A luta a ser travada escrita por MT


Capítulo 5
Capitulo 5- Ventríloquo


Notas iniciais do capítulo

Yo, leitor, passando para avisar que não morri e também para deixar capitulo novo.



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´´Pessoas comuns têm um mundo, estranhos reclusos possuem gaiolas.`` a garota que me ensinara xadrez costumava dizer, e eu achava que fazia parte dos reclusos. Mas se assim fosse não estaria de frente a alguém como ele. Mesmo sua voz soava estranho, com um sotaque estrangeiro de algum país distante. 

Vestia um blazer marrom claro sobre uma camisa negra como o céu noturno e do pescoço pendia uma gravata vermelha. Usava óculos preto de contorno quadrado e o cabelo liso dourado fora penteado de forma a ficar esticado para trás. O sorriso curto tomava-lhe a face fazendo com que parecesse um professor jovem, bonito e simpático de filmes americanos. Mas seus olhos, duas órbitas sombrias num mar leitoso, faziam-me ter a sensação de que algo estava errado com minhas roupas, meu rosto, minhas ações pregressas. Eles encaravam quase completamente estáticos enquanto as pálpebras davam uma sutil descida tornando o topo das íris oculto.

— Você é…

— Sou. - respondeu como se soubesse o que eu iria perguntar.

— Boneco? - falei, apenas no intuito de testar se realmente previra minha questão.

Do outro lado da mesa metálica da sala de visitas Boneco assentiu.

— Você deu as ordens para o que ocorreu no ginásio de boxe Rompe Barreiras? - mal terminei de falar e já começara a remover os calcanhares do chão e cerrar os punhos.

Os lábios dele ficaram retos dando um fim ao sorriso que há pouco ostentava. Mas logo o trouxe de volta, ainda maior que antes.

— Não consegue adivinhar sozinho? - No instante seguinte a mesa foi lançada para o lado ruidosamente e as costas dele estatelaram contra a parede enquanto dedos fincanvam-se na carne abaixo da gola de sua camisa. Meus dedos.

— Quer saber o que faz pessoas inteligentes e poderosas tomarem a liberdade de confrontar alguém que a odeia e é fisicamente superior sozinhas numa sala? - ele disse, os olhos estáticos, o pescoço e expressão facial relaxados. - A certeza de que aquele que irá confrontar tem mais amor por outra coisa do que o ódio por si. A certeza de que não arriscaria perder essa coisa para sentir o sabor da vingança. Vai parar aqui ou preciso começar a citar nomes e onde seus corpos poderão ser encontrados?

O larguei quase no mesmo momento em que a sala foi invadida por policiais armados com cassetetes.

— Está tudo bem. - Boneco falou ajeitando sua roupa. - Nosso amigo já compreendeu a situação.

Lançaram um longo e duro olhar sobre mim, mas não ousaram questionar aquele homem. Puseram a mesa de volta no lugar e deixaram claro que se repetisse uma cena daquelas iria parar numa das celas negras. Tive vontade de vomitar uma série de ofensas que faria com que uma surra precedesse minha ida às celas negras, porém me limitei a voltar a sentar na cadeira.

Boneco também retornou ao assento.

— Seu oponente é um lutador de rua experiente e forte, dizem que nunca foi derrotado em combate singular. - ele começou como se nada digno de nota houvesse ocorrido. - Terá pouco mais de cinco dias para se preparar, como profissional essa primeira batalha não deve lhe ser um desafio, mas há outros lutadores que não podem ser desdenhados.

Meus músculos continuavam tensos e ainda não havia parado de pensar na destruição causada na academia. Mesmo a respiração era tensa.

— Não tenho interesse nos seus…

— Fogo e sangue, é isso que encontrará nas ruas se me irritar com teimosia arrogante. - interrompeu, a face ameaçando um lampejo de fúria e a voz tornando-se mais alta. - Você lutará. Isso é tudo. Tratarei de enviar homens para buscá-lo quando chegar a hora. 

Esperei até que seus passos sumissem atrás da porta para erguer-me da cadeira.  A mudança súbita na entonação havia me feito parar, ouvir e hesitar. Até a fúria pareceu ter se escondido sob alguma pedra. Quando o oficial atravessou o batente ao ouvir o som de uma pancada no metal encontrou a mesa caída e meu pé latejando.

 

— Vê se anda na linha. - me disse o guarda ainda aquele dia quando fui solto. A queixa fora retirada e o arquivo sobre o ocorrido apagado.

Fabricia estava na calçada junto a um homem que não esperava ter de encarar naquele momento. Nossas íris cruzaram sobre o ar fazendo meu estomago se revirar. Fiquei parado após o batente. Ele tão pouco fez qualquer menção de que sairia do lugar. O vento assobiava e os pneus dos carros cantavam enquanto ao nosso redor o mundo seguia intacto.

— Ei, presidiário! - a garota zombou impedindo que o silêncio fincasse-se por mais tempo. - O que faz fora de sua cela?!

— Só tomando um ar, oficial. - respondi descendo os três degraus que nos separavam. A leveza dela foi capaz de me tirar a hesitação.

— Acho que prevejo uma pizza paga com seu dinheiro em um futuro próximo. 

Não trocamos palavras, Pablo e eu, mas sabia que na sua garganta estava presa uma insatisfação relacionada a minha aposentadoria no boxe. Ele costumava falar da luta que teríamos de forma tão apaixonada que era difícil imaginar como não poderia estar chateado. E a academia depredada só tornava a situação pior. Cada vez que me olhava suas pálpebras se apertavam e os lábios abriam uma fresta que logo fechava-se sem que nada houvesse saído. 

 

Depois que nos despedimos passei no meu apartamento para tomar um banho e trocar de roupa. Após isso segui direto às ruas com o intuito de correr. Meu corpo tinha de estar no seu melhor se quisesse fazer o que possuía em mente.

Shadow boxing, treinos básicos diversos e mais corrida. Agi como em véspera de luta pelo restante da tarde. A noite, quando o crime respira mais vivamente, meus punhos lamberam sangue e evocaram terror. Deixei toda a lição acerca do autocontrole de lado e abracei as memórias das surras que levei nas ruas, das crianças no orfanato fazendo-me de alvo para piadas cruéis e do modo como me senti desamparado quando meus pais desprezaram os sonhos bobos de profissão que só meninos novos têm. Todas essas histórias do passado a princípio me fizeram querer vomitar e tive de varrer os olhos com as costas das mãos para lágrimas não escaparem, mas no momento que decidi que não fora minha culpa percebi o quanto desejava enterrar os punhos nas pessoas. E as ruas estavam cheias delas. Traficantes, criminosos vigiando lojas e outros simplesmente rondando a área. Ninguém me chamaria de vilão por bater neles.

 

Repeti aquilo dia após dia, encontrava um solitário criminoso num lugar deserto, ou uma dupla, e acertava-os com combinações tão velozes e fortes que podia escutar os ossos rachando do outro lado. 

— Parece ocupado. - as palavras vieram de alguém por quem acabara de passar. Virei-me para fitar a pessoa. Ela vinha do trabalho e ainda carregava no corpo o uniforme. - Ei, que tal me preparar um jantar? Parece que está em ótima forma.

Assenti com a cabeça, de repente lembrando que havia algo além dos homens que iria espancar quando a lua surgisse no céu. Tentei falar que passaria lá após tomar banho, mas saiu uma sopa desengoçando e esganiçada da minha boca ao invés disso. Eu fiquei sem ação, parado e envergonhado. Fabricia me olhava, seu rosto continuava quieto, sem contorções além do curto sorriso e olhar tranquilo. Senti suor começar a formar-se em minha face. Não fazia a barba há um tempo, nem aparava as sobrancelhas, além de estar quase cinco dias sem tomar banho. Desviei o rosto, fingindo prestar atenção ao fusca azul que acabara de passar.

— Estarei esperando então, traga os ingredientes e tente chegar antes das nove. - ela falou por fim. - Ou serei forçada a pedir duas pizzas tamanho grande e pôr na sua conta! Não ouse me provocar!

Ela riu, aproximou-se e me deu um abraço antes de seguir seu caminho.

 

Segui até a casa dela após passar na minha própria e tornar meu odor insuportável ao menos ignorável através de esfregação intensa e banho de perfume. Também peguei uma sacola e coloquei tomates, cebolas, pacote de cuscuz e de salsicha dentro, e mais uma mochila onde coloquei o livro cujo filme Fabricia elogiara. Senti-me um pouco mal por saber que ao terminar de lê-lo ela começaria a achar fraca a versão cinematográfica.

A casa dela encontrava-se numa rua sem saída na qual crianças brincavam ao ar livre e roupas ficavam estendidas nas janelas gradeadas de algumas residências. Eu achei saber o que é pobreza uma vez quando pequeno, mas tanto no momento em que perdi meus pais e fugi dos meus avós quanto no que fui visitar Fabricia da primeira vez, notei que a criança que eu era durante o período onde ostentava um pai e uma mãe estava alguns degraus acima no quesito estilo de vida. Um quintal dos fundos amplo, uma área da frente grande o bastante para brincar com os amigos e um número alto de roupas para escolher, tinha tudo isso, mas dificilmente poderia dizer o mesmo de algum dos moleques correndo ali trajando roupas puidas e usando bolas desgastadas com casas que pouco mais eram que um quadrado pequeno e disforme. Bati na porta com a mão que não segurava a sacola, nem a mochila ou a caixa de chocolates comprada na mercearia da esquina que quase não sobreviveu aos ´´Oh, tio, me dá um``.  Fabricia a abriu e, diferente do que esperava, nem tinha trocado de roupa. O cheiro do emprego ainda pairava em si. O odor de suor por baixo do forte álcool. 

— Ah, você me pegou. Não tomei banho, desculpa, mas arrumei a casa. Agradeceria se fosse você. - ela disparou as palavras e gesticulou para que entrasse.

— Tá bom. - já havia conseguido recuperar minha dicção a aquela altura. - Mas a maior parte do chocolate vai ser meu.

A ouvi gemer em desgosto e amaldiçoar meu nome. Por um instante meus lábios se separaram e um som irrompeu, atravessando a brecha.

Com um certo espanto percebi que era uma risada.

 

Nunca deixei de ter a sensação de que residira mais do que uma pessoa ali. Marcas nas paredes denunciando os porta-retratos que já houveram, alguns rabiscos indicando a altura de crianças e a mesa grande com várias cadeiras castigadas pelo uso e pelo tempo. Parecia tanto com o que restou da casa onde cresci depois que a vi novamente após anos. Mesmo sobre o cuidado dos meus tios, ainda existiam traços da minha família pairando como manifestações pós-morte. O talho na janela do fundo, as plantas no quintal, a casa de cachorro erguida com cimento e madeira, os locais em que quadros eram pendurados e mais pequenas lembranças de eventos sobre certos pontos que fluíam ao observar o cenário no qual decorreram. Me pergunto se aquele ar pairando na casa de Fabricia fora deixado pelos pais e irmãos dela também. E se possuiram fim similar. 

Fiquei sentado no sofá enquanto a esperava. Ouvi, apesar de ser sutil, ela cantar sob o som da água escorrendo por seu corpo, lambendo sua pele, antes de tocar o chão. Queria perguntar. Saber mais. Não conhecia a história acerca dos pais dela, nem de onde veio ou porque vivia só. Sentia que depois de Mariana ir embora não restara ninguém e naquele momento eu seria capaz de chorar por causa desse sentimento de solidão. Na estante não haviam livros, apenas cd´s velhos, enfeites baratos e a televisão. Poderia ser um começo, tentar aumentar a intimidade apresentando alguns livros e conversar tendo-os como centro. Tinha algumas teias de aranha em cantos próximos ao teto. Vi um cesto de roupa cheio encostado a parede da sala seguinte e um pequeno pedaço da cozinha que definitivamente não dialogava com um pano de chão há tempos. Esse desleixo me acometia ultimamente também. 

A enxerguei correr vestida com a toalha até o quarto. Aquela mulher de piadas bobas e energia alta possuía um lar que não refletia isso. Existem pessoas que são apenas desleixadas, não duvidava, mas Fabricia costumava pentear os cabelos, vestir roupas bonitas e comentar ao avistar organização precária em eventos. Crer no ´´simplesmente desleixada`` parecia preguiçoso. Queria estar do lado dela como desejava que estivesse do meu, se importando e tentando cuidar dos pequenos detalhes que geralmente não são notados. Olhei para a bagunça que me cercava e decidi qual seria minha próxima ação.  

Fabricia saiu do quarto logo após eu ter voltado ao sofá. Vestia uma camisa branca de manga curta e um short colorido. Um olhar travesso surgiu em sua face quando me pegou ajeitando o lençol do movél dela após terminar de varrer o chão.

— Então estava mexendo nas coisas de uma garota enquanto ela toma banho? Que boxeador pervertido. - ela soltou. - Mas e a comida?

Aquilo me fez parar. Movi a cabeça em direção a sacola sobre a mesa junto a mochila que havia trazido. Tinha esquecido completamente.

Quando terminei de cozinhar Fabricia já começara a reclamar que o livro estava errado.

— Eu vi o filme, nem a idade do moleque tá certa. - suspirou. - Tenho certeza que o maluco por trás disso deve tá rindo da sua cara.

— Acho que poderia ao menos colocar os pratos. - disse. Mas ela negou-se e continuou. 

— Olha, até a descrição do menino bode ficou zuada, esse tal de Rick ao menos viu o filme? 

— Acredito que sim.

— Não parece nem um pouco, que sujeitinho mais cara de pau! Além de colar, cola errado.

Sentamos para comer, Fabricia na cabeceira da mesa e eu a direita dela. Minha mão havia percorrido metade do caminho com a colher no momento em que ela voltou a falar.

— Está tudo bem? - questionou.

Não entendi a pergunta. Ela falou clara e concisamente, mas não conseguia entender como tais palavras existiram ali. Não encaixava, não era para surgir daquela forma. Ria das frases leigas que soltava a despeito de um livro um instante atrás e agora o rosto daquele traficante de ontem, a expressão que denunciara extrema dor após eu tê-lo acertado, surgia acompanhado da lembrança dos gritos estrangulados que ouvi dos homens que machuquei nos últimos dias. Meu corpo ficou imóvel até que retornei a mim.

— Claro e você? - o tom poderia ter a convencido, caso fosse surda. A vi suspirar e tornar os lábios uma linha reta.

— Seus punhos estão machucados, treina todos os dias mesmo sem ir na academia, não atende ligações, está com olheiras, há alguns cortes na sua face e manchas roxas nos antebraços. ´´Está tudo bem?`` não é a pergunta certa, desculpa, e sim ´´O que está havendo?``. Bom, o que está havendo?

Larguei a colher de repente sentido o cansaço por detrás de todas as coisas que ela observou. Só pude dizer o que veio a minha mente após aquilo.

— Não é importante. - disse e enfiei um porção de comida na boca.

— É, talvez não seja, afinal está tudo bem para você, não é? Mariana foi embora, então qual o problema, não há mais ninguém no mundo. ´´Posso simplesmente morrer, se for para ser.`` é o que pensa, né? Esquece de mim, de Pablo, do João e da Ana, da garota com depressão que se afeiçoou a você e te ensinou xadrez. Nossa preocupação não lhe interessa! Como vamos nos sentir? Já pensou nisso? - ela parou, os punhos estavam cerrados sobre a mesa e a mandíbula tremia de leve. - Ninguém quer que se machuque, mas parece não fazer diferença. Boatos correm sobre o vento. Acha que não sei que é culpa sua os recentes casos de espancamento na região? Eles são perigosos seu idiota! Vão te pegar uma hora ou outra! Então, por favor, para!

Fabricia arfava com as íris úmidas e o rosto vermelho. Eu queria que alguém se importasse, mas diante daquele discurso, percebi que o mais provável é que fosse eu quem não desse o devido valor aos outros. Vi toda a raiva sobre Boneco tremeluzir, incerta, insegura, quando as palavras dela me fizeram questionar o motivo de estar atacando seus subalternos. Eu não consegui lembrar.

— Me desculpe, não havia olhado por esse ângulo.

A comida foi devorada em silêncio após isso.

 

Acabamos no sofá assistindo um dos filmes que estampavam a capa dos cds que observei ao realizar uma pequena limpeza. O escolhido era uma comédia romântica na qual uma garota era apaixonada pelo melhor amigo que morria de amores pela namorada. Ele é traído e então a protagonista começa a investir mais nele. Mostra preocupação e o convida para fazer coisas. No fim o cara volta para a namorada, mas a heroína parece ter superado. Depois das palavras que trocamos me senti grato pela leveza que o filme trouxe.

— Que idiota, Clare era claramente a melhor escolha. - comentei no final.

— Será? Se Mariana voltasse hoje dizendo o quanto se arrepende, o que faria?

— A perdoaria, óbvio.

Fabricia gargalhou por um tempo, quando percebi que iria demorar para voltar a se conter coloquei outro filme. Dessa vez um com ação e lutas frenéticas. O punho dela agarrou o controle, mesmo sob a risada, e desligou a televisão.

— Não. - disse se esforçando ao máximo para parar. - Chega, você precisa dormir e amanhã tenho trabalho.

— Ok.

Ela me olhou hesitante. 

— Entendeu o que eu disse, né? Nos preocupamos.

— Sim, entendi.

— Bom garoto. - sorriu.

Fabricia bocejou e me enxotou para fora dizendo que tinha um longo dia de trabalho amanhã e outras coisas do gênero. A noite mal havia começado e os nós dos punhos latejavam em expectativa do que viria a seguir. Apenas por respirar o ar noturno já podia perceber tudo que dera início a minha raiva voltando. A academia em pedaços, o sujeito apontando uma arma para Fabricia, Boneco ameaçando as pessoas que tem relação comigo. Era quase como vivenciar de novo, cada pedaço de ira se amontoando e me fazendo enrijecer os músculos.

Mas em algum lugar dentro de mim eu sabia que Fabrícia não se importava com isso e que o velho não pediria para vingá-lo. No fundo sabia que não era realmente por eles.


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Notas finais do capítulo

Não morri mesmo, juro, mas tô meio depremido e por consequencia sem muita criatividade para as perguntas de sempre. Em compensação postarei mais capítulos.