A luta a ser travada escrita por MT


Capítulo 9
Ansiedade


Notas iniciais do capítulo

Não morri...



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O primeiro golpe raspou-me a bochecha, mas a resposta que lancei, um counter digno de uma pintura, fez com que o gordo Tom cambaleasse para trás, arquejasse e caísse sobre um dos joelhos. O rosto do sujeito estava vermelho e sua boca de lábios grandes puxava o ar como um cão faria. Houve alguns gritos de zombaria por parte dos homens de Boneco, porém o próprio assistia em silêncio. Minha língua coçou para convidá-lo ao ringue.

Estávamos num ginásio rico na zona abastada da cidade que pertencia a um dos bonecos do Boneco. O edifício tinha uns quinze metros de altura e estendia-se amplamente a esquerda e direita. Negro e vermelho, com espelhos rubros e teto em semicírculo externamente, por dentro alvo e azul, com ilustrações de grandes atletas em alguns cantos das paredes e frases motivacionais em outros. Repleto de equipamentos e dotado de dois ringues de boxe. 

Ainda lembrava dos vidros quebrados, das luvas, dos sacos rasgados e do olhar morto do treinador. Criminosos me causavam desejo de sangue, mas naquele momento traziam o lado mais sombrio da minha mente á tona. Então quando senti o punho sob o almofadado da luva enterrando-se no rosto de um de seus capangas, não tive qualquer ímpeto de perguntar se estava tudo bem. Cansaço, dor e medo, de algum modo pude superá-los apenas tendo em mente o que eles fizeram.

Mandei à lona três no primeiro round, foi só depois disso que viram quão útil poderia ser o protetor bucal e capacete. E começaram a mostrar desafio.

Alguns me encurralaram no corner, apenas para que eu invertesse nossas posições com um cruzado e uma movimentação básica. Outros pressionaram-me com torrentes de ataques, apenas para terem seu ritmo compreendido e serem vítimas de um counter. Teve aqueles que ousaram tentar usar boxe, apenas para acabarem esmagados sob a diferença de perícia. Mas no fim, como no começo achei erroneamente estar, eu ficara tão acabado quanto um cadáver.

Meu corpo pesava o suficiente para que durante aquela manhã, horas antes, parecesse feito de pena, meus pulmões exigiam mais do que os dava e minha cabeça concordava que já chegara o momento de parar. Boneco levantou-se da cadeira posta ao lado do ringue. O olhar afiado novamente varrendo a superficie do meu rosto. 

— Algum problema? - perguntei.

— Não.

E foi embora seguido por seus homens deixando pairar que eu teria de voltar a pé para casa. Praguejei e amaldiçoei o desgraçado enquanto caminhava pelas ruas noturnas vestidas do laranja dos postes. Por vezes acreditei que fosse morrer quando minha vista turvava-se e às paredes eram atribuídas o cargo de muletas. 

Após o banho, depois de me deitar e fechar os olhos, o vi. Os músculos grandes e definidos, as luvas vermelhas e manchadas de rubro, a expressão selvagem e fria de um tigre, o cinturão que trazia na cintura, o som que fizera ao acertar aquele homem. E voltei a abrir os olhos com suor frio a descer pela testa. Marcus Feliciano era um início tão aceitável para o agora quanto a ida de Mariana e a bebedeira. Ele trouxera de volta os tremores, o receio, o desejo de fugir e desistir. O medo viera acompanhado da data em que fiquei a par dele e da luta que teríamos.



Estava fazendo um sparring quando o treinador saiu do escritório andando a passos largos e ruidosos, como era de seu feitio. Na mão trazia algo, mas tinha que desviar de Patê de Gato antes de ir averiguar quem seria, já que normalmente costumavam ser dados sobre meu próximo adversário. Patê usava estilo ortodoxo a longo, graças a seu belo footwork, alcance na maior parte do round e avançava para um infight nos últimos segundos confundido os sentidos do oponente com a súbita mudança. Era forte se o enfrentasse sem estar a par disso ou acostumado ao southpaw, mas no geral não constituía ameaça. Os socos não tinham grande força ou velocidade, só o jogo de pés possuía brilho controlando magistralmente a distância e locomoção. Forcei o ritmo da luta e o derrubei numa troca dupla.

— Vou sair agora. - disse e fui atrás das minhas respostas.

O velho esperava-me do lado de fora, como costumava sempre que detinha o nome do próximo oponente. Encostado na parede, ao lado da porta, seu olhar virou-se assim que transpus o batente. Após descurzar os braços pôs o folheto em minha mão. A princípio o rosto simples, cabelos razos e escuros, olhar frio e focado foi lidado com minha seriedade habitual, mas o nome no papel logo trouxe um pouco de agitação a meu corpo. Um explodir excitado e um certo toque de dedos gélidos sobre a espinha.

— Já organizei uma série de vídeos das lutas do campeão, assista-as, faça shadow com elas em mente e também sonhe com o estilo desse homem. - era a primeira vez que dizia algo acerca do sujeito que enfrentaria antes de voltarmos para dentro. Foi então que notei um tremor nos lábios do velho, uma luta que travava para mantê-los numa linha dura. Aquilo agitara-o também, percebi, um título nacional não aparecia ao alcance com boa frequência.

— Sim, senhor. 

Disse a mim mesmo que traria o cinturão para casa, pena que a certeza desvanecesse a cada luta do campeão que assistia. Cada soco, nocaute e passo carregavam maestria, força e velocidade que nunca antes havia visto num único lutador, ele pouco soava a alguém que pudesse ser derrotado. Todos os dias até a luta sentia que meus golpes não estavam bons o bastante ou rápidos ou apurados tecnicamente o bastante para encarar o desafio. Sempre que simulava a luta na imaginação via minha cabeça sendo violentamente atirada contra a lona, meus punhos atingindo inutilmente sua guarda e o grito desesperado do velho vindo do corner. E fora dela o sorriso que às vezes escapava do treinador devido a ideia de obter o cinturão. Eu não conseguia enxergar a vitória, mas forçava-me a testar diversas fórmulas todos os dias. Meu espírito ficava despedaçado a cada novo cenário onde era esmagado que surgia em minha mente. Sentia vontade de dizer ´´não dá`` e disso não passava, pois nunca poderia falar algo assim em voz alta. 

— Será bom termos o título, depois de tantas vitórias não é mais do que o esperado. E vou ter material para escrever, uma vitória dupla. - Mariana estava tentando transmitir ânimo como fizera tantas outras vezes. Aquilo fez meu coração comprimir-se no peito. Mas sorri e disse que seria bom que escrevesse exagerando meus feitos.

— Já disse que ele não é você. É rico, loiro e de íris verdes... e suficientemente esperto para propor a namorada em casamento. - respondeu com um piscar de olhos sugestivo. 

Nem aquilo mudou algo ou trouxe-me de volta a realidade. Marcus Feliciano mantinha-se no fundo da minha mente fuzilando cada passo meu com o olhar negro e profundo. Vencê-lo era um termo que ainda não podia conceber, depois da luta isso não mudou. 



Sentia menos agitação que antes. Apesar do quão palpitante meu coração se encontrava no escuro sob a silenciosa madrugada, não soava ao terrível desespero da primeira vez. Há mais chances quando há menos medo, pensei tentando dormir. Não tremia por arrepios gélidos frequentes ou suava frio ao checar o calendário ou pensava constantemente em fugir para longe.  E agora há menos medo.

 

A manhã chegou antes que pudesse perceber e me vi levantando para fazer as pequenas coisas que antecedem o treino. Banho, escovar os dentes, tomar café. E sai pronto, porém não demorou nem o tempo que levei para transpor o primeiro degrau para o treino se tornar uma caminhada.

Do lado de fora vi o de costume, silêncio sendo rasgado suavemente pela adaga das pessoas que começavam a abrir suas lojas e suas janelas e daqueles que cedo iam trabalhar. Há tempos, quando Mariana vendeu um número impressionante de livros, não arrumava um emprego comum numa cadeira ou nas ruas, mas ver o rosto dos homens e mulheres indo para sua empresa ou onde quer que realizem a profissão fez-me lembrar que talvez Mariana não tenha sido a única coisa perdida quando ela foi embora. Um salário logo se faria necessário.

Na praça solitários corredores e grupos de idosos faziam o melhor para não deixar o local aos lamentos do ar e arremete das águas, mas certamente o rio e a ventania prosperavam sobre eles. Assim como a teimosia, a falta de escolhas com menos vítimas, levava a melhor contra meu impulso de deitar-me na cama e desistir da perigosa relação em que me envolvera com criminosos e fugitivos. E a de voltar a encarar os punhos mais fortes que já senti chocarem-se contra mim. Eu ri, mas certamente não foi por qualquer boa razão.

 

Fabricia virou o rosto quando a vi do outro lado da rua e meu peito apertou-se. Tive que fazer o mesmo, com a luta mais difícil tão próxima tentar consertar algo cujo processo poria pressão extra não era uma decisão inteligente. E tinha receio de estar na lista negra dela por não reagir a declaração com um sim, por ter ignorado seu conselho e me afundado ainda mais entre os ladrões e assassinos daquela cidade,  enfrentar sua dor e raiva não era ideia que conseguisse pôr facilmente em prática. Voltei-me ao treino, a caminhada em que o convertara, fugindo do assunto como um cachorro de um balde d'água, sem dirigir a aquilo outro pensamento. 

Acabei terminando antes de chegar no fim do percurso. A possibilidade de enfrentar Marcus Feliciano, o plano arriscado e as coisas que lidaria ao terminar juntamente a dor física feroz que sentia foram capazes de fazer-me optar por um término abrupto e um relaxamento diferente, com sorvete e netflix. Mas as batidas na porta me interromperam fazendo cada pêlo no meu corpo arrepiar-se. Levantei tenso com uma hesitação leve sobre cada passo e fui abri-la. O rosto velho e duro do homem tranquilizou um pouco minha mente.

 — Foi um belo show aquele no Queens Eventos, se o objetivo era envergonhar todos os anos de ensinamento que lhe dei. - ele atravessou para dentro e sentou na cadeira da escrivaninha. - Marcus Feliciano e como vencê-lo, está disposto a ouvir?

Fechei a porta e sentei-me na cama. O treinador sabia da luta e viera ajudar. Por essa nem mesmo eu, depois da sequência de fatos loucos e deprimentes, esperava.

— Ele é forte, rápido e possui técnica bem polida, mas você é mais veloz.

— Eu perdi. - respondi e a lembrança da ocasião acendeu uma fagulha de raiva. - Se veio para dizer o mesmo que da última vez acho melhor...

— Obviamente perdeu por minha culpa, eu disse para investir no corpo e adentrar a curta algumas vezes quando o melhor seria manter a longa e mirar olhos, nariz, queixo e têmporas, e também visar counter´s naquela esquerda. - disse me interrompendo. - Estou aqui para lhe dar minha fórmula mais segura de como vencer aquele homem, sem espaço para ousadias como daquela vez.

Mandei-o embora sob seus esbravejos indignados e tranquei a porta. Com a solitude restaurada esperava poder tirar a luta da cabeça, mas, contrariando esta esperança, ela ascendeu como uma fogueira alimentada por álcool. Os passos que imaginava que dariamos, os golpes e esquivas, a dor que sentiria ao ser atirado a lona e o som apovarante do crânio sendo rachado ou pior. Toda aquela batalha que culminaria na minha falha. Não pude continuar no sorvete.

Dei um jab no ar, depois um cruzado com a mesma mão, esquivei de um direto imaginário e acertei um upper de esquerda violento no ar. Minhas costelas gemeram e senti a carne queimar, mas fui acrescentando mais e mais movimentos até estar encarando uma versão imaginária do homem que tanto medo inspirara em mim. Esquivava, largava jabs, counter´s e diretos enquanto polia a distância, mas ele sempre quebrava o espaço com um avanço assustador e golpeava-me selvagemente. Suas capacidades físicas não eram algo que podia esperar igualar mesmo num shadow boxing. Continuei a dança, por mais vezes que o final mostrasse-se imutável e a dor rugisse por meus nervos era preferível a apenas permitir que corroesse meu interior. 

 

Após quatro dias, onde nem mesmo ousei realizar caminhadas, o telefone tocou quando a lua já pairava no lugar do sol. Quase caí ao virar-me para atendê-lo.  

A voz do outro lado soou trêmula e entrecortada por soluços, uma tensão nervosa tomou meu corpo ao ouvi-la. O timbre feminino não podia me ser menos alheio e, a facada que entender o tipo de situação em que ela se encontrava, menos profunda. Escutei cada palavra enquanto suor escorria até o queixo e pulava numa façanha suicida. As luzes da rua subitamente tomaram conta da minha atenção.

 

Fabricia seria morta. 


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Notas finais do capítulo

Alive!



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