Aurora Borealis escrita por Kyra_Spring


Capítulo 10
Capítulo 9: Aliança




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            Era realmente cedo quando Bella se levantou, no dia seguinte. O dia permanecia nublado, e qualquer coisa que não fosse uma cama com cobertores pesados não era nada convidativa. Mas havia algo importante a se fazer. Uma missão, como Edward chamara. Bella se perguntou o porquê da escolha dessa palavra, mas guardou essa pergunta apenas para si.

            Mas o mal-estar que ela sentia não se devia apenas ao clima ruim. Não diretamente, pelo menos. Depois que voltou do baile, a garota demorou muito antes de se decidir a ir para o chuveiro. E, agora, colhia os frutos da sua irresponsabilidade. Sentia o corpo pesado e dolorido, a garganta arranhava incomodamente e a cabeça latejava como se houvesse um sino dentro dela, tudo isso somado a uma sensação de frio cortante que não passou nem com três camadas de roupas.

_Você está horrível, sabia? – Charlie a esperava na mesa do café, e encarou-a preocupado. “Sempre cheio de tato, pai... obrigada”, ela pensou, mal-humorada – O que aconteceu?

_Tomei chuva ontem, pai – ela explicou, e percebeu que sua voz estava rouca e estranha – Acho que fiquei resfriada, só isso. Uma aspirina e já estou de volta à ativa.

_Nada disso, você vai é voltar para a cama agora mesmo! – ele disse, firme – Você está pálida e cheia de olheiras como a noiva do Drácula, e não vou deixar que saia na chuva outra vez.

            “Malditas ironias...”, ela praguejava, mentalmente. Já estava até vestida para sair, e tentou reforçar a voz para contra-atacar, no que não teve sucesso nenhum.

_Eu tenho uma pilha de coisas para fazer – “se bem que voltar para cama, agora, seria ótimo”, ela pensou, sem querer, e quis se bater por isso – Tenho que fazer compras. Além disso, eu estava com planos de aproveitar o sábado e ir a... – então, se arrependeu. Quando dissesse, aí sim ele a prenderia em casa. Mas, agora que começara, não podia mais mentir.

_Ir aonde? – os olhos dele se estreitaram, enquanto ela hesitava. Podia dizer que ia sair com Angela, mas provavelmente ele ligaria e descobriria a mentira. Resolveu, então, ficar com a verdade:

_Eu queria ir a Port Angeles com o Edward – os lábios de Charlie se tornaram uma linha esbranquiçada no rosto – Abriram algumas lojas novas que eu queria visitar. E ele se propôs a me levar até lá. Iríamos durante o dia e voltaríamos, no máximo, na hora do almoço. Eu não disse nada porque foi uma decisão meio de última hora.

_Você fica em casa – foi a sentença, e Bella não pôde conter um gemido agoniado – Você está doente, não posso deixar que saia. E não quero discussões. Vá para o seu quarto e deite-se. Daqui a pouco, vou levar os seus remédios.

            Bella se arrastou de volta para o seu quarto como um condenado a caminho da guilhotina. Recolocou o pijama, e enfiou-se debaixo das cobertas, torcendo para que Edward esquecesse daquela viagem e não fosse até lá. Não que não quisesse a companhia dele, é claro. Na certa, ele seria mais potente do que qualquer analgésico que pudesse ser inventado pelo homem. O problema era que ela se sentia constrangida por estar doente perto de alguém como ele. Era humano demais. Isso sem falar no fato de que ficava com cara de vela derretida sempre que ficava doente.

            Bem, ela pensou, talvez realmente estivesse mal o bastante para ficar em casa. A cabeça, que antes apenas latejava, passou a doer de verdade, uma dor constante e aguda que parecia querer cegá-la.

            Foi quando ouviu um barulho na entrada da casa, e arrastou-se até a porta para ouvir melhor.

_Bom dia, chefe Swan – “Será que dá pra ficar pior...?”, ela pensou, quando ouviu a voz aveludada de Edward, animada, no andar de baixo – A Bella está? Combinamos de sair hoje...

_Sim, mas está doente – respondeu Charlie, azedo – Ela está interditada por hoje e não irá a lugar nenhum.

_Doente? – a voz de Edward falhou um pouco, e depois ele começou a falar rápido. Bella imaginava a expressão facial dele, que devia exibir uma preocupação meio irracional – Como ela está? Quer que eu chame Carlisle? Posso vê-la, por favor?

_É só um resfriado – o chefe de polícia estava decidido a ser tão hostil quanto pudesse – Não, não precisa chamar o dr. Cullen, se for necessário eu mesmo o chamo. E não, você não pode subir até lá porque ela está dormindo. Deixe-a descansar.

_Ahn... – ao longe, ela podia imaginar a decepção estampada no rosto dele – Nesse caso, eu vou embora. Pode dizer, por favor, que estive aqui e que desejo melhoras a ela?

_Claro, claro – foi a resposta de Charlie. “Eu vou ter que dizer umas poucas e boas a ele assim que ele subir!”, pensou a garota, irritada pelo comportamento do pai. Mas aparentemente ele próprio se arrependera do tratamento e acrescentou, mais suave – Bem, se quiser voltar mais tarde, deixo você vê-la. Está tudo bem?

_Sim – pela voz, ela pôde detectar um pequeno sorriso amarelo e ainda decepcionado – Até mais tarde então, chefe Swan, e desculpe o incômodo.

            E então, a porta se fechou, e Bella teve que voltar correndo para a sua cama. Alguns minutos depois, Charlie apareceu em seu quarto. Parecia embaraçado, e estendeu uma cartela de comprimidos para a febre e a dor e um copo d’água a ela, enquanto permanecia segurando bobamente um termômetro.

_Eu mesma posso fazer isso, pai – ela disse, sorrindo, enquanto engolia dois comprimidos e colocava o termômetro debaixo do braço – A propósito, não precisava ter escorraçado o Edward de casa como se ele fosse um leproso. Eu não estava dormindo e você sabia disso.

_Desculpe por isso, Bells – o tom dele estava envergonhado, mas não propriamente arrependido – Mas você precisa mesmo descansar, e eu não queria que ficasse agitada.

_Agitada? Em Forks? – ela riu – Meio impossível, não concorda?

_É, talvez você tenha razão – ele não riu tanto quanto Bella esperava. Talvez ainda se lembrasse das coisas escabrosas que ela dissera naquela noite em que tivera que fugir de James. O sorriso tímido, porém, deu lugar a uma careta de espanto – Trinta e nove e meio, Bells? Ah, hoje você não sai nem desse quarto!

            “Trinta e nove graus e meio... eu devia imaginar”, ela gemeu mentalmente.

_O pior é que vou ter que ir trabalhar... – e, de repente, ele pareceu aflito – Apareceram umas coisas estranhas no circuito de trilhas perto da divisa da cidade e eu preciso ir ver. Como vou deixá-la sozinha? Talvez eu devesse chamar alguém, ou...

_Não, pode deixar – ela o cortou – Vou ficar bem. É só deixar os remédios ao meu alcance. E, se o seu medo é eu fugir de casa ou deixar alguém entrar, é só levar as chaves e me deixar confortavelmente trancada em casa. Acredite, não estou nem um pouco disposta a quebrar a prisão domiciliar.

_A questão não é essa – retrucou ele, embora não soasse muito convincente – Alguém tem que cuidar de você.

_Eu sei me cuidar sozinha – ela deu de ombros – Quer ver? Temos aspirinas e paracetamol?

_Temos.

_Temos barras de chocolate?

_Temos.

_Temos cobertores extras?

_Temos.

_E temos também um belo carregamento de livros novos que eu aproveitei para trazer de Phoenix quando saí do hospital e que nem tive tempo de abrir. Ou seja, tenho remédios, comida, um abrigo aquecido e uma distração. É o suficiente – ela o encarou com dureza – Agora vá. E estou falando sério, se quiser me trancar aqui para se certificar, vá em frente.

            Ele a encarou, parecendo lutar consigo mesmo por um segundo. Por fim, cedeu, não sem antes perguntar quinhentas vezes “Mas você vai mesmo ficar bem?”, ao que ela respondia “É claro que vou. É, no máximo, uma gripe, e não um novo surto de varíola”. E, então, ele saiu, e realmente trancou-a dentro de casa.

            E, como ela previra, dois minutos depois Edward estava sentado em sua janela.

_Meu Deus, Bella, até parece que um caminhão passou por cima de você! – ele disse, conseguindo misturar preocupação e divertimento na mesma frase – Não iríamos a lugar nenhum com você assim. E, de qualquer forma, o tratamento gentil que o seu pai teve comigo deixou bem claro que não iríamos mesmo a lugar nenhum, estando você doente ou não.

_Nossa, é ótimo te ver – ela murmurou, sentindo a voz enfraquecer mais – Foi a chuva de ontem... Mas, com você aqui, me sinto melhor... E me desculpe pelo que Charlie disse, ele passou do limite.

            Ele se aproximou, com uma expressão facial que misturava cuidado, pena e – seria possível? – curiosidade. Tocou a testa dela com cuidado, e sentiu-a muito mais quente que o normal. Ela, por outro lado, não conseguiu sentir direito a frieza do toque dele, em meio à onda de frio causada pela febre. Mau sinal. Ela realmente estava doente.

_Você está queimando... – ele sussurrou – Já tomou algum remédio?

_Sim – respondeu ela – Acabei de tomar.

_Charlie estava certo, você não pode ficar sozinha nesse estado – o tom de voz dele era sério – Vou ficar aqui e tomar conta de você.

_Um dia meu pai vai te dar um tiro – ela acabou rindo – Se ele te pegar aqui, vai expulsá-lo a vassouradas.

_Isso se ele conseguir me pegar, não é? – os lábios dele se torceram num sorriso malicioso, enquanto ele se sentava no chão ao lado da cabeceira de Bella e apoiava seu queixo no travesseiro, fazendo com que seus rostos ficassem quase na mesma altura – Você está mais pálida.

_Eu estou doente, você queria o quê? – ela decidiu que fazer piadas era o melhor jeito de fazer de conta que não sentia um saco de pregos ser cravado em sua cabeça, a despeito do remédio – E a culpa é sua.

_Eu sei – ele disse simplesmente, cravando seus olhos nos olhos castanho-escuros dela – E é por isso que hoje serei o seu enfermeiro particular.

_Acho que gostei da idéia – a garota sorriu – Estou mesmo querendo ser um pouco mimada.

            Ele se deitou ao lado dela, afagando os cabelos com os dedos e cantarolando, gentil. E ela, sem saber se era o efeito do remédio ou da presença acalentadora dele, foi afundando num torpor profundo e delicioso.

_Você devia pensar em seguir carreira – ela disse – Poderia até matar duas ou três pacientes por arritmia cardíaca, mas seria excepcional mesmo assim.

_O que posso dizer? – ele deu de ombros, com falsa modéstia – Eu sei que sou demais!

_Convencido...

_Você quer que eu traga alguma coisa? – logo, o tom dele voltou a ser cuidadoso e preocupado – Sei lá, um cobertor, algo pra comer... travesseiros, talvez...

_Água seria ótimo – ela disse, e ele sumiu por dois segundos, para voltar com uma jarra cheia e servir um copo a ela, gentilmente.

_Como está se sentindo?

_Tonta e com uma dor de cabeça dos diabos, mas fora isso tudo bem.

            Ele voltou a se sentar na mesma posição de antes. Os olhos dele estavam tão especialmente bonitos naquela manhã... mas, mesmo assim, estavam diferentes, estranhos... um pouco turvados de alguma emoção que ela não soube definir. E estavam mais profundos, como um verdadeiro oceano dourado no qual ela poderia facilmente se afogar.

_Eu me sinto tão inútil – ele deixou escapar, exasperado. Ela o encarou, erguendo uma sobrancelha, e ele explicou – Não faço idéia do que fazer com você. E adoraria ajudar.

_Aprenda uma coisa: quando se está resfriado, noventa por cento dos sintomas aparentes são pura e simplesmente drama para que os outros fiquem nos paparicando – ela disse, rindo – E os outros dez por cento podem ser tratados por vários tipos diferentes de comprimidos baratos.

_Não é... só isso... – foi o que ele respondeu, e imediatamente ela entendeu a que ele se referia – Eu só queria saber o que fazer. Sabe, com tudo isso.

_O que acha de não tocarmos nesse assunto? – a idéia partiu dela. A dor estava praticamente escrita na testa de Edward, e não era justo dilacerá-lo ainda mais – Só hoje, tá bem?

_Tá bem – ele concordou, sentindo uma agradável onda de alívio percorrê-lo – Hoje, todas as atenções se voltam para Isabella “Desastre-ambulante” Swan. E, nesse momento, acho que você deveria dormir e deixar os remédios agirem por si.

            Ela até ensaiou um protesto, mas logo o remédio já fazia efeito, fazendo suas pálpebras pesarem toneladas. E, para acelerar o processo, Edward começou a cantar em seu ouvido, uma canção sussurrada, doce e hipnótica. Antes de cair de vez no sono, ela ainda balbuciou:

_Vai ficar aqui, não vai?

_É claro que vou – foi a resposta, rápida e debochada – E, se seu pai entrar, eu me escondo no armário.

_Isso é bom... – e, então, adormeceu.

-----

            Afinal de contas, ela não estava tão mal quanto parecia no começo da manhã. Menos mal.

            Horas depois, Bella acordou levemente sobressaltada. Olhou em volta, e estava sozinha. O relógio marcava quatro da tarde. É claro que ele não ia poder ficar o resto do dia. Provavelmente, Charlie havia chegado, e ele estava do lado de fora, esperando...

_Bella? Está acordada? – foi então que ouviu uma voz ao mesmo tempo familiar e inesperada, vinda da direção da porta – Espero não estar incomodando.

_Kiyone? – demorou um pouco até que ela conseguisse reconhecer a vampira gentil da loja de Port Angeles, parada ali na sua frente – Mas o que... Edward...

_Ele está lá embaixo, ouvindo um sermão do seu pai – disse a outra, rindo, enquanto sentava-se no pé da sua cama – Acho que precisamos conversar um pouco. Creio que você saiba a meu respeito, não é?

_Sei – respondeu Bella, esforçando-se para se sentar. Seu corpo doía como se tivesse passado por um moedor de carne – E fiquei assustada quando a vi lá.

_Acredite, foi uma coincidência – explicou Kiyone – Já faz algum tempo que estou viajando. Passo um ano, dois no máximo, em cada lugar. Acabei de vir da Islândia, e comecei a trabalhar em Port Angeles. É claro, já tinha ouvido boatos aqui e ali a respeito de um grande grupo vivendo por aqui, mas decidi que seria melhor não procurar problemas. Mas, pelo que Edward me contou, parece que finalmente achei alguém como eu nesse mundo – e, então, sorriu amistosamente – A propósito, fiquei muito surpresa quando soube da sua relação com Edward. Surpresa... e esperançosa. Parece que ainda há uma chance para os seres da noite, como nós.

_Bem, eu vi o “recado” que você me mandou – Bella, então, resolveu começar a tocar no assunto principal do dia – As duas pedras. O que você quis dizer naquele dia?

_Quando eu lhe disse na loja que era sensitiva, não estava brincando – respondeu a outra, os olhos estreitos e dourados faiscando – Posso ver flashes do seu futuro ao tocá-la, posso sentir seus sentimentos durante as visões. É a forma mais profunda de vidência que conheço, essa de sentir as emoções futuras de alguém. Vejo que você se envolveu mesmo nessa disputa entre os Cullen e os Hook. Foi uma escolha arriscada, mas não posso saber se foi certa ou não.

_Eu me lembro de você ter dito que meu amor poderia salvar... ou destruir – mesmo tentando manter a firmeza, a voz da primeira falhou no fim da frase – Como é isso?

_Você sabe melhor que eu até onde eles estão dispostos a ir para protegê-la – explicou a vampira, num tom grave – E eu senti que você está disposta a fazer o mesmo. Todos estão cientes do sacrifício que poderão precisar fazer, no final. E você é a mais frágil, embora mesmo assim ainda seja a mais consciente das consequências dos seus atos.

_Alguém vai se machucar... não vai? – e, então, Bella fez a pergunta que mais a sufocava. Aquela que Alice jamais responderia – Quem? Como?

_É difícil saber – respondeu Kiyone, num tom honesto e desconsolado – A ameaça paira sobre todos. A diferença é que ainda falta um pequeno passo, que pode partir de qualquer um de vocês, para definir o fim da história.

_Os poderes de Alice estão abalados, você já deve saber. Há um garoto, Simon, que faz isso.

_Sim, eu pude sentir. Mas a leitura que fiz tanto de você quanto de Edward foi bem clara, porque falei com vocês em Port Angeles. Agora, aqui, com Alice, foi mais difícil. Também pude senti-la, mas a leitura foi muito mais confusa e cheia de falhas.

_Como as visões dela...

_Exatamente.

_Olá, meninas! – foi então que Edward entrou, sorridente, acompanhado por um carrancudo Charlie. Bella teve que se conter para não rir alto: ele estava vestido de branco, como um autêntico enfermeiro, e trazia um buquê de narcisos nas mãos – E então, Bella, como está?

_Melhor agora – respondeu ela, ciente da presença do pai – Fico feliz que tenha vindo.

_E eu ia deixar a minha pobre namorada doente e abandonada? – ele colocou as flores na jarra de água ao lado da cama, não sem antes dar uma piscadinha cúmplice – Claro que não. E espero que não tenha se importado por eu trazer a minha amiga Kiyone para visitá-la também. Sabe como é, Alice não pôde guiá-la hoje por aqui, então tive que ajudá-la.

_Não se preocupe, é um prazer – a garota disse – Só lamento por estar recebendo-a nesse estado.

_Ah, não se preocupe – e então, para a delícia de Bella, Kiyone assumiu um sotaque japonês – Cidade nova, país estranho. Muito diferente de Tóquio.

_Eu vou deixá-los conversar em paz – vendo que sua presença ali estava sendo solenemente ignorada, Charlie finalmente deu-se por vencido. Antes de fechar a porta, porém, disse – Comportem-se!

            Eles esperaram que o chefe Swan estivesse longe o bastante. E, depois, começaram a rir.

_Essa foi ótima – Bella dividia-se entre rir e tossir – Adorei o sotaque.

_Há uns cento e cinquenta anos atrás, eu até falava assim – explicou a vampira, também rindo – Mas funciona até hoje.

_E é oficial: seu pai me odeia – Edward ria ainda mais – Há cinco minutos ele estava fazendo o maior discurso sobre respeito e consideração, só me deixou subir quando soube que a Kiyone também estaria aqui e mencionou alguma coisa a respeito de me dar um tiro se eu fizer qualquer coisa contra você.

_E o que você disse?

_O mesmo que lhe digo sempre: que seria um menino muito bem-comportado – e riu mais.

_É tão inacreditável o que há entre vocês – foi então que Kiyone se manifestou – É tão... incondicional, tão intenso. Se isso não for o tipo mais genuíno e forte de amor, então eu não sei o que é.

_Então você entende por que é tão importante pôr um fim a esse problema com os Hook – observou Bella, grave – E, quando soube que você estava aqui, pensei que talvez pudesse nos ajudar.

_Mas é claro! – a outra disse, na mesma hora – Aliás, quando Edward foi me procurar e me contou sobre os Hook, eu mesma perguntei se havia algo que eu pudesse fazer. A fama deles é antiga, muito mais do que a dos Cullen. E muito pior, também.

_Foi por isso que, quando você dormiu, fui até Port Angeles falar com ela – Edward continuou a explicação – A princípio ela ficou com medo, pensando que éramos um bando errante que não aceita uma suposta concorrência. – deu uma risadinha nessa parte – Mas, depois que esclarecemos tudo, pudemos unir forças. Desculpe por não tê-la levado, Bella, mas você estava deplorável.

            Em condições normais, ela até brigaria. Mas, naquele momento, sua cabeça voltava a latejar. Não queria dormir, então engoliu dois comprimidos de paracetamol com cafeína e torceu para que fizessem a dor passar. E, então, perguntou:

_Mas por que você vive sozinha, Kiyone?

_Encontrei poucos iguais a mim pelo caminho – respondeu ela – O próprio vampiro que me criou sumiu no mundo. E, desde então, tenho tentado fugir deles e me aproximar mais dos humanos. Tem dado certo, aparentemente – sorriu, apesar de ter alguma coisa triste em seu rosto – Eu tinha vinte anos quando fui transformada. E dei o azar de acontecer bem no meio da revolução Meiji.

_Acho que o contexto sempre dá um certo tom dramático à situação, não é? – disse Edward, com um tom de voz que alternava entre divertido e sarcástico – Você sabe, revolução Meiji, gripe espanhola... admita, fomos testemunhas oculares de coisas importantes.

_Pois é... – os olhos dela divagaram pela parede – Nós tínhamos uma loja de tecidos, éramos prósperos e felizes. Meu pai estava pensando inclusive em mandar minha irmã mais nova para a Europa, para estudar. E, então, veio a revolução, e com ela o caos. Discutia-se a monarquia, mas tudo o que fazíamos era vender tecidos. Então, uma noite, nossa loja foi incendiada, porque alguém disse que escondíamos rebeldes. O que era mentira, claro. No nosso porão só havia uma coisa: ratos.

            Ela parou por um instante, os olhos ainda na parede, e com a expressão facial de alguém cuja mente estava a quilômetros – e décadas – de distância. Mas logo se recuperou, e continuou:

_Eu fugi, sem saber ao certo para onde. Nós temos muitas lendas a respeito de demônios e espíritos que vagam à noite, mas nem pensei nelas. Foi um erro. Na verdade, eu nem vi direito. Em um segundo, estava num beco escuro, e no segundo seguinte havia algo me carregando para uma floresta. Depois disso, não me lembro de muita coisa. Lembro-me, sim, de ter sentido muita dor. Estava amanhecendo... eu acho. E me lembro também de um vulto branco e veloz ter afastado o meu agressor, antes de eu desmaiar de dor.

            Edward tinha os olhos fechados. Estava comparando a história da transformação de Kiyone com a sua própria, e concluiu que talvez tivera muito mais sorte. Talvez.

_Depois disso, a primeira lembrança clara que tive foi de ainda estar deitada naquela clareira. Quando acordei, percebi uma coisa engraçada em mim. Eu estava brilhando. Pela posição do sol, devia ser quase meio-dia naquela hora. Então, corri para me esconder em uma caverna. Foi aí que percebi o nível da transformação que tinha sofrido. Fiquei desesperada, achei que tinha morrido e virado um fantasma. Quando me escondi, o brilho parou. Minha idéia era ficar ali até que tudo passasse e eu voltasse ao normal, mas logo veio a sede. Quem me deteve foi um homem louro e forte, chamado Lugaid, que tinha me salvado do outro vampiro. Ele era missionário, eu acho, a verdade é que ele falava pouco. E foi ele quem me ensinou um outro jeito de sobreviver.

_Lugaid? – Edward ergueu uma sobrancelha – O mesmo Lugaid que matou algumas dezenas de vampiros pelo mundo afora, até há algumas décadas atrás?

_Exatamente – confirmou ela – Andamos juntos por alguns anos, e eu me mantive escondida. Mas não havia como sair do Japão, pelo menos não naquele momento. Então, fiquei me escondendo, seguindo a estação chuvosa e a neve pelas ilhas... e esperando. E querem saber? A vida pode ser mesmo um saco quando não se pode dormir e nem temos algo melhor pra fazer.

            Ela riu. Edward também acabou abrindo um sorrisinho, concordando com ela.

_Lugaid me ensinava o que podia. Aprendi línguas, e matemática, e teologia com ele. De vez em quando, conseguíamos livros. Gosto de ler, sabe? Durante um ou dois anos, cheguei ao absurdo de me esconder durante a noite nas bibliotecas de Tóquio, só para ter o que ler. E, então, veio a Segunda Guerra Mundial. E foi quando eu fiquei sozinha.

_O que aconteceu com Lugaid? – perguntou Bella, embora no fundo já intuísse uma resposta.

_Lugaid era um matador de vampiros, como eu disse – a voz de Kiyone assumiu um tom cheio de saudade e pesar – E é claro que os companheiros desses vampiros não gostavam disso. Eles armaram uma emboscada, e o mataram, bem na minha frente. Só não me mataram também porque um deles os mandou parar. Aquilo me devastou completamente, me tirou o equilíbrio. E, com a guerra, a oferta de sangue era bem farta. Durante algumas semanas, me entreguei totalmente aos instintos, atacando quem quer que aparecesse. É claro que grande parte de mim odiava isso, e vivia me dizendo que eu estava traindo Lugaid ao jogar fora tudo o que ele me ensinou.

             A mente de Bella viajava ao longe. “Como ela conseguiu?”, perguntava-se, observando a vampira miúda e delicada sentada no pé da sua cama. Imaginava como deve ter sido dolorosa a perda de Lugaid, a única pessoa com quem ainda podia contar. Mas, então, lembrava-se de Carlisle. Ele também conseguira, e sem nenhuma ajuda.

_Mas minha redenção também veio com a guerra – ela continuou – Eu procurava vítimas fáceis entre os feridos, durante a noite. Um choro de criança me atraiu, e eu encontrei um menino, que não devia ter mais de seis anos, debaixo de alguns escombros. No primeiro segundo, pensei que ele seria uma presa deliciosa. Mas simplesmente não consegui mordê-lo. Ele estava bem ali na minha frente, tão quente, tão vivo, tão humano... e então, percebi o que Lugaid estava fazendo – sua voz transbordava de respeito e de orgulho por seu mentor –  Ele queria conservar a sua própria humanidade ao conservar a dos outros. Nesse momento, decidi que respeitaria tudo o que ele me ensinou. Levei-o para uma enfermaria, e me ofereci para ajudar. Havia tanto sangue que, em pouco tempo, perdi um pouco da sensibilidade, o suficiente para manter meus instintos sob controle. Uns cinco anos depois do fim da guerra, me mudei para os Estados Unidos. Até hoje, estou tentando conseguir dinheiro suficiente para pagar uma faculdade de medicina.

_E, agora, você está aqui, se dispondo a nos ajudar – Edward terminou, com um sorriso – Obrigado.

_Acho que o destino colocou a Bella na loja em que trabalho, naquela noite – disse Kiyone, observando a outra – Senti isso ao ver aquela marca de mordida. E, quando soube a respeito de vocês dois, vi o que Lugaid me dizia bem na minha frente: nosso corpo pode ser diferente, mas em algum lugar, continuamos sendo humanos, e temos que preservar esse lado.

            Foi então que Bella sentiu dedos gelados ao redor da sua mão. Por um momento fugaz, pensou que eram de Edward, mas percebeu que era Kiyone, que a encarava com um sorriso cálido.

_Você escolheu o citrino, não foi?

_É claro – respondeu a primeira – E ele sabe disso.

_Então esteja preparada para daqui a cinco dias – a outra assumiu um tom sério, sem soltar a mão de Bella – Não consigo ver os detalhes, mas a quebra definitiva está próxima. Ouço o som de água... E posso ver que o seu sentimento mais forte é... raiva? Sim, raiva, mas não consigo dizer o porquê. É o que dá pra ver. Pode não ser muito útil, mas é tudo o que sei.

            Os três ficaram em silêncio. Então a conspiração dos Cullen estava com os dias contados. Cinco dias. Isso significava que ela precisava se apressar.

_Então é melhor que eu fique bem dentro de cinco dias, não é? – ela disse, tentando dar um tom despreocupado à voz – Odeio gripe!

_Ah, mas você não está gripada – disse Kiyone, piscando – Na verdade, é uma infecção leve de garganta, que pode ser curada se você tomar antibióticos... ou com uma bela injeção de penicilina.

_Como você sabe disso? – Edward ergueu uma sobrancelha, tentando ignorar Bella gemendo e murmurando um “não quero nem sonhar com agulhas”, e a moça explicou:

_Quando toco uma pessoa, posso saber coisas relacionadas a ela fisicamente, ou que de alguma forma a alterem fisicamente. Assim, posso ver o futuro, como sua irmã Alice, e sentir suas emoções, como o Jasper, mas não tão bem quanto eles. E também posso saber o que está perturbando o equilíbrio corporal de uma pessoa, seja um sentimento, seja uma doença. É como se eu fosse ao mesmo tempo médica, psicóloga e conselheira sentimental.

_Interessante – ele sorriu – Garanto que você seria uma excelente médica.

_Por enquanto, eu vou continuar vendendo incenso e cristais – ela deu de ombros – Acho que, em um ano ou dois, consigo dinheiro suficiente. Vou tentar uma bolsa na Cornell, eu acho.

            “Cinco dias...”, Bella pensava, enquanto Edward e Kiyone continuavam conversando. O que aconteceria? Ela cometeria algum erro? Ou toda aquela história já era um erro desde o começo? Ela sabia que Dean Hook também ansiava pelo seu sangue. Será que ele realizaria seu desejo dali a cinco dias? Ou simplesmente descobriria tudo?

            Afinal de contas, o que ela poderia esperar de alguém como ele?

_Bella, é sério, é melhor ir ver Carlisle – disse Edward – Ele pode te prescrever remédios certos para que você melhore. E, se precisar, vai tomar uma injeção sim – a simples perspectiva de uma agulhada fez com que um tremor atravessasse todo o seu corpo e afastasse momentaneamente seus outros medos.

            No fim, o próprio Charlie acabou chamando o dr. Cullen, que confirmou as previsões de Kiyone e lhe deu uma injeção de antibióticos (“um tratamento de choque”, disse ele, ao vê-la empalidecer ainda mais, “e você ficará nova em folha amanhã mesmo”). Ele também aproveitou para dispensar discretamente Edward de casa, mas foi muito mais amável com Kiyone.

            Bella lançou um olhar feio ao pai e se preparou para um sermão. Era um despautério a forma com que Charlie tratava Edward, sem que ele jamais tivesse dado motivo para tal. Mas, quando abria a boca para falar, ela a cortou rapidamente:

_É melhor você comer alguma coisa. Preparei uma sopa, se quiser.

            “Argh, sopa”, pensou. No ranking das coisas que ela mais odiava, a sopa do seu pai ocupava o quarto lugar, sendo precedida por dias intermináveis de chuva, agulhas e sangue. Mas o que realmente a irritou foi o fato de ele ter desviado o assunto e cortado sua repreensão. E, em meio à irritação, percebeu que estava com fome, tanta que acabou aceitando a oferta sem querer.

            “Você venceu desta vez, Charlie”, ela resmungou, para si mesma. “Mas ainda temos que ter uma conversa muito séria a respeito de hoje”. De qualquer forma, brigar com Charlie era secundário. Havia muito em que pensar, muito para se preparar. Cinco dias... o número ecoava em sua cabeça. Cinco dias... e se o tempo não fosse suficiente? Cinco dias...

            Cinco dias. Em cinco dias, tudo acabaria, as máscaras cairiam. E ela poderia escapar daquela vida tensa e sufocante, em que passava o tempo todo caminhando numa corda estendida sobre um abismo sem fundo.

            Ou, o que era mais provável, seria o momento da queda definitiva.


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