A luta a ser travada escrita por MT


Capítulo 10
Capitulo 10- Morte


Notas iniciais do capítulo

Continuo vivo...



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A chuva começou a cair quando meus passos ecoaram por sobre a calçada do armazém. Estava frio e o vento balançava minha roupa e cabelos com selvageria, mas pouco disso sentia abaixo da densa camada de ira que percorria as veias e artérias no lugar do sangue. Chutei a placa de metal que servia de porta, uma, duas, três, o pé gemeu abaixo do tênis e o som metálico soprou sob as gotas d'água até começarem a ergue-la. O ruído pesaroso do metal arranhou a atmosfera tão sonoro quanto um raio, porém lento e lamurioso. Vi rostos duros e lisos, negros e brancos, ao menos uma dúzia, do outro lado, dentro da enorme extensão do galpão e, como num bom clichê, ao centro amarrada numa cadeira a figura pálida de uma mulher. Era bem iluminado o depósito, mas tinham poucos caixotes e muitos sujeitos de pé acima do assoalho poeirento e duro. Entrei rápido e com passadas firmes escondendo o frio que arrepiava meus nervos. Assim que começara a pôr-me perto da garota o portão foi fechado e os sujeitos puseram-se a fechar minhas opções de fuga. 

Agachei para fitar Fabricia. Ela estava inconsciente, pálida e manchas roxas cobriam alguns pontos da face e corpo. Minha respiração perdeu-se por um instante e até o peito pendeu em silêncio antes de colocar um dedo sob seu nariz e sentir o fluxo de ar. Lágrimas por pouco não despencaram de meus olhos naquele momento.

— Você tem sido um pé no saco, mas dar uma surra nos rapazes na frente do chefe? Realmente deve pensar que somos cãezinhos dóceis. - a voz veio de trás e gritos de concordância e xingamentos contra mim ascenderam de todas as direções. - Você precisa demonstrar alguma humildade, não é?

Coloquei-me de pé e virei para encarar o orador. Um robusto, careca e de semblante desdenhoso, sujeito. Vestido de calça jeans e camisa branca, de botões e manga longa, justa rente a massa protuberante de seu corpo. A luz alva e potente das lâmpadas o dava um aspecto quase tão leitoso quanto Fabricia, porém imensuravelmente mais desagradável à vista. Com a chuva servindo-lhe de palco de fundos e todos os homens de negro ao seu redor eu esperava ver algo menos similar a um grupo de orfãozinhos cruéis, mas os rapazinhos que surraram-me  na infância era tudo que conseguia enxergar ali. Meus punhos fecharam-se com força e tive de esforçar-me para não deixar minha face tomar uma contorção furiosa. Havia muito em juntar o odioso agora com o incômodo antes.

Obriguei-me a respirar fundo e por a cabeça no lugar, algumas risadas zombeteiras soaram, mas já não podia dar atenção para algo assim. A chuva caia ensandecida sobre o teto metálico e o odor de terra molhada invadia o galpão cravando suas presas em minha narina. Estava cercado, molhado e nervoso demais para sair dali vivo.

Então parei de focar no agora e analisei os fatos. Deduzi que meu cargo era o de uma espécie de protegido do Boneco, por mais irritante que eu tenha sido ao atacar seus traficantes e relutar em obedecê-lo, suas ordens mantiveram-me o pescoço intacto, não era provável que fossem me matar. Porém aquilo não era obra do chefe deles, era pessoal e não podiam dar uma surra em mim sem irritarem seu patrão, mas matar Fabricia não faria qualquer diferença nas suas vidas. Visto isso chegamos a humilhação, onde irão fazer com que eu haja ridiculamente para saciarem o seu ego. Recuso e a garota morre, parto para a briga e eles reagem com  os punhos sem usar das armas, mas ao estarem suficientemente cientes do perigo matam a mim e a ela. Só restava uma opção ao que parecia, e esta também não soava muito melhor que as demais.

— Então isso é um motim! - disse com uma entonação surpresa que trouxe confusão as expressões ao redor. - Pelo bom Deus, vocês pretendem derrubar Boneco e dar início a sua própria liderança!

— Que porra cê tá dizendo? Enlouqueceu? - alguns riram e trataram de chamar-me de louco.

— Isso certamente falhará! Ouçam o que digo! - recuei até Fabricia falando sobre quão traiçoeiros estavam sendo, pus ela sobre as costas sem parar de disparar tolices pela boca. - Eu mesmo porei fim a esta atrocidade! Boneco ouvirá, oh se ouvirá! Não há vivalma que apoie tal vil atitude!

— Já está começando a irritar, seu retardado de merda. - ele levou a mão para trás e começou a tirar algo de dentro de um apoio de couro.

— Como ousa, seu maligno conspirador, alcunhar-me assim!? - falei indo na direção dele, visando a saída às suas costas. - Irá padecer no canto mais sombrio do inferno! Oh se vai, mas antes terá uma conversa com Boneco, oh se terá!

  O revólver acertou meu rosto e quase fez com que caísse. Senti o sangue escorrer da bochecha onde a arma tocara sob uma dor estridente, havia atingido um osso. Escutei a pistola ser engatilhada antes de virar o rosto para frente e fitar-lhe o cano. De repente as pernas afrouxaram fazendo-me desequilibrar por meio instante debaixo do peso de Fabricia. Suor frio formava-se e derrapava junto a água da chuva na minha pele. Talvez aquele fosse o fim, molhado, frio e cruel.

— Não podemos matá-lo. - alguém disse pousando a mão no ombro do homem que empunhava a arma e mentalmente concordei com aquele sábio sujeito. - O chefe não gosta que quebrem seus brinquedos, lembra-se do Alf?

Ele olhou para o colega e depois para mim, então o grito do revólver ecoou como um trovão dentro do armazém. Sangue e pedaços de carne choveram salpicando os mais próximos com restos de cadáver. Meus olhos ficaram imóveis mesmo quando foram atingidos por gotas do líquido rubro. Deitei os joelhos no chão, trêmulo, fazendo esforço para não permitir que Fabricia despencasse. A cabeça do sujeito tinha explodido e o corpo pareceu tentar ficar de pé por um quase imperceptível momento. Depois desabou para o chão inerte num baque surdo que estranhamente pareceu ecoar por meus ossos.

— Talvez o louco tenha razão, isso é mesmo a porra de um motim! - berrou abaixo do sangue e carne que cobriram-lhe parte da face e corpo.

Então dezenas de disparos soaram atingindo-o, destroçando-o até tornar-se uma estranha escultura disforme de carne. Sob isso fui coberto por mais restos de defunto. 

— Perdi o tesão, vamo embora. - disse um deles. - Ah, acho bom que saiba que isso nunca rolou, tá ok?

Confirmei com um aceno de cabeça.

— Ótimo. 

Uma ambulância chegou ao local meia hora mais tarde e a polícia, pelo que os jornais noticiaram no dia seguinte, trinta minutos após isso. Fabricia abriu os olhos, mas a dor de ter costelas quebradas, o úmero do braço esquerdo rachado e diversas manchas rochas de pancadas, e provavelmente concussões, a fez agonizar até o enfermeiro dá-lhe sedativos. Fui junto, quieto, ainda incapaz de tirar a cena da cabeça enquanto  faziam-me perguntas. Sequer me lembro delas, mas a forma monstruosa que aquele homem tomara ao ser baleado e a cabeça do outro sendo explodida, disso recordo como se houvesse um quadro da cena gravado no meu cérebro.

A noite foi-se depressa naquele quarto de hospital. Quando finalmente afastei a cabeça do acontecido a luz do sol começava a invadir o recinto, enfermeiras entravam e saiam e um médico veio fazer perguntas. Respondi com o máximo de verdade a que me atrevi, ele não pareceu ser enganado, mas não disse nada. A polícia apareceu bem mais tarde. Um homem grande e robusto com cabelo liso e mãos nervosas, trajava o uniforme habitual da sua profissão e vinha acompanhado de um sujeito alto e esguio com olhos grandes no rosto magro e chupado. Não fizeram questão alguma, ao invés disso repassaram comigo a versão que deveria confirmar a imprensa e a qualquer curioso. O caso seria abafado e eu não seria incomodado. 

Fabricia fora posta num quarto do hospital após a cirurgia. Estava branca como queijo e os cabelos loiros pareciam menos dourados. As janelas davam vista para a cidade, o concreto e o aço, e uma brisa suave adentrava o local junto a luz do sol, mas não poderia lembrar de momento mais sombrio. Cada vez que olhava para ela e não a via erguer as pálpebras um perverso frio percorria meu estômago. Poderia ter vomitado as tripas ou desatado a chorar mil vezes, mas não fiz nem um nem outro de algum modo, as lágrimas secaram e as tripas fincaram os pés na posição que se encontravam. Engoli aquilo e esperei, com a estranha sensação de que se eu ficasse a vigiando Fabricia não morreria. Não consegui comer, bebi água algumas vezes e urinei, sempre que saia me apressava a voltar. Via o cadáver do garoto e dos homens que morreram no galpão e minha mente imaginava Fabricia em seus lugares. Era como ser esmagado lentamente por uma prensa.

Adormeci pela tarde algumas vezes sentado na cadeira posta ao lado do leito. A fome veio após o último desses cochilos. Comi o sanduíche que haviam me trazido e pedi a enfermeira que comprasse mais alguns e um refrigerante. Estava acordando do pesadelo, mas ele continuava real. Fabricia inconsciente, o garoto com quem fiz sparring morto e aquela cena de assassinato de revirar o estômago, não desvanecia da memória como um sonho ruim deveria fazer. Os braços de Mariana e seu calor faziam uma grande falta naquele momento.

 

— Vamos. - o homem estava no batente da porta, trajando terno e óculos escuro. Era negro, com um e noventa de altura mais ou menos, de braços e peito grandes. 

Por mais quente que meu sangue tenha ficado, mais apertado que meus punhos tenham fechado-se ao ver alguém relacionado a Boneco, acenei positivamente e me pus de pé. Aquela era a noite em que tudo poderia acabar se as maquinações houvessem funcionado e meu cúmplice já tivesse amarrado a corda em volta do pescoço daqueles criminosos. Direcionei um sorriso de despedida a Fabricia e disse que tudo iria acabar bem.

Acompanhado pelo alto sujeito fui até o carro, uma ranger rover negra como ébano. O veículo conduziu-nos velozmente entre as ruas, ignorando sinais de trânsito e assustando alguns drogados desavisados. Ninguém lá dentro disse nada enquanto mergulhavamos na noite. Mantiveram os lábios lacrados e as mãos sob os sovacos, fitando algo, caso  não estivessem de olhos fechados abaixo dos óculos escuros, fato que não tinha como saber sem perguntar, coisa que não faria.

Passamos pela Rua do Turista e pela Alameda dos Macacos, seguimos reto e viramos a esquerda. O trajeto de repente soou-me familiar. Observei mais atentamente enquanto os edifícios e as marcas da cidade passavam do outro lado da janela. A igreja quadrangular, a casa da carne, a filial da universal. Naquele ritmo logo chegaríamos no estádio negro onde o time de futebol da casa fora destroçado por um outro qualquer e nunca mais dera sinal de vida. Era um lugar impregnado de um mal sentimento, algo agourento e tenebroso, para os antigos membros da equipe pelo que ouvi de um dos ex-integrantes. O carro parou na frente dele entre uma limusine e quatro motos caras demais para que eu sequer sonhasse em tocá-las. Senti um tremor de expectativa ao descer e perceber o ar noturno roçar na minha pele. Estava ali, o dia decisivo também e aquele homem. Dei um passo firme em direção ao estádio. 


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Notas finais do capítulo

Stay high suckers!



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