Queen of Hearts escrita por Luna Lovegood


Capítulo 2
Capítulo 1 - Take my hand


Notas iniciais do capítulo

Hello :)

Tô me sentindo um pouco tristinha e entediada, então decidi dividir esse capítulo na esperança de que vocês preencham meu dia com algo positivo.

Espero que gostem!



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Take my heart and take my hand 

Like an ocean takes the dirty sands 

And heal, heal 

Heal me 

(Heal – Tom Odell) 

Felicity Smoak

Eu odeio política.                                          

Não necessariamente política em si, eu adoro uma boa e sensata conversa, que se baseia em fatos e argumentos racionais, não em achismos bem elaborados o suficiente para esconderem um falso e deteriorado moralismo, tão típicos de pessoas de mente pequena e egos grandes demais. Mas a politicagem... Eu simplesmente nunca tive a menor paciência para toda a falsidade, manipulações e jogos mentais envolvidos.

É triste de ver o quão longe o ser humano é capaz de ir, de machucar, de disseminar o ódio e de destruir apenas por um pouco de poder.

Eu nunca entenderei o apelo.

Do que vale poder, dinheiro ou fama, se tudo o que precisamos no fim de um dia árduo, é de um sono tranquilo, consequência de uma consciência limpa e de um coração leve?

Obviamente existem pessoas boas que tentam fazer a coisa certa, mas no mundo de hoje está cada dia mais difícil separar o que é real de uma atuação bem elaborada, feita unicamente com o viés de chamar a atenção e manipular. E por causa disso toda boa ação deve perder seu valor? Como identificar a intenção por trás de uma ação? As pessoas devem ser julgadas por seus atos, ou por suas razões escusas?

Balancei minha cabeça e apertei meus lábios segurando um bufo, voltando os meus olhos, agora ainda mais irritada do que antes, para o motivo que me fizera entrar nessa discussão político-sociológico comigo mesma no meio do dia.

A imagem se repetia em todos os televisores da loja, desafiando-me. O homem dava um sorriso lindo, mas perfeitamente ensaiado para a câmera e falava alguma coisa sobre a importância de nos unirmos. Suas palavras eram belas, porém já tinham sido tantas vezes repetidas em vão por outros, que perderam seu valor. Gostaria de ter o homem real a minha frente, confrontar seus pensamentos e perguntar-lhe o que era necessário para fazê-lo sorrir de verdade. Era provável que não soubesse. Desliguei meu cérebro naquele momento, apenas analisando suas feições e a falta daquele “algo mais” que me incomodava tanto, então a câmera cortou para o outro homem, seu concorrente ainda que não oficialmente, que sorriu livremente e rebateu sua fala com desenvoltura e algum deboche.

Me fez quase sorrir.

Se fosse uma questão de conexão imediata, eu votaria nele, apenas porque seu sorriso, apesar de ser cínico, era honesto.

Permaneci encarando a tv ao ver a foto dos dois homens colocada lado a lado, comparando os traços masculinos bem marcados, os ternos bem alinhados que não escondiam os corpos tonificados por baixo e os pequenos detalhes que mostravam as grandes diferenças. Pelo pouco que ouvi de Helena, um dos candidatos tinha sido moldado para isso desde que nascera, como um herdeiro que finalmente chegara a idade de assumir seu trono. O outro por sua vez, vinha de uma carreira de destaque como promotor de justiça, e estava disposto a trocar as disputas nos tribunais pelo escritório da prefeitura. E enquanto a apresentadora falava sobre nossas opções, tudo o que eu conseguia pensar é que este deveria ser um concurso de beleza, e não uma corrida pela prefeitura de Starling City.

No quesito charme ambos estavam empatados para mim, embora em um deles eu pudesse ver certa malícia enquanto no outro seu sorriso belo me fizesse lembrar de um príncipe encantado da Disney. Perfeito até demais. Era como o ensino médio outra vez, tendo que escolher entre o badboy sarcástico, mas de coração sensível e o lindo e doce capitão do time de futebol.

Me lembrei de que eu mesma nunca me importei com qualquer dos dois tipos, e nenhum deles era realmente como se mostrava. Como minha mãe sempre me dizia depois de uma noite perturbadoramente ruim... “As pessoas raramente mostram quem são de verdade, Felicity. Nunca sabemos quem se esconde atrás de um sorriso encantador, eles podem parecer príncipes, mas isso é apenas porque não conseguimos ver os caninos do lobo mal. Até conhecermos verdadeiramente o coração de alguém, não estamos seguras.”

Hoje eu sei que ela estava sendo superprotetora e jogando seus próprios medos em uma garotinha facilmente impressionável. Mas não estava totalmente errada, lobos gostam de se fantasiar de cordeiros, e ninguém é capaz de ver o ataque até que seja tarde demais. E a beleza em se ter uma equipe de relações públicas eficiente, é que são capazes de transformar qualquer um em um inofensivo cordeiro, vender qualquer coisa, principalmente coisas que as pessoas pensam que precisam.

E no momento, o povo de Starling City parecia achar que precisava de um prefeito bonitão.

Não vou negar, pelo menos as capas dos jornais seriam atrativas.

Dei as costas para a loja e suas dezenas de tevês exibindo o mesmo rosto com o mesmo sorriso ensaiado outra vez, segui meu caminho pela calçada voltando a me concentrar em algo mais importante para o momento.

E no momento eu precisava urgentemente de um celular novo.

E principalmente precisava pensar em uma boa desculpa para minha mãe, para quando ela perguntasse o que aconteceu com o antigo. Eu não era boa em mentir e tinha um histórico comprovando que mentir para Donna era uma péssima ideia, eu não poderia dizer que me furtaram.

Pela terceira vez.

No mês.

Isso mandaria Donna Smoak direto de Las Vegas até mim, para me convencer a voltar para casa. E seria muito mais difícil lidar com minha mãe controlando minha vida, do que com os trombadinhas que vivem à espreita nas ruas escuras do Glades, sempre prontos para puxarem minha bolsa.

Dei uma olhada rápida em meu relógio de pulso e virei a esquina com passos apressados já conhecendo bem o caminho que eu seguia, eu ainda tinha uma reunião na escola dali poucos minutos, e se eu queria comprar meu celular novo antes de ter a chance de tê-lo sendo tirado de mim novamente, era melhor eu me apressar.

— Oi, Cayden. – o cumprimentei assim que empurrei a porta de vidro da pequena loja, fazendo o sininho tilintar.

— Tomaram seu celular novamente? - Ele não mudou sua postura, apenas ergueu um olhar cansado por trás do balcão.

— Dessa vez eu deixei que levassem. – pisquei para ele, que demorou a entender a piada e se esforçou para sorrir gentilmente, mas trejeitos sociais não eram muito com o dono da loja. Eu morava aqui há poucos meses, mas meses o suficiente para saber que nem tudo o que Cayden James vendia, se resumia à celulares. – Sabem como dizem, o terceiro é para sempre.

— Já conhece o caminho, querida.— me indicou com poucas e tediosas palavras o fundo da loja onde todos os celulares ficavam expostos com seus preços e informações.  Escutei o som do sino da porta novamente, e tomei meu tempo sabendo que Cayden iria atender o novo cliente antes de me perguntar se eu já havia me decidido.

Passeei pelo corredor deslizando os dedos pelas prateleiras com outros diversos itens eletrônicos amontoados sem nenhuma organização, meu lado prático desejando reorganizar a bagunça de um jeito funcional. Soltei um riso sem humor ao ver um folhetim de propaganda eleitoral, bem ali, preso entre carregadores de celulares e pilhas alcalinas.

Isso é perseguição.

— Você de novo? – Peguei o papel em minhas mãos fazendo beicinho enquanto analisava novamente o homem, dessa vez com os braços cruzados e uma expressão confiante nos olhos. – Até que você é fofo, pena que sorri demais. Quer me convencer a votar em você ou me vender pasta dental? – Questionei como se esperasse uma resposta, mas tudo o que obtive foi um pigarrear há poucos passos de mim.

Ops, fui pega!

Não encarei a pessoa que provavelmente me achava maluca por conversar com a imagem de um homem em um pedaço de papel. Ao invés disso o amassei com vontade escondendo o rosto sorridente que agora zombava de mim, tentei acertar a lixeira próxima, mas o papel apenas bateu na borda caindo ao chão.

Não me incomodei em recolher.

Talvez o medo da minha mãe estivesse se concretizando. Starling City estava começando a me guiar pelo mau caminho.

Continuei caminhando até o expositor com os celulares, olhei por cima dos ombros espiando o homem que provavelmente me achava louca. Ele estava de costas para mim, usando um casaco comprido e boné de um time de beisebol qualquer, parecendo concentrado demais escolhendo um carregador, eu teria apreciado um pouco mais a visão de suas costas largas, se os mais novos clientes não chamassem a minha atenção.

Dois rapazes entraram na loja, com seus moletons, mãos dentro dos bolsos e capuzes sobre a cabeça, um deles franziu o cenho para mim, parecendo esforçar-se para lembrar de onde me conhecia, mas o outro deu-lhe um tampinha em suas costas chamando sua atenção, este assentiu e seguiram em direções opostas.

Um deles veio até mim, educadamente me perguntando sobre o dono e notei que Cayden não estava mais no balcão. Disse-lhe para apenas aguardar, que provavelmente ele não demoraria.

Me forcei a concentrar em escolher um celular, na tentativa de varrer aqueles olhos conhecidos da minha mente.

Mas mal tive tempo para isso.

Em um instante eu estava lendo as especificações do modelo, e no outro o som de disparos, prateleiras sendo derrubadas e vidro se quebrando ao espatifar-se ao chão, sobrepunha-se a tudo. Instintivamente me abaixei ao chão, o coração palpitando tão rapidamente que era difícil assimilar o que estava acontecendo. Elevei as mãos trêmulas para os ouvidos, quando novas explosões aconteceram. Eles haviam atirado nas luzes e agora anunciavam o assalto. Gritavam coisas que eu não compreendia com Cayden, mas não direcionei meus olhos naquela direção. Eu sabia que estavam do outro lado da loja, por isso me arrastei, ainda abaixada e protegida pelas poucas prateleiras que ainda estavam em pé, me ergui rapidamente e tentei correr em direção a porta.

Eu não tinha visto o terceiro homem guardando a porta.

Enquanto aqueles que assaltavam, pareciam jovens, o que estava na porta parecia mais velho com o porte de uma verdadeira muralha.

Eu parei de respirar quando sua mão agarrou fortemente meu braço, ele disse algo, mas o pânico não permitiu que eu compreendesse. Ele me sacudiu repetindo o que parecia ser uma pergunta. Novamente não disse nada, ergui meu rosto para o dele que estava parcialmente coberto, mas ainda assim olhos negros evidenciavam sua impaciência. Varri meu cérebro em busca de uma saída, mas tudo o que encontrei foi o medo que me impedia de pensar e traduzia-se em lágrimas que escorriam livremente por meu rosto.

— Ela é só uma garota! – escutei a voz do homem mais firme e forte atrás de mim, não assimilei de imediato o que acontecia, apenas senti a pressão que me tirava daqueles braços, fazendo-me cair para trás e bater o braço contra algo, percebi que ele se colocava a minha frente enquanto enfrentava o homem de olhos escuros.  – Deixe-a ir, ela não tem nada a ver com isto. – pediu.

Suas palavras ecoavam um pedido, mas sua voz não pedia nada.

Exigia.

— Eu estou no controle aqui, cara. – retirou a arma escondida as suas costas, no cós da calça, comprovando seu ponto. – Vire-se, docinho— apontou a arma para meu rosto, meu corpo inteiro se tornou frio e imediatamente fechei meus olhos o obedecendo.

Quando o metal frio da arma tocou minha nuca, ele nos disse para andar e não olhar para trás, eu soube que era o fim. Senti a mão do estranho que a pouco tentara me defender procurando pela minha, deixei que nossos dedos se entrelaçassem e o segurei fortemente a mim. Se eu iria morrer, era ao menos reconfortante sentir um pouco de calor humano e saber que eu não estava sozinha.

Fomos empurrados até o fundo da loja, e eu sequer respirei. Nem mesmo depois que escutei o clique da porta sendo trancada atrás de nós, e o som dos passos se afastando, eu me atrevi a soltá-lo ou a abrir meus olhos.

— Você está bem? – a respiração quente do desconhecido flutuou entre nós, batendo em meu rosto frio. Balancei a cabeça, lhe dando uma reposta afirmativa. Apenas quando abri meus olhos e notei a escuridão que nos engolia, percebi que o estranho não seria capaz de me enxergar.

— Estou. – a palavra raspou em minha garganta, saindo com dificuldade. Senti sua mão apertando a minha, lembrando-me de que não estava sozinha. Não estava certo. Eu tinha aprendido a ser o tipo de garota que se cuida e não se apega ao conforto de alguém.

Soltei-lhe a mão, apenas para provar-lhe que eu era forte.

Esse foi meu primeiro erro.

Meu segundo erro foi me afastar e tentar tatear as paredes procurado por uma janela que pudesse funcionar como saída, mas fui contemplada com a parede centímetros atrás de mim e ao meu lado, e podia apostar também que havia outra atrás do estranho também.

Todas perto demais.

— Onde estamos? – perguntei, tentando ignorar o aperto crescente no meu peito, e aquela ânsia de inspirar todo o ar antes que ele acabasse.

— Acho que é um armário de vassouras. – apaguei suas palavras no instante em que ele as disse. Qualquer lugar seria melhor que um maldito armário de vassouras, apertei meus olhos e me imaginei deitada sobre a grama orvalhada de um amplo campo de futebol. – Como Harry Potter.

— Harry Potter estava no armário debaixo da escada. – O corrigi. Não que fizesse diferença, em todos os casos eram armários e eram pequenos.

— Ok, eu nunca li os livros de qualquer forma. – Me concentrei em respirar e tentar ignorá-lo, ao invés de falar sobre o sacrilégio que era nunca ter lido Harry Potter - Você tem um celular? Talvez possamos ligar para a polícia sem que eles nos escutem.

“Eles” ainda estavam perto o suficiente, eu escutava as vozes urgentes, coisas sendo arrastadas, e embora não entendesse o que diziam, pareciam fazer perguntas ao Cayden. Eu não entendia muito de assaltos, mas aquele não parecia muito normal.

— Sem celular. -  suspirei, pensando na minha sorte. Não bastava o furto de mais cedo, eu também precisava entrar na loja quando estava prestes a ser assaltada. - Entrei na loja para comprar um novo. – expliquei - E você?

— Sem bateria. – o estranho disse - Entrei para comprar um carregador e na esperança de que o dono me deixasse carregar aqui por um tempo, eu precisava ligar para o meu... – ele hesitou, e ao completar a frase pareceu um pouco reticente – ...amigo, antes que ele me matasse por sumir. Não que vá fazer diferença agora, ele não pode matar um cadáver. – suguei o ar todo a minha volta me sentindo doente.

— Maravilha. – Encostei minhas costas na parede e me deixei escorregar para o chão, os pés tocando a parede ao fundo, as pernas ficando dobradas deixando-me ainda mais ciente do espaço pequeno. Bati meu braço na parede ao meu lado e quando o puxei de volta percebi que além de dolorido, estava úmido. – Acho que este lugar está com algum vazamento, espero que não tenha mofo ou... – Parei de tagarelar ao sentir que o estranho havia se sentado ao meu lado, nossas pernas se esbarrando. – O que está fazendo?

— Tem certeza de que está bem? – A voz era suave e condescendente. Agradeci pela escuridão que o impedia de ver o quão mal eu realmente estava.

— Eu só preciso respirar. – disse a mim mesma, apertando as mãos e para tentar parar o formigamento que começava nas pontas dos dedos e fazia meus braços doerem.

— Você tem claustrofobia? – o estranho perguntou.

— Não. – refutei rápido demais - Eu só não gosto da sensação de estar presa em um lugar pequeno.

Claustrofobia. – Eu podia não enxergá-lo, mas tinha certeza de que havia um pequeno e convencido sorriso crescendo em seus lábios. Idiota.

— Você é psicólogo ou o quê? – devolvi irritadiça, mas me vi me agarrando aquela pequena discussão tola, desejando estendê-la apenas para ignorar que estávamos presos. Me concentrei em sua voz para não me concentrar nos sons assustadores do outro lado da parede - Não tem nada melhor para fazer ao invés de me analisar? Podia usar seus músculos para nós tirar daqui.

— Como sabe que sou forte? – pensei nos ombros largos que vi tão rapidamente, no seu aperto firme e de como ele havia empurrado meu agressor, que tinha o dobro do meu tamanho, com facilidade e se interpôs entre nós.

— Porque não é muito inteligente... – o provoquei.

— Também não pode afirmar isso. – o tom levemente rancoroso me disse que eu havia atingido um ponto sensível, mas não me importava muito. Eu precisava dessa distração, mais do que precisava de oxigênio.

— Me diga qual a raiz quadrada de dois mil, novecentos e dezesseis? – Cruzei meus braços, esperando por sua resposta e contive um gemido de dor com o movimento.

— Acha que sou uma calculadora humana? – retrucou – Ninguém sabe isso de cabeça.

Cinquenta e quatro.  – respondi lançando-nos em um longo silêncio. Quase ri, sabendo que isso significava que ele estava tentando verificar a minha resposta.

— Me diga então quanto é treze vezes quatrocentos e trinta e um. – desafiou-me.

— Fácil demais. – menosprezei num dar de ombros - Cinco mil, seiscentos e três. – Não demorei nem meio segundo para responder.

— Quando eu tiver uma calculadora, eu irei verificar se você está me enganando. – sorri, apenas imaginando a surpresa no rosto do desconhecido. Algumas pessoas amam cozinhar. Outras tem talento para escrever, pintar, cantar ou eram boas em esportes. Eu era péssima em tudo isso. Exceto em números, eu amava a constância, amava que não importa o quanto tudo mudasse a minha volta, eles nunca mudavam. Eram sólidos. – Mas só porque eu não sou um gênio em matemática, não quer dizer que não sou inteligente. – Ele tinha um ponto, mas eu apreciava demais a distração da nossa pequena discussão para abrir mão dela cedendo assim tão fácil.

— Acho que se fosse inteligente estaria pensando em um modo de nos tirar daqui. – meu estômago revirou, a bile subindo até a garganta e tive que me lembrar de respirar pontualmente mais uma vez.

— É o que está fazendo, princesa? – torci o nariz para seu elogio revestido de ofensa, eu era tudo menos uma fodida princesa - Pensei que estivéssemos apenas em jogos matemáticos.

— Não me chame de princesa! – exclamei mais alto do que deveria, levei a mão a boca contraindo todo o meu corpo com medo, assim que senti algo batendo do outro lado da parede e gritando para que eu calasse a boca ou as coisas não ficariam bonitas. Eu quase me esqueci de onde estávamos. – Merda.

Abaixei a cabeça contra os joelhos quando senti o estômago embrulhar novamente, um leve zumbido em meu ouvido alertando-me de que eu precisava voltar a respirar calma e fluidamente, ou não duraria muito.

Houve uma leve batida de um ombro contra o meu.

— Eu a chamaria de Barbie, mas você não tem a altura para isso. – Seu tom era leve e propositalmente implicante. Não pensei, apenas agi, movendo o punho na direção de onde imaginava estar seu corpo.

— Aí. -  imediatamente gemi tensionando todo o meu corpo, a dor no braço, que antes eu havia ignorado, parecia ter se irradiado por ele inteiro e se tornando ainda maior.

— Você está ferida? – ele agarrou o punho que o acertou com as duas mãos e manteve meu braço esticado, dedos suaves subiram pelo braço tocando a área que ia do pulso até a dobra do cotovelo, e só agora eu percebia que latejava muito. – Você está sangrando. – escutei sua pausa enquanto engolia em seco - Foi atingida? Atiraram em sua direção?

— Não. – forcei a mente a voltar para aquele instante - Eu me lembro de esbarrar em algo quando você se colocou entre mim e o brutamontes, mas honestamente, eu só senti a dor agora.

— Me desculpe por isso. – Falou docemente. Revirei os olhos para suas desculpas, não era culpa dele, o estranho tinha apenas tentado me ajudar – Provavelmente você estava em choque, a adrenalina no seu sangue aumentou e inibiu a sensação de dor, agora que seu corpo está parado, teve tempo para se concentrar nisso.

Eu não poderia continuar a chamá-lo de burro depois disso.

— Me deixe dar um jeito. – pediu.

— Você é médico? – ele riu baixinho, como se a ideia o divertisse.

— Posso não ter uma calculadora na minha cabeça, mas tenho mãos leves e sei como enfaixar um machucado para parar de sangrar. Não é preciso muita inteligência para isso.

— Desculpe-me. – mas ele não pareceu se importar com meu pedido, agiu como se não tivesse importância - E obrigada. – agradeci, dessa vez obtendo uma resposta eloquente.

— Não me agradeça ainda, precisará de um médico de verdade para quando sairmos daqui. – assenti tolamente me esquecendo de que ainda estávamos no escuro e meu gesto seria perdido - O corte parece grande, porém não muito profundo, mas ainda assim pode infeccionar se não for limpo direito e pode precisar de pontos. –  Estremeci diante da ideia de agulhas. Mas o estranho não pareceu notar meu medo, se ajeitou ao meu lado e pelos movimentos pareceu retirar o casaco primeiro e arregaçar as mangas da camisa, esticando meu braço sobre seus joelhos.

Me vi presa em seus toques metódicos.

Primeiro ele havia usado algo suave para limpar o excesso de sangue, depois reclamou consigo mesmo sobre não termos álcool ou no mínimo água fresca, no instante seguinte suas mãos se concentravam em enrolar meu ferimento envolto de uma tira de tecido, sendo delicado e ao mesmo tempo exercendo o que parecia ser a porção exata de  pressão. Sorri ao perceber que ele usava uma gravata para enfaixar. Eu não tinha notado que ele era o tipo de homem que usava gravata. Tentei montar sua imagem em minha mente com as informações que tinha. Alto e forte, com uma voz baixa e grave que tendia a ficar levemente aguda quando se irritava. Ele usava um boné velho, um casaco comprido de qualidade e uma gravata.

Nada parecia certo.

Quem era ele?

— Você não me disse seu nome. – falei, estava cansada demais de chamá-lo de estranho na minha mente e ansiosa em ter mais uma informação. Um nome, quem sabe, me ajudaria a imaginar melhor seu rosto.

— Você também não me disse o seu. – devolveu, fazendo-me suspirar ao perceber que ele queria que eu cedesse primeiro. O estranho, ainda sem nome, amarrou a gravata num nó forte, finalizando seu curativo. – Está pronto. – Anunciou, mas permaneceu com meu braço sobre seus joelhos.

— Felicity. – concedi - Meu nome é Felicity. Agora é sua vez.

— Você vai achar isso engraçado... – Disse, mas a voz dele parecia tensa, escutei o baque surdo de algo leve sendo jogado ao chão entre nós. Minha curiosidade foi maior, movi minha mão livre até o objeto e sorri ao identificar o boné, ele o havia tirado. - Meu nome é...

— Você está ouvindo isso? – o interrompi ao escutar o som alto de uma discussão, seguida de gritos e pedidos por clemência. Não sei em que momento minha mão encontrou o braço dele, mas sei que fez um estrago. Apertei forte quando o som de uma pequena explosão se fez alto e claro - Oh, meu Deus! Eles atiraram no Cayden! -  senti a umidade se acumular em meus olhos, enquanto eu concentrava todo meu medo apertando o braço do estranho, ele não protestou - Provavelmente estão vindo atrás de nós.

— Ei, acalme-se, eles não o mataram. – sua mão colocou-se sobre a minha - Ainda escuto a voz do vendedor, seja lá o que for, esse assalto não é sobre nós. – me concentrei um pouco e através dos outros sons, de coisas sendo arrastada e portas se fechando, eu escutei a voz fraca de Cayden. - E eles não tem razão para nos matarem. - a voz do estranho continuou naquele tom calmo que fazia o ritmo do meu coração desacelerar  - Só queriam roubar o lugar e provavelmente estão assustando o dono, não precisam nos matar para isso.

Assenti, tentando usar seus argumentos, mas minha mente os refutou facilmente.

— Mas a gente os viu! Somos testemunhas. – me lembrei com um peso no coração dos olhos conhecidos nos meus, assim que eles entraram na loja. - Sabemos como são e como estão vestidos, e...

— Ei, eles atiraram nas luzes, usavam capuzes e o grandão na porta tinha o rosto coberto. -  falou mais firmemente.

— Mas eu... – engoli minhas palavras e balancei a cabeça.

— Felicity? – sua mão apertou a minha - Você os viu?

— Não. – menti.

— Você os viu. – afirmou com um pesar tão grande, que até eu o senti.

— Eu vou vomitar. – encostei a testa contra a parede sentindo-a fria pelo suor, o formigamento nas mãos aumentando assim como aquele sufoco no peito, eu não aguentava mais. - Preciso sair daqui. – Me ergui do chão apressada, minhas mãos se arrastaram aleatoriamente pela parede em busca da maçaneta.

Eu a girei e empurrei repetidas vezes.

Até que dedos longos estavam sobre os meus me afastando do metal.

Havia um corpo quente atrás do meu, tão próximo que eu podia ouvir a pulsar do coração dele.

— Hey, calma. – sussurrou tão próximo do meu ouvido, me distraindo por um segundo para que eu pudesse acrescentar uma barba por fazer na imagem do estranho. - Confie em mim quando digo que é melhor ficarmos aqui. Eu não sei o que está acontecendo lá fora, mas tenho certeza de que não querem testemunhas. – Eu não queria ouvir suas palavras racionais, eu só queria não estar presa dentro de um maldito armário. – O melhor que podemos fazer é ficarmos em silêncio e esperar que esqueçam que estamos aqui.

Eu sabia que ele estava certo.

Mas ainda havia em mim aquela ânsia de sair.

— Me distraia, por favor. – pedi, soltando meus braços.

— Com o quê? – Eu havia me virando dentro daquele estranho abraço, os braços dele haviam deixado de me tocar, mas eu ainda o sentia próximo, o calor do seu corpo cercando-me. Eu poderia me mover apenas um centímetro e encontraria seus braços ao lado do meu corpo, tão pertos que me perguntei se estavam apenas naquela posição para me segurar, caso eu ameaçasse ceder ou surtar novamente.

E havia seu rosto.

Eu não conhecia seu rosto.

Mas já conhecia bem seu cheiro e o gosto da sua respiração. Conhecia a voz grave, que tendia a adquirir uma cadência única quando ele a usava para me acalmar. E embora fosse uma bela distração imaginá-lo, não havia muito com o que trabalhar.

— Me fale sobre você. -  Pedi. E ele ficou ainda mais calado - O que você faz?

— Eu vendo pasta de dentes. – franzi o cenho.

— Isso não pode ser um emprego real. – me acomodei contra a porta, e cruzei meus braços. Mesmo que eu tenha me afastado, senti que o estranho estava ainda mais perto, como se gravitasse ao meu redor.

— Quando sairmos daqui, você vai ver que tenho um sorriso muito convincente. – mordi os lábios me impedindo de sorrir, sua frase é tola e convencida, mas...

...Gostei disso.

Gostei da perspectiva de um amanhã que seria normal, sem assaltantes ou armários pequenos.  Um amanhã onde eu poderia encontrar o estranho num café e ele não seria mais um estranho. Teria um nome e um rosto. Quem sabe até mesmo um belo sorriso desses de tirar o fôlego?

Três indiscutíveis sons de tiro, me fizeram pular no lugar.

— Isso foi...? – não havia engano dessa vez, o som foi seguido e certeiro, como em uma execução.

— Apenas respire. – não percebi que havia parado de fazê-lo - Respire, Felicity. Apenas respire, concentre-se em mim e nada mais.

— Eu não... – não conseguia falar, eu respirava várias e várias vezes, mas não havia nem mesmo ar para isso. Suas mãos alcançaram meu rosto, mantendo-o eguido, e ele respirou calma e profundamente perto de mim, me ensinando.

Soprando o ar para mim.

Mais perto.

Mais quente.

E ainda mais perto.

E então cometi meu terceiro e irrevogável erro.

Eu fechei meus olhos e me concentrei em seu toque quente em minha pele, nos movimentos circulares dos polegares em minhas bochechas, nas mãos que seguravam meu rosto com reverência. Na cadência ritmada das suas palavras baixas que me acalmavam, e na respiração tão perto de mim.

Mas ainda não era o suficiente.

Meu corpo ainda tremia de pânico, o coração retumbando alto em meus ouvidos e o ar ainda não chegava aos pulmões.

Perdi-me no movimento suave de seu nariz contra o meu, na boca entreaberta tão próxima a minha.

Mas ainda assim não consegui respirar.

E então ele me deu seu ar.

Eu senti o toque macio e quente contra meus lábios, fazendo meu corpo imediatamente se derreter naquele calor. Abri a boca um pouco mais recebendo muito mais do que seu ar, recebendo também seu sabor que explodia na minha boca fazendo-me desejar apenas mais, e mais.

E de repente, tudo de mim se concentrava apenas nele.

Naquele beijo.

No ar que compartilhávamos.

No gosto mentolado da sua boca, pela qual me vi ainda mais sedenta. Nos movimentos de seus lábios sugando os meus, e em seu toque acalentador que trazia uma doçura inesperada ao beijo. Nos músculos do seu peitoral sobre os quais minhas mãos se apoiaram amassando a camisa e puxando-o para mim, e embora o estranho já estivesse perto, não era o suficiente.

Sorri no meio do beijo.

Eu estava beijando um estranho, sem rosto e sem nome dentro de um armário.

Mas parecia apenas certo.

Ele sorriu também, talvez pensando o mesmo que eu e se jogando ainda mais naquele beijo, movendo as mãos para minha cintura e puxando meu corpo de encontro ao seu. Enquanto realmente nos perdíamos.

Eu não sei dizer por quanto tempo o beijo se estendeu.

Mas sei que, quando a porta se abriu abruptamente, trazendo uma parca luz em nossa direção, fazendo-nos romper o beijo, ainda assim eu não o soltei, ao contrário eu me agarrei ainda mais comprimindo meu corpo no dele, esperando que “eles” tivessem se lembrado de nós, e viessem terminar o que começaram. Se iria morrer, não havia melhor maneira do que me sentindo mais viva do que jamais senti em toda a minha vida.

Mas não houve mais tiros, e a dor da morte também não veio.

O estranho no qual há pouco meus lábios estiveram colados, se afastou de mim vagarosamente, deixando de me tocar. Franzi o cenho para seu comportamento e dei um passo para trás, estranhamente me afundando ainda mais naquele armário quando percebi o que estava acontecendo.

Havia um homem negro com olhos gentis que nos perguntava se estávamos bem, o estranho o respondeu, parecendo conhecê-lo.

— Felicity, venha. – O estranho ofereceu sua mão, mas ele já não poderia ser chamado de estranho, não quando seu rosto estava visível - Estamos seguros agora, Diggle disse que a polícia está a caminho.

Dei um passo para fora do armário, deveria me sentir liberta.

Ao fundo eu escutava o som das sirenes se aproximando.

Mas meus olhos não se desviavam do homem que não era mais um estranho.

— Merda. – Encarei ainda atônita para os olhos azuis e o sorriso que havia me perseguido durante todo aquele maldito dia. Eu havia sido ameaçada, tive uma arma apontada para mim e ouvi os gritos de um homem antes de ser morto e seu cadáver estava apenas há alguns passos de mim, e como se minha mente quisesse fugir de todo o pesadelo, focou-se na única coisa normal em meio ao caos. - Eu beijei Oliver fodido Queen!

— Na verdade meu nome do meio é Jonas. – E então sorriu encorajando-me. Aquele maldito sorriso perfeito, mas dessa vez não era como eu vira na televisão ou nos folhetos, não era estático ou ensaiado, ou mesmo de um vendedor de pasta de dentes.

Era apenas lindo.

Tão lindo que fazia o caos e a destruição ao nosso redor desaparecer.

Mal sabia eu, que aquele sorriso lindo era enganoso, e tinha mais poder de me destruir do que qualquer outra coisa. Ou talvez soubesse, e por isso meus olhos astutamente se concentraram algo menos fatal, como as luzes azuis e vermelhas que se aproximavam e coloriam as paredes com algo diferente de sangue.

 


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Notas finais do capítulo

Bem, é isso, a história começou a tomar forma. O que estão achando? Curtindo? Perguntas são bem vindas, e desde que não me peçam spoilers, responderei a todos.

Até mais! Beijos!



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