. Suas mãos se colocaram nas lapelas do meu terno, o olhar se ergueu afiado e intransigente. - E não ouse enganá-lo novamente, saindo de fininho para explorar o Glades.

Segurei meu riso.

Eu era um homem de trinta anos que estava levando uma bronca da mãe.

— Mãe, eu não estava fugindo de Diggle naquele dia. – Eu apenas intencionalmente o enganei e segui o caminho oposto ao dele.

Ela estreitou os olhos para mim, duvidando.

— Não me importa. – declarou - Eu não tenho mais idade para ficar preocupada com você andando pela cidade sozinho. Entrando em lojas que serão assaltadas e sendo feito refém!

— Não tinha como eu adivinhar que a loja seria assaltada. – recebi seu olhar mordaz. Mas havia mais ali, havia uma preocupação real que me fez sentir culpado. - Ok. – coloquei ambas as mãos sobre seus ombros, e continuei em um tom mais terno. - Eu levarei Diggle comigo, satisfeita?

Minha mãe assentiu, e eu sorri.

Eu poderia lidar com Diggle depois.

***

Usei a gravata azul.

E também não lidei com Diggle.

Meu segurança e motorista particular não estava em seu melhor humor comigo. Quando sugeri que parássemos em uma cafeteria antes do meu compromisso, ele apenas bufou, aumentou o som do jazz antigo que vinha do rádio, cantarolando a canção bem alto, me ignorando. Já tinham se passado semanas, mas ele ainda estava furioso comigo pela pequena escapada que me levou direto a uma loja assaltada. Eu já tinha pedido desculpas. Admiti minha estupidez em andar pelo bairro mais perigoso da cidade, conseguir a façanha de me perder, tudo isso quando meu celular estava sem bateria.

Eu gostava de Diggle.

Eu tinha que gostar dele, considerando que ele era a pessoa mais presente no meu dia a dia, sempre ao meu lado. Ele entendia minha vida. Conversávamos quando eu estava entediado em um evento, ele era cheio de frases de sabedoria ou aquelas próprias para quebrar um clima ruim. No momento, depois de Tommy, ele poderia ser considerado um quase amigo.

Mas eu precisava me lembrar de que Diggle gostava mais do seu emprego do que de ser meu amigo.

Eu não poderia culpá-lo, eu havia quebrado a sua confiança antes.

E era por isso que eu o tinha sério, olhar atento e expressão fechada, seguindo-me a poucos passos de distância pelos corredores vazios de uma inofensiva escola no Glades. Diggle checava cada sala de aula a procura de alguma ameaça. Era sábado à tarde, que ameaça poderia haver em uma maldita escola? Ele esperava que carteiras nos atacassem? Giz e bolinhas de papel voassem em nossas direções?

— É seguro para prosseguir, senhor Queen. – revirei meus olhos e balancei a cabeça após sua última e desnecessária checagem.

O zelador que nos acompanhava até a sala de reunião onde erámos esperados, murmurou algumas poucas palavras e com uma pequena reverência desapareceu. Vi os ombros de Diggle balançarem com o riso abafado, e meu humor apenas ficou pior. Foquei-me em ignorar e fazer o meu papel, sorrindo para as pessoas que se ergueram das cadeiras.

Antes que eu pudesse me apresentar e entrar senti a mão pesada de Diggle batendo em meu peito impedindo-me de fazê-lo. Ele percorreu a diminuta sala de reunião a procura de qualquer ameaça, deixando as pessoas presentes ainda mais desconfortáveis quando começou a fazer algumas perguntas do tipo... “São filiados à alguma organização criminal?” ou “Quem votaram para presidente nas últimas eleições?”. Eu reconhecia que as perguntas padrões para detectar qualquer possível opositor mais extremista. Mas por Deus! Estávamos em uma escola, discutiríamos sobre um projeto de caridade, qual a necessidade de enfiar política nisso?

— Decreto que é seguro, Sr. Queen. – Meneei a cabeça encarando as três outras pessoas na sala parecendo confusas e sem saber como agir meu redor. Lá se foi qualquer tentativa de parecer uma pessoa normal. - Pode entrar. – Dei um passo à frente e sorri amigavelmente, tentando amenizar o clima anterior.

— Me desculpem por isso, o senhor Diggle é muito metódico no que faz. - Parte de mim sentia que ele fazia isso apenas para me aborrecer. E a outra parte, aquela que viu o sorrisinho divertido brincando em seus lábios, e quebrando sua postura séria quando ele se encostou na parede e cruzou os braços, tinha certeza.

— O homem da vez. – uma morena alta tomou a frente e veio em minha direção - Oliver Queen.  – Ela deu uma olhada para Diggle antes de estender a mão hesitante para mim - Eu sou Helena Bertinelli, conversamos por telefone. – assenti - Estes são nossos colaboradores: Lyla Michaels, diretora interina da escola e Ray Palmer professor de física. – Tomei a iniciativa os cumprimentando com um firme aperto de mãos, tentando remover o muro invisível que Diggle havia erguido.

— Eu lamento ter cancelado a reunião anterior. – me desculpei, puxando a cadeira e me sentando. Todos os outros copiaram meu movimento, com exceção de Diggle que permanecia parado a porta, braços cruzados e expressão sisuda, tão austero e formal quanto um soldado britânico.

— Acredito que tinha um bom motivo para isso, senhor Queen. Ou devo lhe chamar de herói?  -  A outra mulher, Lyla, o disse.

— Oh, não. – Rechacei imediatamente, sem conseguir esconder meu desgosto pelo mais novo e nenhum pouco merecido “apelido” que eu ganhara. - Por favor, não me chamem assim.

— Estamos apenas repetindo o que os jornais disseram ao longo das últimas semanas... – Ray lançou um olhar curioso na minha direção, claramente esperando por maiores informações sobre o evento. - Foi incrível. Eu quero dizer, horrível você ter sido feito refém em um assalto no Glades, e que o dono da loja tenha morrido. Mas incrível que você tenha se mantido calmo o suficiente para salvar a vida da mulher que estava com você. –  Foi difícil acompanhar suas palavras que se atropelavam, mas seu rosto, que transbordava expectativa, não foi nenhum pouco difícil de ler.

— Os jornais exageraram. – respondi desconfortável, sem conseguir evitar contrair os lábios em uma careta.  

— Humildade em um candidato, coisa rara de se ver. – senti-me ainda mais nervoso ao receber o olhar de Helena dessa vez, havia algo mais profundo ali que não identifiquei.

Raspei a garganta e desviei daquele olhar.

— Podemos começar? – não queria ser rude, mas queria evitar a todo custo o caminho que esta conversa estava tomando. Eu estava exausto daquele assunto e principalmente das fábulas contadas sobre ele. Mas meu relações públicas tinha me instruído a dar o mínimo de informação, que seria melhor deixá-los fantasiar sobre a coisa. Eu odiava Alex por isso. - Eu recebi apenas um esboço do que fazem aqui, gostaria de saber um pouco mais sobre o projeto. – concentrei-me em mudar o foco da conversa - Como surgiu a ideia? Os investimentos que já recebem e o quais gastos cobrem? Qual o plano de vocês a longo prazo? – Disparei as perguntas na esperança de que pudéssemos ir em direção ao que realmente importava. Se eu terminasse essa reunião um pouco antes do planejado, talvez eu conseguisse convencer meu segurança a me dar um tempo.

— Começamos o projeto há cerca de três meses. – Lyla esclareceu, esticando para mim um folheto simples. Apenas algumas fotos e descrições das atividades oferecidas, dei uma olhada rápida, eu tinha recebido o mesmo folheto no meio de tantos outros, dos mais variados tipos de caridade. Eu gostava desse. Não era chamativo ou apelativo, mas dava para sentir que era real. - Foi ideia da coordenadora do projeto, nossa professora de matemática, que ainda não chegou. – pontuou - Ela nunca se atrasa. – franziu o cenho - Mas creio que podemos iniciar, e te passar as informações mais importantes até que... – Lyla abriu um amplo sorriso - Ah, aqui está ela.

Virei-me na cadeira mais por reflexo do que por curiosidade, meus olhos voltaram-se para a mulher que empurrava a porta, e num impulso me ergui, afastando a cadeira para trás ruidosamente. A minha surpresa devia estar estampada em meu rosto, uma vez que o olhar de Diggle estava em mim tentando entender meu comportamento estranho, mas quando foi para a loira a porta, ele assentiu brevemente fazendo a conexão.

Ele se lembrou dela.

— Senhorita Smoak! – Lyla se ergueu da cadeira e com um sorriso caminhou até a porta. Smoak. Então este era o sobrenome dela. Sorri para mim mesmo, repetindo o nome em minha mente: Felicity Smoak. Gostei. Combinava com ela. – Esta é a idealizadora do projeto. – Percebi tardiamente que estava tão concentrado no rosto dela, em seus olhos grandes escondidos por detrás das lentes dos óculos de grau, na boca cheia e avermelhada ligeiramente aberta cujas palavras estavam presas, sequestradas pela surpresa que era me reencontrar, que quase perdi sua mão estendida em um cumprimento.

Não podiam me culpar.

Ela tinha um belo rosto. Há três semanas eu tive apenas meros vislumbres dela caminhando pela loja, ou de seu rosto assustado tomado pelas sombras. Talvez fosse por isso que eu estivesse tão empenhado em analisar seu rosto, gravar na memória a curva do delicado nariz, nas pequenas e quase imperceptíveis sardas, ou me perder na cor de seus olhos.

— Prazer em conhecê-lo, senhor Queen. – franzi o cenho para suas palavras ditas com um cuidado velado. Já nos conhecíamos. Franzi o cenho ainda mais, ao corresponder ao cumprimento com o balançar de mão, olhando fixamente para seu outro braço imobilizado.

— Seu braço está bom? – Eu me lembrava de enrolar minha gravata no corte para parar o sangramento. Mas não pensei que fosse tão profundo e muito menos que seria necessário uma tipoia, mas mesmo assim quando os policiais chegaram eu me certificara de solicitar primeiros socorros para ela.

Ela estava mais machucada do que eu imaginara?

— Obrigada pela preocupação. – Felicity respondeu, ajeitando os óculos e evitando me olhar nos olhos - Foi apenas um acidente estúpido enquanto eu andava de bicicleta há algumas semanas. – Bicicleta? Do que ela estava falando? Ela se machucou no assalto. Eu vi. Eu estava lá.

— Sente-se aqui. – Me perdi um pouco acompanhando o tal do Ray puxar a cadeira para que ela se sentasse ao seu lado. Um sentimento estranho me beliscou ao ver a troca de sorriso amigáveis entre os dois.

— Obrigada, Ray. – Sentou-se e fiz o mesmo, movendo minha cadeira para um ângulo em que eu pudesse ficar de frente para ela, diferente da reunião do começo do dia, nesta agora eu estava completamente focado. Felicity colocou uma pasta sobre a mesa, retirou alguns papeis de lá e uma caneta vermelha, que incessantemente batucava com a mão livre. Segurei meu riso, eu conhecia bem aquele sinal de impaciência. – Então, devo deduzir que o senhor é a pessoa que gostaria de investir em nosso projeto? – perguntou.

— Quase isso. – Brinquei com meu tom deixando transparecer um leve desinteresse, eu não queria lhe dar nada antes de ter alguma resposta. Meus olhos permaneceram nela, em cada mínimo movimento, tentando entender o porquê de ela fingir que não nos conhecíamos. Investiguei seu tom. Sua postura. Tudo nela em busca de respostas, ou talvez eu só quisesse uma desculpa para olhá-la mesmo.

— Quase? – Seu olhar afiado me atingiu, eu teria me acuado, mas estava ocupado demais sorrindo para a forma em que ela largou a caneta e ajeitou os óculos com a ponta dos dedos. Ela não os usava naquele dia. Descobrir algo novo dela era estupidamente fascinante. Seu nome. Sua profissão. Sua mania de ajeitar os óculos quando está nervosa. - Ainda não tem certeza de que investir dinheiro na capacitação dos jovens e adultos da nossa comunidade é a coisa certa a se fazer, senhor Queen? – peguei o indício de alguma animosidade ali.

— Me chame de Oliver. – Pedi, mas ela me ignorou.

— Bem, senhor Queen— fez questão de frisar meu sobrenome. Isso era divertido. – O que podemos fazer para que tenha certeza? – apertou a caneta com força entre seus dedos e ergueu uma das sobrancelhas.

— Eu não sei, Felicity. – os lábios dela torceram-se em uma careta adorável quando eu disse seu nome, dentro de um pequeno sorriso. Senti um segundo e curioso olhar em mim, mas estava focado demais nela para me importar. - Como pretende me convencer? – Alguém engasgou, e só então percebi todos os olhos em nós.

— Me desculpem.  – Helena, praticamente grasnou. Ruidosamente se serviu de um copo de água os olhos curiosos vindo de mim para Felicity durante o processo, me lembrando de que não estávamos sozinhos. – Não parem por mim. – Ela sorriu, as grossas sobrancelhas escuras emoldurando seus espertos olhos de gato.

Sua diversão durou o espaço de um olhar duro de Felicity, seguido de um barulho que eu conhecia bem.

Alguém estava sendo chutada por debaixo da mesa. E pela ligeira careta de dor, esse alguém era Helena.

Eu queria rir, mas a culpada pelo feito, Felicity, permanecia séria e centrada. Inocente até.

— Eu posso te mostrar um gráfico exponencial de quantas pessoas ajudamos nos últimos três meses desde que começamos o projeto. – Deslizou um papel na minha direção - Também posso mostrar nosso balanço com receitas e despesas, para mostrar como gerenciamos cada investimento. O que temos em caixa no momento. Quanto precisamos para continuar funcionando e nossa perspectiva de crescimento para os próximos doze meses. – mais papeis foram jogados em minha direção, corri os olhos por eles. Finanças não era meu forte, mas ela os havia descrito de forma tão simples e didática que era fácil compreender, o prospecto geral parecia muito bom - Isso é convincente o bastante?

— Alguém veio preparada. – concedi, fazendo-a torcer os lábios para meu elogio.

— Sempre estou.

— Na próxima vez que andar de bicicleta, prepare-se também. – Inclinei meu corpo um pouco mais sobre a mesa e a encarei, percebendo que suas bochechas se tingiram em um tom rosado e não era de vergonha.  - Deve ter sido um tombo muito feio. – estreitei meus olhos - Estava sozinha quando aconteceu? Alguém a socorreu?

— Eu sobrevivi. – me cortou. – Do que mais precisa?

Tantas coisas...

Conversar com você a sós.

Entender porque está mentido e o que está escondendo.

Ou por que eu pareço tão obcecado com jeito que seus dedos movem até seus óculos apenas para ajeitá-los sobre o nariz?

— ...Eu preciso de muitas coisas... – a verdade simplesmente me escapou.

Diggle, meu segurança que conseguia ser mais imperceptível que um espião russo, teve uma crise de tosse.

— Tudo bem aí, Diggle? – Olhei por cima dos ombros, percebendo que o bastardo escondia um sorriso.

— Melhor impossível, senhor. – Por que ele parecia tão entretido? – Continue, responda a senhorita Smoak o que você precisa dela. – Pisquei, voltando a olhá-la. Merda. Eu havia me distraído. Não uma distração qualquer de desejar estar em outro lugar, mas de desejar outra coisa.

— Eu quero entender o que fazem aqui. – a respondi, varrendo para longe aquela estranha vontade de conversar com ela sobre aquele dia. Eu tinha tantas perguntas, mas pela forma que ela agia ao meu redor, algo me dizia que a Felicity que dividiu aquele momento comigo, que se agarrou a mim dentro do armário de uma loja quando estava assustada demais e lutava contra um ataque de pânico, não era a mesma que estava agora a minha frente.

Não havia qualquer indicação nela de que não havia superado o trauma, exceto o fato de que ela fingia de que ele não aconteceu.

— Trabalhamos com crianças, jovens e adultos da comunidade carente, sr. Queen – Lyla nos interrompeu, senti seu olhar mais crítico em minha direção e logo compreendi o porquê ela era a diretora da escola. - Os instruímos desde aulas de reforços à cursos de computação, pratica de esportes, e vários tipos de artes. Fornecemos cuidados básicos da saúde emocional e física, graças aos nossos muitos colaboradores. Os preparamos para o futuro e os ajudamos a conseguir empregos. Oportunidades que jamais teriam sem a base que damos aqui. -  seu tom era ligeiramente ríspido - O senhor leu nossa cartilha de apresentação antes de vir para esta reunião? – Suspirei com sua leve repreensão, me senti voltando a escola e sendo chamado a diretoria por causa das bolinhas de papel que Tommy jogava na professora, e pelas quais eu sempre levava a culpa. Mas dessa vez eu merecia a reprimenda, eu havia me dispersado um pouco por causa de Felicity, e odiava que isso me fizera parecer despreparado.

Foquei-me na diretora e retomei um pouco do controle, me lembrando do porquê eu estava aqui.

— Acho que me expressei mal. – comecei num tom mais conciliatório, tentando recuperar sua simpatia com meu melhor sorriso. Fingi não notar o revirar de olhos de Felicity para ele. - Eu entendo o que fazem, e pelo o que vejo aqui, vocês sabem o que estão fazendo, estão cuidando bem da comunidade, eu apenas quero... – pausei, escolhendo bem minhas palavras – ...Quero conhecer mais de perto o trabalho de vocês.

—  Então, acha que é o que temos é o suficiente para ganharmos seu investimento? – A pergunta veio de Helena.

— Não. – Respondi de pronto. Felicity ergueu os olhos para mim, deixando-me desconfortável.  Ela não parecia apenas decepcionada, mas resignada.

— Como? – O homem ao lado de Felicity franziu o cenho - Mas os números que Felicity apresentou... – notei a forma como a mão dela se moveu até o braço dele, o parando, como se pedisse para não insistir. Ela sequer me conhecia, mas já pensava tão pouco de mim? Isso me frustrava mais do que poderia dizer, e me motivava a provar que ela estava errada.

Eu amava um desafio.

— Eu preciso de mais do que números, Sr. Palmer. – Fui enfático – Eu quero dizer, eu não quero ser mais um número na conta bancária de vocês. – Todos ficaram em silêncio.

— Eu não entendo. – Felicity tinha seus olhos em mim, gostei de vê-la tentar me entender ao invés de apenas me julgar. Isso já era algum progresso.

— Acho que o senhor Queen está dizendo que quer um papel mais ativo no projeto. – Lyla explicou antes que eu o fizesse.

— O quê? Você quer trabalhar com crianças e jovens carentes? – Será que ela notara o próprio tom?

— Por que você faz soar tão errado? – perguntei.

— Não, não é errado. – respondeu com cuidado - É apenas... Inesperado.

Inesperado é bom.

— Eu posso não saber a raiz quadrada de dois mil, novecentos e dezesseis, mas eu posso surpreendê-la, Felicity. - Ela desviou o olhar, mas não foi tão boa em esconder o pequeno sorriso de mim.  - Eu quero fazer a diferença também, como vocês.

— Isso significa que o senhor vai fazer parte do Starling’s Future? ­— a pergunta veio de Lyla.

— Sim.  - Isso definitivamente não estava nos planos iniciais. E minha mãe iria surtar com a minha decisão, mas como ela gostava de dizer “o caráter de um homem se mede pela palavra honrada”, eu não poderia voltar atrás nessa decisão. Na minha decisão. Uma estranha onda de agitação passou por meu corpo, por causa da minha pequena transgressão. - Eu quero contribuir financeiramente e também participar de alguma forma. – respondi, com um sorriso satisfeito dessa vez. - Onde eu assino?

—  Isso é incrível! Irei falar com nosso advogado, podemos passar a documentação para você...

— Aqui. – entreguei meu cartão de apresentações à Lyla - Esse é meu número pessoal, me avise quando a documentação estiver pronta e mandarei alguém busca-la.

— Sim, é um prazer ter você na nossa equipe. – Lyla estendeu a mão selando o acordo, e depois disso todos os outros o fizeram, dizendo palavras de agradecimento e sobre como estavam empolgados para trabalhar comigo.

A reunião chegara ao seu fim. Todos estavam de pé e se preparavam para ir embora, mas Felicity permanecera um pouco mais afastada, se limitando a me dar um breve aceno de cabeça, e a me olhar me medindo. O que era preciso para fazê-la confiar em mim? Eu não estava acostumado com toda essa animosidade gratuita, as pessoas sempre gostavam de mim, ou no mínimo fingiam muito bem.

— ...Entendo que a sua agenda é apertada, mas teremos que verificar qual a sua disponibilidade, e em que parte do projeto o encaixaremos... Felicity é quem distribui e coordena as tarefas e todas as atividades...  – Lyla me acompanhava pelos corredores ainda discutindo o assunto quando uma nova ideia surgiu, me fazendo exibir um amplo sorriso vencedor. - ...O senhor é bom com esportes? – perguntou.

— Razoável no beisebol, péssimo em qualquer outra coisa, sobre isso... – já estávamos no lado de fora da escola quando parei de andar - Se não for incomodo eu gostaria que a Srtª... Smoak me acompanhasse. – Ela literalmente rosnou, e isso me fez sorrir ainda mais - Podemos fazer um tour pela escola enquanto ela fala um pouco mais sobre o projeto, sobre o trabalho que fazem – Lyla assentia, enquanto Felicity mantinha a boca ligeiramente aberta pela surpresa - Eu acho que precisamos visualizar melhor como tudo acontece, para tentar ver o que eu, como pessoa, tenho a oferecer à essas crianças e jovens. E já que ela é a coordenadora de tudo, ela pode me ajudar com isso...

— Isso é ótimo. – Lyla concordou, parecendo feliz com meu entusiasmo – Oh, voltarei num instante, esqueci meu celular na sala. – A diretora se afastou fazendo o caminho de volta.

Eu pude ver Felicity contando mentalmente os passos da diretora, esperando que ela estivesse longe o suficiente para não nos ouvir.

— Senhor Queen, eu não acho que... – Felicity começou a negar.

— Felicity adoraria acompanhá-lo. – Helena literalmente a empurrou para mim, seu ombro chocou-se ao meu. - Agradeço pela generosidade, e espero que este seja o começo de uma longa parceria.  –  sorriu me incentivando - Agora precisamos ir, vem Ray... – disse tomando um confuso Ray pela mão.

— Helena. – Observei com diversão o olhar de uma para a outra, era quase um cabo de guerra feito de olhares. Era óbvio que havia uma estranha amizade ali.

— Oh, quase me esqueci, Felicity. – Helena voltou com um gigantesco sorriso - As chaves. – ela colocou um molho de chave nas mãos de Felicity - Você não vai querer ficar presa com Oliver Queen. – Deu meia volta, e piscou antes de caminhar novamente para a saída.

Felicity apenas respirava apertando fortemente as chaves na sua mão.

Eu sentia seu ódio.

Eu apenas esperava não ser o objeto dele.

— Acho que estamos resolvidos. – Lyla se pronunciou, eu sequer tinha notado seu retorno - Foi um prazer, me desculpe a pressa em ir, meu carro estragou assim que cheguei e ainda preciso conseguir um mecânico antes que anoiteça. O Glades não é um bom lugar para se ficar sozinho a noite.

— Eu posso ajuda-la. – A voz solicita veio de trás de mim. Meu segurança, que até então não tinha sido mais do que um perfeito exemplo de poste com pés, interviu.

— Isso seria ótimo. – Ela sorriu, e notei Diggle estufando o peito. Eu perdi algo? - Meu carro está logo ali no estacionamento. – apontou, caminhando naquela direção.

— Hey, Diggle! – o parei, impedindo-o de seguir a mulher - Pensei que fosse seu dever ficar vinte quatro horas ao meu lado, me protegendo. – ele abriu um largo sorriso, havia riso em seu olhar.

— Meu dever é proteger a sua vida, Sr. Queen. – deu dois tapinhas em minhas costas - Não o seu ego. – sorriu - Além disso, a Srtª Smoak me parece inofensiva, e não era isso o que você queria? – Era. Até eu ter o semblante nada amigável de Felicity na minha direção.

Diggle se foi.

— Parece que somos só nós dois. – voltei-me para ela, com o sorriso mais inofensivo que tinha.  – De novo.

Felicity suspirou.

Seu olhar fazendo o excelente trabalho de evitar o meu.

— Você nos forçou a isso. – franzi o cenho para suas palavras acusadoras, pensei em retrucar dizendo que cinquenta por cento disso era culpa de sua amiga Helena, mas decidi por ser inteligente e apenas a segui pelos corredores da escola depois que ela me dera as costas. Deus! A mulher, mesmo de saltos andava rápido. – Vou te dar uma hora, e então eu vou embora.

— Eu não a estou fazendo refém. – lamentei minha escolha infeliz de palavras no instante que as disse, fazendo Felicity parar.  Aproveitei-me disso para me colocar a sua frente. – Me desculpe usar de um artifício para termos um tempo. Eu só queria conversar com você por um momento, e esta parecia a melhor maneira já que você fingiu que não me conhecia.

— É porque não nos conhecemos, Sr. Queen. – refutou com uma postura altiva, queixo erguido, olhos nos meus pela primeira vez.

— Nos conhecemos sim, Felicity. – segurei o olhar, eu posso ter sido educado para ser um cavalheiro, mas eu não estaria deixando Felicity ganhar essa pequena guerra.

— Bem, eu prefiro fingir que nunca aconteceu. – Ela deu de ombros quebrando nossa conexão, e fez menção de andar novamente, toquei em seu braço levemente fazendo-a parar.

— Por quê? – perguntei. Ela oscilou estremecendo. Não sei dizer se pelo toque ou pela pergunta, mas antes de se virar, ela tomou uma longa respiração como se buscasse por calma.

— Eu preciso mesmo dizer? – havia alguma raiva em suas palavras encobrindo a vulnerabilidade. Eu entendia querer esquecer o medo que ela sentiu, os sons dos tiros, os gritos e a imagem de uma pessoa morta. Eu vivi essa parte com ela, eu também me assustei. Mas eu também testemunhei o quanto estar presa naquele armário a afetou. Mas não entendia sua hostilidade para mim. Eu apenas estive com ela naquele momento, apenas tentei ajudar, tornar aquele momento menos opressor e mais...

— É por causa do beijo? – questionei, e ela apenas piscou dando um passo para trás. O rosto controlado para não mostrar nenhuma emoção, exceto os olhos, estes faiscaram algo feroz.

— Alguém se tem em alta conta. – seu tom foi mordaz, mas não o suficiente para esconder a verdade.

— Por que não disse a ninguém?

— Oh, obviamente eu deveria estar me gabando pelo herdeiro do trono Oliver Queen ter me beijado? – debochou, fazendo algo dentro de mim murchar. Meu ego, percebi. - Provavelmente isso me renderia algumas páginas em uma revista de fofocas. – Ok. Eu lhe daria isto dessa vez.

— Estou falando do assalto. – falei mais calmamente, vendo-a vacilar. O rosto, antes empenhado em não mostrar emoções, por um momento fugaz, mostrou todas. Sobre tudo, medo.— Por que não disse as pessoas sobre o assalto? – Não é o comportamento padrão das pessoas após passar por algo traumático? Desabafar, procurar apoio e conforto? Eu mesmo o fiz.

— Para quê? – Odiei tudo em seu tom. Desde o pouco caso que fez à forma como fingia de que não era nada demais - Eu não estava no clima de bancar a pobre e ingênua jovem que você salvou. – ela sorriu para mim, um sorriso sem qualquer emoção real. – Parabéns, herói.

É, ela tinha vistos os jornais.

Todas aquelas malditas e chamativas manchetes.

Encarei meus próprios pés me sentindo um pouco envergonhado. Eu estava acostumado a ser notícia, mas me ver daquela forma, em todos os lugares como se tivesse feito algo extraordinário e que não era verdade, me fazia sentir uma grande fraude.

— A mídia exagerou.  – respondi ainda sem encará-la.

— Ela parece ter este costume com pessoas como você.

— Como eu? – questionei, ganhando um olhar condescendente.

— Ricos. – disse a palavra como se ela fosse a resposta para tudo. - Vamos, senhor Queen. – passou por mim com o queixo erguido e sem me dispensar um olhar que fosse - Eu não tenho o dia inteiro, tenho coisas a fazer, mas já que vossa alteza real exigiu um tour pela nossa escola...

— E seu braço? – me vi perguntando. Eu queria segurá-la nessa conversa pelo máximo de tempo possível, não sei exatamente o porquê. Talvez eu estivesse entediado, e a perspectiva de voltar para casa, para novas reuniões e jantares de negócios enfadonhos me estressasse, talvez fosse apenas bom matar algum tempo conversando com alguém que não tinha nenhuma expectativa em mim.

— Só precisei de alguns pontos - Ela o tirou da tipoia, esticando-o e virado de um lado para o outro - Novinho em folha, apenas estou deixando-o descansar um pouco mais, afinal, eu sou uma professora e preciso dos dois braços bons se quiser dar conta dos meus alunos...

Não sei porque minhas mãos se colocaram ali.

Não sei porque meus dedos tracejaram a fina cicatriz, avermelhada e alta que descia pelo cotovelo e terminava no punho. Mas sei que nós dois prendemos a respiração quando o fiz.

— Dói? – perguntei. Ainda a tocando. Ainda sentindo a pele suave e quente na minha. Ainda me permitindo estender o toque por mais tempo do que o aceitável.

— Não. – ela puxou o braço para si, recolocando-o na tipoia. Felicity deu um passo para trás, seu olhar receoso se estreitou para mim, piscou algumas vezes antes dela o desviar.  - Vamos.

Felicity não me deu uma nova abertura. Depois dessa conversa, ela foi apenas profissional. Ela realmente me deu um tour pela escola, mostrando as salas de aulas um pouco precárias que recebiam os alunos de segunda a sexta, mas que aos sábados de manhã abriam suas portas para toda a comunidade. Demos uma volta pelo campo de futebol, a grama já vira dias melhores e já não havia demarcação. A quadra coberta não era utilizada porque parte do telhado havia caído no último inverno e a estrutura não era segura para os alunos. Ela me levou por outras salas, onde havia aulas de dança, música, pintura e todo o tipo de arte que eu podia imaginar. Felicity dissera que os professores eram voluntários da própria comunidade, todos ansiosos para dividir um pouco do que sabiam.

Eu ainda não sabia onde me encaixaria, minha única certeza era de que eu precisava fazer parte disto.

Quando chegamos a sala de informática com seus computadores antigos, os olhos de Felicity ganharam vida e ela me explicou como dava cursos a jovens adultos ou pessoas mais velhas também, e como isso as preparava para o mercado de trabalho. A invejei por um momento. Havia tanta paixão em suas palavras, que não havia qualquer dúvida de que ela amava o que fazia. E sequer era paga para fazê-lo. Enquanto eu...

Ela disse que também lecionava a noite, para os alunos mais velhos que estavam tentando voltar para escola.

E enquanto falava, ela, sem perceber mostrava-me um pouco de si. Da professora de matemática que provavelmente era gentil com todos os alunos, mesmo aqueles que mais difíceis, que tentava fazê-los se apaixonar por matemática. Eu pude imaginá-la perfeitamente ajeitado seus óculos e sorrindo para seus alunos enquanto perguntava qual a raiz quadrada de dois mil, novecentos e dezesseis.

— E é isso o que nós fazemos, Sr. Queen. –  já estávamos no corredor que nos levava a saída, Felicity se recostara na parede, e me olhava, em seus lábios um sorriso polido que eu conhecia bem. Eu tinha um desses também, e o odiava. - Você não precisa participar, podemos apenas divulgar que está nos financiando.

Havia mais em suas palavras.

Em seu olhar.

E no maldito sorriso.

Meu coração pesou quando eu percebi que Felicity me oferecia exatamente aquilo que tanto discuti com minha mãe. Eles queriam que eu me envolvesse em alguma caridade porque ficaria bem para o meu currículo. Não bastava os milhões arrecadados em jantares de gala para alguma caridade duvidosa, eu precisava fazer algo pela minha cidade, mostrar que Starling importava mais do que o resto do mundo. Foi assim que o Starling’s Future, a organização de Felicity apareceu, como um nome em uma lista pré-aprovada para doações.

E embora minha mãe achasse que assinar um cheque e tirar algumas fotos em frente a escola com crianças sorridentes resolveria qualquer questão, eu queria mais. Eu não tinha percebido isso, não até estar com Felicity, não até ver o quanto este lugar parecia importante para ela, o quanto de si mesma ela colocava aqui. Ela tinha um propósito, e eu queria um também.

— Eu quero ajudar também. – disse por fim.

— Tão teimoso. – Ela reclamou e desencostou da parede, retendo um suspiro aborrecido. – Hora de irmos embora. – Anunciou liderando o caminho para a saída, a porta já estava aberta. Dessa vez não a segui, mantive-me parado no meio do corredor.

— Por que você não gosta de mim? - A escutei bufar, seus passos batendo mais firmes fazendo os saltos ecoarem com batidas ritmadas no assoalho. O cabelo preso no alto rabo de cavalo balançando de um lado para o outro assim como seus quadris, enquanto ela aumentava a distância entre nós me dando às costas. Era hipnotizante. E por mais que eu gostasse dessa visão, o que era normal considerando que Felicity era linda, eu odiava vê-la caminhando para longe, o que não fazia sentido já que ela não era minha.— Eu beijo assim tão mal? – perguntei à queima roupa, sabendo que acertaria num ponto sensível.

O som dos saltos cessou.

O corpo delgado se tornou rígido por meio segundo antes de Felicity girar sobre seus pés me encarando.

Sua respiração suspensa.

Eu esperava ver aquele ar professoral novamente, e havia um pouco dele ali. Exceto, que não era a doce e cordata professora. Mas aquela pronta para me mandar direto para a diretoria.

Ela caminhou furiosa de volta para mim.

Felicity era bons vinte centímetros mais baixa do que eu, com saltos. E ainda assim, nada em sua postura mostrava qualquer indício de intimidação. Ela apenas ergueu o queixo e aqueles olhos para mim.

— Eu estou no meu local de trabalho agora e isso exige de mim alguma compostura, mas deixo claro que eu posso enumerar um milhão de motivos para não gostar de você, Queen! – Eu deveria ter um desejo de morte, porque meu sorriso se alargou quando ela disse meu nome. Ok. Tecnicamente era meu sobrenome, mas já era um avanço. Ela tinha me chamado de coisas piores.

Com um pouco mais de tempo, eu a teria me chamando de Ollie.

— Uau.  – Não me deixei intimidar. Ergui meu corpo, e diminui a distância, desafiando-a a se afastar novamente. - Vou facilitar, me dê apenas três.

— Três o quê? – pareceu confusa.

— Três motivos para não gostar de mim. – elucidei, notando com certa satisfação seus lábios vermelhos ligeiramente abertos num “o” de surpresa. Felicity não parecia tão mais segura.

Ou pelo menos pensei assim.

Deveria fazer uma nota metal: essa garota sempre me surpreendia.

— Você é arrogante. – Seu tom veio cortante e ela elevou o dedo indicador quase na minha cara - Você é um traidor. – Mais um dedo se ergueu, e apertei minhas mãos, protestando contra a palavra feia.  - E... -  Ela hesitou. Por longos cinco segundos eu vi seu rosto, tão expressivo, e seu raciocínio rápido vacilar – E... você nunca leu Harry Potter! – Meu sorriso veio largo e fácil.

— Bom. – conclui – Eu posso te fazer mudar de ideia sobre os dois primeiros, e Harry Potter acabou de pular para o topo da minha lista de leitura. – Walter não ficaria feliz comigo ao trocar a arte da guerra por literatura fantástica - Mas fico extasiado que meu beijo não é um dos seus motivos.

Ela piscou, dando um passo para atrás, notando seu lapso.

— Me pergunto se sua namorada também ficaria extasiada com isso. – peguei algo ali que me fez sorrir um pouco mais. Algo me dizia que isto era a fonte de toda a hostilidade dela.

— Ciúmes, Smoak? – ela apertou os olhos, a mão livre subiu até os óculos os afastando enquanto dedos acariciavam as têmporas.

— Por que você parece sentir tanto prazer em me atormentar? – ela estava séria, e percebi que talvez eu tenha ido um pouco longe demais. Eu não deveria ter trazido o beijo a conversa, não quando ela estava certa e eu...

— Me desculpe. – Coloquei ambas as mãos dentro dos bolsos, impedindo-as de qualquer ato estúpido. – Acho que me empolguei. – dei-lhe um tímido sorriso – É que eu nunca consigo ser assim.

— Um idiota? Fico surpresa, pensei que fosse seu status quo. - eu estranhamente ri. Eu deveria apresenta-la a Tommy, ela faria milagres pelo ego gigante do meu melhor amigo. Exceto que.... Senti um leve aperto em meu peito, um eco de um protesto. Varri logo aquele pensamento estúpido de bancar o cúpido, mas a estranha sensação permaneceu.

— Eu vou aceitar isso dessa vez, mas apenas porque você não me conhece bem, e porque foi um pouco engraçado. – ela quase sorriu - Eu nunca tenho a liberdade de ser ... – eu mesmo? Uau. A verdade veio como um tapa na minha cara, mas eu não podia fazer muito a respeito dela. Era o que era.— ... Ser alguém diferente de quem devo ser. Às vezes cada passo que dou, cada palavra que sai da minha boca, mais parece um roteiro bem ensaiado de um filme, não o que eu realmente quero ou penso....

— Pobre menino rico em sua gaiola de ouro...

— É disso o que estou falando! – apontei me sentindo revigorado - Acho que nunca recebi um insulto na minha vida! – Eu recebi muitos elogios na minha vida, mesmo quando eu estava claramente errado, eu era parabenizado, as pessoas concordavam comigo e me elogiavam. Era difícil separar o que era verdadeiro do que era falso, depois de um tempo eu apenas desisti.

— Você quer ser insultado? – ela não compreendeu. – É algum fetiche masoquista?

Talvez.

— Não, eu apenas quero a verdade.

—  Políticos e verdades não se dão muito bem. – Eu sorri. Eu gostava de sua honestidade, da forma como não escondia seu desdém pela minha profissão, pelo meu mundo. – Acho que está na profissão errada...

— Então me ajude a fazê-la certa, Felicity. – Ela piscou surpresa. Eu mesmo me surpreendi com o que pedia. Mas continuei, porque pela primeira vez, eu senti que estava seguindo pelo caminho certo. - Eu sei o que pensa, que isso é apenas um golpe de um futuro candidato, que uma vez que eu consiga o que quero eu irei dar as costas a tudo isso, mas eu realmente quero fazer mais. Não porque é o esperado de mim, mas porque eu quero.

Não notei que havíamos nos aproximado, mas estávamos agora a um palmo de distância um do outro. Ela seria capaz de ver a sinceridade em meus olhos? De sentir o entusiasmo em mim? O quanto eu queria isto?

— Felicity... – disse seu nome, mais porque gostava das sílabas dançando em minha língua do que por ter um propósito para isso. Não sei porque, mas minha mão se arriscou a tocar a dela. Nada muito radical, apenas um leve roçar dos meus dedos nas costas da mão dela, apenas para ter um lembrete de como era tocá-la.

— Nosso horário acabou. – se afastou puxando a mão para si - Eu te prometi uma hora do meu tempo e eu o dei. – Felicity passou por mim indo até a porta, sem me despender um novo olhar. - Hora de voltar para o seu castelo, Sr. Queen.

Eu não era uma criança mimada que não estava acostumada a perder. Essa foi uma lição valiosa ensinada pelo meu pai quando eu ainda era pequeno, eu era um bom perdedor. Eu aceitava que muitas vezes eu encontraria um adversário mais forte ou mais preparado do que eu, e que perder não era uma falha minha, era apenas mais mérito do outro. Eu sempre parabenizei meus adversários, feliz pelo esforço deles. Mas eu nunca tinha me sentido assim, triste, por perder algo que sequer sabia que queria tanto.

Escutei um alto suspiro.

— Você tem uma bela carinha de cachorro perdido, não é à toa que está a frentes nas pesquisas. -  Felicity tinha dado meia volta e dessa vez segurava um sorriso doce, me senti revigorado. Eu ainda não tinha recebido este dela. - Eu provavelmente vou me arrepender disso. – fechou os olhos por um instante e respirou fundo. - Te vejo no próximo sábado às nove da manhã.

Eu não sabia que podia sorrir tanto até ouvir suas palavras.

— Temos um encontro. – anunciei fazendo-a fechar a cara em uma carranca.

— Isso não é um encontro, Queen. – bateu o pé firmemente.

— Não se atrase para o nosso encontro, Smoak. – falei, e ela apenas revirou seus olhos.

— Já estou me arrependendo. – Lançando-me um pequeno aceno de adeus com a mão, ela começou a caminhar para longe de mim, para a rua, e estranhamente me vi correndo em sua direção, até alcança-la e caminhar ao seu lado.

Moira Queen teria uma sincope se me visse caminhando ao entardecer por uma rua quase deserta do Glades. O que posso dizer? Liberdade estava se tornando um pequeno vício para mim, e algo me dizia que esta seria a primeira de muitas transgressões.

Mas o que os olhos da minha mãe não veem, o coração dela não sente.

— Quer uma carona? – Ofereci à Felicity. Eu ainda não estava pronto para me despedir.

— Na sua limusine? – ela ergueu uma das sobrancelhas, me fazendo sorrir.

— Claro que não. – vetei o absurdo - A limusine está sendo lavada hoje, e só a usamos em eventos oficiais. – Ela parou, me encarando com os lábios ligeiramente abertos. – Hoje estou com a minha Lamborghini.

— Você não está brincando. – Encarou meu rosto sério.

— Claro que estou. – Quebrei a expressão num riso - Estou ansioso para conhecê-la melhor, Felicity. – Deixei escapar. Mas não me importei, essa era a verdade. Apenas de estar ao lado dela, eu já sentia que retomava um pouco do controle de mim mesmo.

— Eu sinto que já o conheço o suficiente, senhor Queen. – Eu teria me incomodado com o uso do senhor, pensei que havíamos feito algum progresso. Mas quando vi seu pequeno riso contido, eu soube que ela me chamava assim apenas para me irritar.

Me enchi de entusiasmo.

Isso daria muito certo.

— Entendo porque pensa assim. – novamente me vi sem controle de mim mesmo, e um sorriso se escorregou em meus lábios, caminhei um pouco mais para perto dela, meus braços roçando os dela.  - Sua língua esteve na minha boca antes mesmo de saber meu nome.

Ela abriu a boca e então a fechou.

Sem nenhuma resposta esperta dessa vez.

— Obrigada por lembrar porque devo dizer não à caronas de estranhos. – concedeu-me – Até semana que vem, senhor Queen.

Felicity se afastou e dessa vez não a segui, apenas me encostei no carro parado a calçada enquanto a observava.

— Então ela não está indo conosco? - Olhei para o meu lado, para o vidro do carro preto que descia revelando um sorridente John Diggle.

— Está aí parado há muito tempo? – inspecionei.

— O suficiente para me divertir. -  Yep. Ele tinha ouvido a coisa toda. Bem que eu achei estranho o sumiço do meu guarda costas... - Entre, sua mãe já me ligou três vezes. – Assenti, entrando no carro, mas ignorando a informação que ele me deu. Queria um minuto a mais para fingir que eu não era Oliver Queen, filho do falecido ex-senador, que fazia sua estreia política para a prefeitura da sua cidade natal e que tinha uma chata agenda a cumprir.

Coloquei meu cinto e bufei frustrado. Ainda faltavam sete dias para sábado.

— Tem algo a dizer, Dig? – perguntei ao perceber seu olhar pelo retrovisor, ele tinha um daqueles raros sorrisos no rosto.

— Eu gosto dessa garota. – sorri para seu comentário, seus sentimentos tão claros para um garota que ele mal conhecia, e mais uma vez, como tinha sido me ensinado, escondi os meus, deixando-os presos apenas naqueles pensamentos.

É.

Eu também gosto dela.

Muito.

Abaixei o vidro e segui olhando para sua silhueta desaparecendo a meia luz do anoitecer. Ela caminhava tranquilamente sem se importar com as pequenas gotas de chuva que começavam a cair. Seu rabo de cavalo balançando de um lado para o outro, atormentando-me.

O carro começou a andar, e sua figura se tornou mais distante e difusa, porém nem mesmo assim desviei meu olhar.

Havia algo de especial nela.

Voltei a sorrir.

— Se nos apressarmos conseguiremos pegar sua namorada no aeroporto. – Diggle chamou minha atenção.

— Como? – pisquei, tentando assimilar sobre o que Diggle falava.

— Sua namorada chega hoje de viagem. – Voltei meus olhos para a janela, mas Felicity já havia desaparecido, deixando apenas aquela estranha vacância em meu peito, e um sentimento um pouco amargo que me dizia que meu flerte com a liberdade chegava ao final. - O que vai ser? Casa ou Aeroporto?

De volta a vida real.

Recolhi meu sorriso.

— Vamos para o aeroporto, - disse a Diggle - Laurel vai gostar da surpresa.

 


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Notas finais do capítulo

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