A Donzela com Azul nos Olhos escrita por Shalashaska


Capítulo 5
Convite


Notas iniciais do capítulo

Não achei que tinha demorado tanto assim, para falar a verdade! Mas depois cima última atualização e assustei. Pois é, você pode perder a noção do tempo quando coisas ruins acontecem, mas cá estou com capítulo novo. Boa leitura!

Hm. Alerta de leve conteúdo +16.



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A luz do dia escorria para o seu fim, a barca de Rá no céu já anunciava que em poucas horas a noite chegaria. E, mesmo que um dia inteiro tenha golpeado Seth na pele, cada minuto como um grão de areia em uma tempestade no deserto, ele sentia ter feito pouco progresso. Ainda não havia sinal do jovem Faraó, Bhakur apenas brincava com o exército real através de suas próprias criaturas das sombras e, para piorar sua situação, depois que Akhinad mencionou que Seth deveria ser o próximo faraó, existia o boato de que o sacerdote havia planejado — ou no mínimo aproveitado — toda esta confusão para abocanhar o poder feito um crocodilo no Nilo.

Seth. Era esse seu nome e o nome do deus que tinha o deserto, as terras inférteis, as tempestades e a violência em seus domínios; o deus que traíra Osíris — seu próprio irmão — por inveja de seu poder. Não era um nome tão absurdo, tanto que até mesmo alguns faraós do passado tinham esta mesma alcunha e o deus não era exatamente desprezado. Seth era leal à Rá e tinha papel fundamental no combate contra Apófis. Portanto, Seth imaginava que ainda tivesse algum crédito com o povo, pois assim como o deus, ele era leal aos deuses e o faraó tinha sangue divino. Porém, custava-lhe admitir que de fato soava proveitoso demais o acaso que lhe colocara na posição mais importante do reino, uma coincidência de humor duvidoso.

Quando chegou aos seus aposentos, já com as lamparinas a óleo acesas pelos criados, o sacerdote apoiou seu bastão dourado na mesa em que estudava com Kisara, depois tirou seu adereço azul da cabeça e soltou um suspiro.

Em momentos como aquele, ele imaginava como sua vida teria sido se, ao invés de ter deixado Kisara partir sozinha quando a resgatara há anos, tivesse ido embora com ela, para um lugar distante e desconhecido. Seth nunca teria sido mais do que um homem pobre e rústico, jamais teria acesso ao conhecimento e aos luxos que o palácio hoje lhe ofereciam. Seria uma vida mais simples, mas era difícil não se deixar iludir pela possibilidade de uma vida mais calma também.

Ao lado dela.

Foi neste instante que os olhos do sacerdote foram atraídos pelo reflexo da luz na água, na direção em que a moça estrangeira tanto encarava quando estava dentro daquele cômodo: o portal que emoldurava uma área externa, um pequeno pátio privativo cercado por um espelho d'água e plantas. Era um bom lugar para descansar ou se banhar quando o calor era intenso, bastava descer alguns poucos degraus. E na água, ele viu cabelos brancos ondulando, a superfície levemente turva pelo pouco movimento de alguém submerso.

A temperatura de seu corpo caiu e Seth só se deu conta do próprio pânico quando já estava com água cobrindo seu corpo até o nível da cintura, ainda vestido. Ele não gritou pelo nome dela, não chamou os guardas e sequer parou para questionar que ali não era tão fundo assim enquanto corria. Mas saberia Kisara nadar? Ela não deveria estar ali sozinha. E se não estivesse? E se alguém tivesse feito algo à estrangeira?

Suas mãos sustentaram-na para fora d'água, trazendo-a para perto de si. Pegou-a firme pelos braços, mas ela não fez mais do que encarar-lhe de volta no susto, sem um único vestígio de preocupação — ou pior, de afogamento. Só piscou os olhos, com os cílios molhados, e mesmo com Seth segurando pouco acima de seus cotovelos, também tirou os cabelos brancos da frente de seu rosto.

“Seth!” Ela segurava-o de volta, molhando-o. Estava dividida entre estar confusa e achar graça da situação. “O que foi?”

O sacerdote sentiu o ar voltar aos seus pulmões, mas havia um tempero de irritação em seu peito pelo nervosismo desnecessário. No fim, só deseja trazê-la mais para perto e esquecer de todo o resto, por mais que tentasse também evitar olhar o tecido de linho ensopado e colado demais no corpo dela. Apenas disse, controlando seu tom:

“Você deveria estar em seus aposentos.”

“Lá não tem o mesmo que aqui. Eu só queria dar um mergulho.” Justificou-se, como se fosse óbvio. Em seu íntimo, Seth concordava que não deveria realmente pular para conclusões precipitadas — não, é claro, que fosse admitir. Ao mesmo tempo, não achava que sua reação era assim tão exagerada, afinal, Bakhur faria de tudo para atingi-los. “E os guardas me deixaram entrar.”

Ele afrouxou o aperto, mas não deixou de tocá-la. Talvez tenha sido estranho vê-lo quase sorrir no instante seguinte, no entanto mais uma vez ele era confrontado com a obviedade: sendo os boatos sobre querer ser o novo faraó verdadeiros ou não, Seth permanecia em uma posição de destaque dentro do palácio. Era um Guardião de uma Relíquia do Milênio, fato. E muitos, dadas as circunstâncias do relacionamento entre ele e a estrangeira, já consideravam-na sua consorte. Era outro fato. Então, os guardas obedecerem os pedidos de Kisara não era uma coisa estranha de se acontecer.

“Seth?”

“Eu não pensei muito quando a vi na água. Eu só…”

Estava em pânico, preocupado. Não queria perdê-la. Era óbvio e cristalino, feito o reflexo dourado na água e como o fato de Kisara parecer um pedaço do céu de Nut encarnado: ele a amava.

“É claro que não pensou.” A jovem deu de ombros e riu brevemente. Era só instinto e ela faria o mesmo.

Seth poderia amá-la à distância, divagou. Kisara não gostava de se sentir presa e ele não queria fazer sentir-se acorrentada ao seu coração ou que algo ruim lhe acontecesse; principalmente agora em que tudo desmoronava. Mas quando ela tocou seu queixo e encarou-o fundo, quase sorrindo, ele teve a certeza que ela entendia tudo o que seus lábios recusavam a admitir.

Mas será que ela enxergava também tudo o que ele via nela? Que ela era o Aket, a cheia do Nilo que fazia tudo crescer; que ela era uma lótus no meio do solo lamacento, uma flor bela entre desastres. E ao mesmo tempo ela era um dragão, feroz e divino. Se um dia ele fosse faraó, ela seria sua rainha.

Embora ela já fosse uma, mesmo sem adornos ou terras.

Seth foi acometido por outros fatos: tudo estava sim desmoronando e ele não queria amá-la à distância. Eles jamais seriam somente jovens simples e pobres, nas fronteiras do reino com uma vida tranquila e braçal. E se era mais frequente Kisara iniciar um contato físico, segurando sua mão e pedindo para ficar — embora paradoxalmente houvesse pedido para deixá-la ir, caso um deles precisasse morrer — desta vez, Seth a beijou. Segurou sua nuca, a trouxe para mais perto e sentiu-se incendiar mesmo que a água os refrescasse.

E que prazerosa agonia notar que era recíproco. Kisara abraçara-o de volta, seus lábios muito macios e o peso de seu corpo absolutamente perfeito contra o seu.

Foi tudo muito rápido, talvez porque tudo antes parecesse muito lento. Quem sabe fosse exatamente como que tinha que acontecer: lá estavam os dois, no chão do pátio degraus acima d'água. Ainda ensopados, mas não mais vestidos.

 

Seto Kaiba despertou com a voz de Kisara murmurando seu nome baixinho, em uma lembrança distante e tão dolorosamente próxima, em seu ouvido. Ele já estava na pia do banheiro do seu apartamento, ofegante e lavando o rosto com avidez, na tentativa de escapar de tais sensações no corpo. Teve medo de tomar um banho e ser acometido por outras visões devido ao contato com a água, mas quem sabe fosse melhor apagar o calor de seu corpo — principalmente da cintura para baixo.

— Porra. Porra! — Disse ele para ninguém em especial, amaldiçoando a si e a Seth.

Não queria ver seu rosto no espelho. Tinha a impressão de que estaria ao menos um pouco ruborizado e aquilo era humilhante. Apoiou seu peso na pia, tentando livrar-se das sensações de toques macios, firmes e ilusórios; e colocar mais ordem na cabeça. Seto Kaiba sabia como a história dos dois tinha começado, era uma lembrança — ou visão, ou paranóia, ou surto — que tivera outras vezes. E pior, sabia há mais tempo ainda como aquela história terminava: Kisara morta nos braços do sacerdote Seth.

O que tinha mudado então?

Era acometido por outras ilusões, uma conversa ou o sorriso dela no palácio. Era normal, ou o mais normal que isso poderia ser nessas condições. Mas ultimamente… Ah, ultimamente era como viver duas vidas: Uma em que ele sabia que a perdia, outra que ele não se permitia tê-la.

Kisara estava perto demais.

Ele demorou um tempo para se acalmar e não saiu do próprio quarto até que tivesse recuperado totalmente a compostura. Sua cabeça alternava entre coisas que tinha visto — ou pensava que tinha visto — a cicatriz que ganhara no punho ao socar o espelho do seu próprio jato, e as palavras agourentas de Ishizu Ishtar sobre destino. Nada poderia importar agora.

Achava que ainda era cedo; não tinha visto o relógio ou sequer seu celular, mas era difícil dizer o horário com o céu cinzento do lado de fora. Calhou que era mais tarde do que cogitou, tanto que seu irmão já tinha ido para o colégio e muito provavelmente sua ausência era sentida na empresa, pois Seto era sempre um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair. Mas fofocas e especulações não importavam, ele era o dono da empresa e bem poderia fazer o próprio horário, inclusive um dia de home office sem avisar ninguém.

Uma alternativa atraente, pois temia sua própria reação ao ver Kisara. Não ajudava em nada sua situação saber que estavam mais próximos desde a reunião na cafeteria, consultando um ao outro para pedir opiniões sobre o projeto do estádio e como o desenvolvimento do aplicativo de duelos prosseguia. E desgraça, ela era amigável assim como Mokuba havia mencionado e ao mesmo tempo tão firme quanto a chefe dela, Vaike Ergma, havia inferido na última vez que se viram na Estônia. Pedia café ou chá para a equipe em um gesto de cortesia — incluindo também Seto Kaiba com mais frequência — e também saia com alguns colegas à noite para comer e beber um pouco, coisa que já fazia parte da cultura local, mesmo que Seto não se envolvesse com os funcionários. Kisara habilidosa e particularmente diplomática em conseguir parcerias vantajosas para o projeto, sendo capaz de ter cotações dentro do orçamento de material e design arquitetônico conforme ele tinha imaginado.

Felizmente ele conseguia manter certa distância daquele encanto ao trabalhar nos hologramas do estádio, que seriam substancialmente mais complexos, brilhantes e aprimorados da última versão lançada. Isso lhe dava tempo para não pensar em coisas envolvendo areia ou passado.

Ao menos um pouco de tempo.

Às vezes, ele queria que Kisara tivesse um namorado ou fosse casada; quem sabe isso colocasse um impedimento definitivo que ele não ousaria quebrar. Ou quem sabe isso acendesse aquele seu perigoso instinto competitivo. Se ainda fosse o contrário e Seto tivesse um relacionamento — daqueles esporádicos, temporários e rasos que por vezes tinha — de nada adiantaria: ele suspeitava que ainda ficasse intrigado demais com Kisara.

O receio de vê-la naquele dia cedeu lugar à súbita curiosidade. Ela não dormia bem de tempos em tempos, isso estava estampado em sua face cansada e suas olheiras. Seto havia notado, é claro. Primeiro pensou que era dificuldade de se adaptar ao fuso horário, mas… Seria ela acometida por visões também? Por sonhos de uma outra realidade que a perseguiam? Era uma pergunta que o incomodava há semanas e, se ela tivesse as mesmas visões que ele, nos mesmos instantes… Bom, daria para notar uma reação diferente nela naquela manhã, depois de um sonho daqueles.

Seto Kaiba arrumou-se rápido para o trabalho, dirigindo ele mesmo um de seus carros para chegar na empresa. Estava disposto a testar a teoria, então logo adentrou seu escritório depois de cumprimentar alguns funcionários. Deixou a transparência dos vidros cristalina, a fim de ver Kisara ainda na segurança de sua própria sala.

Horas se passaram e nada.

A rotina na Corporação Kaiba, exceto o aparente sumiço da senhorita Kask, seguia como sempre: muito trabalho a se fazer, detalhes a acertar e índices promissores na Tōshō, segundo os relatórios mais recentes. Era quase entediante, tanto que ele decidiu ocupar-se com a programação dos hologramas novamente, pois aquilo ao menos era uma tarefa desafiadora o suficiente para que não encarasse o vidro a cada cinco minutos ou fosse arrastado para outras memórias, fossem elas recentes ou milenares. E assim tudo correu até pouco depois da hora do almoço, embora Seto Kaiba não tivesse comido nada.

Sua irritação cresceu e ele já não conseguia mais se concentrar. Kisara tinha simplesmente faltado? Não, ela não fazia o tipo de pessoa irresponsável, entretanto não havia aviso algum no Line ou em seus e-mails. Pior: Mokuba ainda demoraria a chegar, pois tinha enrolado para fazer outros trabalhos escolares e Seto o obrigou a terminar antes de vir na empresa, depois que saísse da escola. Portanto, ele não tinha o irmão pequeno para saber de mil e uma coisas da Corporação Kaiba sem sequer sair da sua sala. Teria acontecido alguma coisa? Kisara morava sozinha, não?

Da irritação à ansiedade ao medo. Aquela sensação fria e urgente subiu pelo seu peito e, quando ele se deu conta de si, já estava de pé e com alguns papéis em mãos. Seto Kaiba podia simplesmente perguntar para qualquer um na empresa apenas onde ela estava, mas não queria ser tão óbvio e direto, por mais que isso lhe soasse como infantilidade. Ao fim, aproximou-se de um funcionário distraído na sala seguinte, conferindo a própria tela enquanto o resto equipe inteira fazia os serviços de programação da comunidade online de duelos.

O rapazote nem notou a presença dele até que Kaiba colocasse papéis em sua mesa e declarasse:

— Eu preciso que faça uma simulação dos hologramas no projeto do estádio até o final da tarde, mas é melhor que faça e me entregue os resultados o quanto antes. — O funcionário parou imediatamente o que estava fazendo e assentiu um gesto nervoso, pegando os papéis para si. Estava atordoado e Kaiba não o culpava, afinal, seus humores não eram os melhores e naquele momento em particular sua expressão não deveria ser muito afável. Preferiu logo perguntar o que queria, aproveitando que o rapaz estaria confuso demais para refletir prontamente. — Onde está a senhorita Kask?

— Oh, — Ele engoliu seco. — Eu pensei que ela tivesse avisado o senhor. Ela veio pela manhã, mas estava se sentindo muito mal. Acho que foi uma crise de enxaqueca de novo.

De novo?

— Sim, bem… A senhorita Kask é discreta em relação a isso, mas dá para perceber quando ela não está muito bem. — Ele ajeitou os óculos e depois a gola da própria camisa. — É um tanto recorrente. Ah, mas em nada tem influenciado no desempenho da equipe, senhor! Minha colega está em outra sala, mas ela é a responsável enquanto a senhorita Kask não está e inclusive acredito que ela logo iria avisar formalmente o senhor que…

— Não será necessário. — Kaiba o interrompeu. — Os relatórios de produtividade estão satisfatórios. Não se esqueça dos resultados da simulação.

E então voltou para o próprio escritório, acionando a opacidade do vidro em seguida. No silêncio, ele pensava.

Talvez Kisara estivesse perto demais para o bem de sua sanidade, mas não o suficiente para Seto Kaiba conhecê-la direito. E ele sabia de quem era a responsabilidade disso, por mais que pudesse se defender com justificativas de diferenças culturais. Só conseguiu suspirar fundo, aceitando que estava prestes a fazer uma bobagem: Pegou o celular e acessou o aplicativo do Line.

A imagem do perfil de Kisara permanecia igual, desafiando tanto seu silêncio quanto a sua incapacidade de começar um assunto de maneira apropriada. Parte de si urgia para que se derramasse em palavras em mais palavras, mas ele sabia que isso era um desespero impróprio. Não era ele, embora… Também não parecesse nada consigo essa hesitação toda. Pensou então que o irmão dele daria uma boa desculpa, o que era bem uma forma de compensar as situações constrangedoras que o mais novo já tinha feito-o passar antes. Satisfeito por ter uma memória decente e lembrando de uma conversa superficial entre Mokuba e Kisara, Seto digitou:



Mokuba perguntou de você. Disse que tem que te entregar um livro que pegou emprestado. Você pode buscá-lo na minha sala.

 

Enviado. Passou cinco minutos. Cinco minutos viraram dez. Seto Kaiba tentou convencer-se de que isso não era tão importante e voltou a trabalhar, ignorando a questão e a fome, pois não tinha almoçado ainda. Só deixou mais uma mensagem:

 

Tem previsão de voltar ainda hoje?

 

Depois de quase mais trinta minutos, nem seu estômago e nem seu cérebro lhe deram paz: Kisara não costumava demorar mais do que quinze a vinte minutos para responder. Porém, as mensagens estavam ali, sem serem abertas. Levantou-se, ainda sem rumo pelo próprio escritório.

Ele não estava acostumado a não ter o que desejasse, não importava quantas vezes Yugi e o suposto faraó tivesse derrotado-o em duelos no passado. Aceitou a próxima bobagem que cometia naquele maldito dia e clicou no ícone de chamadas.

O tom da ligação tocou algumas vezes e antes que ele se preocupasse mais ainda, finalmente a voz cansada de Kisara atendeu do outro lado:

Hai?

A imagem durou só um segundo, mas ele podia imaginá-la deitada e com sono. Talvez ainda com um pouco de dor e sem a absoluta ideia de quem estava ligando, apesar de Kaiba ser um de seus contatos no aplicativo. Ouvi-la inundou-o de alívio fresco, no entanto ele tomou o cuidado de não sentir-se refrescado demais e cair em outra alucinação envolvendo o sacerdote Seth, Kisara e a água. Com sua voz grave e controlada, ele a cumprimentou:

— Senhorita Kask.

Seto? — Ele franziu os ventos ao ser chamado só pelo primeiro nome, mas logo ela se corrigiu: — Ah, boa tarde, senhor Kaiba. Aconteceu alguma coisa? Desculpe se não vi alguma mensagem, é que… — Kisara inspirou fundo. — Não estou me sentindo muito bem. Deixei o celular de lado.

Uma falha em seu plano: Kaiba não tinha pensado na razão de ter ligado para ela, por mais que não fosse realmente a razão que o guiasse naquele momento. Não significava, no entanto, que não poderia contornar a situação.

— Não houve nada grave. O que você tem?

— Enxaqueca aguda. Acontece de tempos em tempos. Imagino que a senhora Ergma tenha mencionado algo sobre isso nos preparativos pra eu vir pra cá. Quando acontece, não posso com claridade de telas.

Hm. A diretora da ADA de fato tinha mencionado algo do tipo, ele se lembrava muito vagamente. Considerando seu estado mental quando foi a Estônia há semanas atrás, não era surpresa que não estivesse tão nítido em sua mente.

— Há necessidade de cuidados médicos? A empresa pode disponibilizar alguém para levá-la a um hospital.

— Não, não precisa de tudo isso. Eu só… — Ela inspirou fundo de novo e desta vez demorou mais um pouco para responder. O silêncio, ao contrário do que esperava-se, era suave, quase agradável. Seto Kaiba esperou com paciência, satisfeito só de escutá-la. — Só preciso dessa tarde, tudo bem? Posso compensar no final de semana.

— Prefiro que você descanse, já é sexta-feira.

— Nós já trabalhamos em finais de semanas anteriores.

— O projeto está adiantado o suficiente, então não me obrigue a bloquear suas credenciais para entrar na Corporação Kaiba. — Ele ameaçou, uma vez que ninguém entrava na empresa sem um convite especial ou crachá liberado. — Você já comeu?

Ele teve a impressão de ouvir um ar de riso do outro lado.

— Confesso que esqueci.

— Onde você mora?

— Não me diga que vai pedir para um dos seus chefes particulares vir aqui preparar um prato que combine bife wagyu com cogumelos matsutake?

Foi a vez dele quase sorrir. A soberba, porém, era mais fácil de escorrer pela sua boca:

— Isso pode ser arranjado.

Por favor, — Kisara usou aquele seu tom de censura que ele, infelizmente, não incomodava-se de ouvir. — Eu aceito um simples missoshiro. E eu moro em Azabu. — Ele caminhou até a mesa do escritório e anotou o restante do endereço que ela lhe deu em um bloco de notas, um tanto surpreso por ela não resistir mais a oferta. Seto tinha que admitir que ao menos a voz dela realmente soava cansada e talvez ela de fato se achasse patética por aceitar a oferta. — Tem certeza que quer se incomodar com isso?

— Eu não ofereço nada que realmente me incomode ou que me traga prejuízo.

Ela quase riu de novo.

— Obrigada, senhor Kaiba. — As palavras dela eram verdadeiras, ele tinha certeza que sim. O sabor adicional da ironia e leve implicância só deixaram mais interessante de ouvir. — Você é muito gentil.

Outra pausa. Por que não poderia ser assim sempre? Pausas confortáveis. Mas a realidade é que Seto Kaiba ficava irritado justamente pela sensação de familiaridade que ela lhe causava, a diferença era que falavam pelo celular agora. Não importava, não iria deixá-la entrar em seu coração somente para perdê-la, de novo não.

Sua agonia aumentava ao pensar que talvez ela nunca tivesse saído de lá para começo de conversa.

Lembrou-se de que deveria ser um babaca e recuperou a firmeza na voz antes de se despedir:

— Ligue se precisar de algo.

E então finalizou a chamada, ciente que tinha falhado em ser um babaca de verdade.

 

∆ ∆ ∆

 

Não foi difícil escolher uma comida para entregar no endereço de Kisara. Ela morava em um bairro bom, até mesmo mais internacionalizado por assim dizer — e com um aluguel considerável. Kaiba podia até mesmo pedir pastéis de nata portugueses com apenas 40 minutos de prazo para entrega ou um prato mexicano. Apesar de ter dito que tomaria um missoshiro sem problemas, ele optou por algo mais elaborado e acrescentou sobremesas, afinal, não escapara de sua atenção a preferência dela por sabores adocicados. Depois, uma ansiedade esquiva apossou-se de seu corpo e ele largou o celular no outro lado da escritório, sem olhar para as notificações que o obrigaram a vibrar.

Focou no trabalho de verdade. Quando o seu irmão chegou, disse para ele deixar o livro que ele havia pegado com Kisara em sua sala e respondeu vagamente que tinha conversado com ela, e que não, ela não estava lá na Corporação Kaiba naquele dia.

O dia inteiro pensou nela e agiu como se o nome dela sequer ressoasse em sua cabeça.

Ao chegar em seu apartamento ao fim do dia, a primeira coisa que fez foi tomar um banho gelado. Rápido. E só então pegou o celular, ainda sentado na cama com a toalha sobre os ombros nus e vestindo uma calça confortável. Primeiro, notificações desnecessárias ou coisas que certamente poderia tratar na empresa depois, como o teste de simulação que havia pedido a um funcionário. Segundo, a previsão do tempo para o dia seguinte e o balanço geral da Tōshō ao final da tarde. Por último, o contato de Kisara no Line, uma mensagem que ele vinha evitando há horas.

 

Agradeço por ter me enviado comida suficiente até a janta. (Estava ótimo!)

E, como é a segunda vez que você paga

algo pra mim, decidi retribuir e programei uma entrega.

Sim, vou falar com Mokuba antes.

Espero que goste.

 

Até segunda-feira.

 

Mokuba falando alto no apartamento interrompeu o questionamento de como e quando Kisara e ele começaram a se falar no Line, mas aquilo não deveria ser uma total surpresa. Mokuba era expansivo e gostava de se meter na vida do irmão mais velho, então parecia típico que estivesse mantendo a conversa com a pobre coitada não só para aprender mais sobre sua cultura ocidental, quanto também para arrumar um jeito de juntar os dois assim como fizera com a ocasião da cafeteria.

Seto Kaiba vestiu uma blusa antes de ir para a sala e viu Mokuba entrando com duas caixas de comida, sua expressão muito satisfeita. Já Seto não poderia estar mais azedo.

— Você tem trocado mensagens com a senhorita Kask.

— Só peço opinião sobre livros de vez em quando. E recomendo coisas e lugares onde comer.

— Ela não é sua babá.

— Mas você bem que queria.

— Mokuba. — Ele pediu o mínimo de decência, cansado e constrangido. E também… um pouco curioso. — Coloque logo essa comida na mesa.

Kisara tinha acertado no jantar, pedindo algo quente como nikujaga e alguns acompanhamentos. Provavelmente era de um restaurante próximo, pois continuava na temperatura ideal, e não durou muito tempo. Seu irmão mais novo devorou bem a comida enquanto Seto estava na metade, contemplando aquele instante de bem-vinda — e simultaneamente incômoda — familiaridade. Ela era sorrateira, traiçoeira. Não precisara de força para circundar seus pensamentos e agora sua presença, ou espécie dela, fazia-se ali, em seu lar impenetrável. Havia ainda uma caixa acima da chabudai e foi difícil evitar uma expressão mais amena ao ver duas fatias de bolo de creme pigmentado por leve corante azul e com um par de asas de chocolate fincado em cada. Asas iguais aos do Dragão Branco de Olhos Azuis.

Não deu atenção a Mokuba ou aos seus comentários e insinuações de como Kisara era atenciosa. Aliás, poderia até retrucar e dizer que dar qualquer presente com tema de Dragão Branco de Olhos Azuis aos Kaiba não era algo lá muito criativo pelas razões óbvias, mas não era sábio querer debater muito o assunto com seu irmão mais novo. Não era sobre gestos ou a comida, e sim sobre a bobagem perigosa que Yugi Mutō havia colocado na cabeça dele.

Os dois terminaram de comer, as horas passaram. Seto colocou os pacotes no lixo da cozinha e, naquela noite, deixou o irmão dormir no sofá da sala — apenas colocando um cobertor sobre ele enquanto a televisão permanecia ligada. E, antes dele próprio dormir, pegou novamente o celular em um gesto automático.

 

Seu dia terminava assim como tinha começado: sozinho com o eletrônico em mãos, encarando a sua tela mesmo que sua cabeça estivesse com os pensamentos longe dali. Mas, antes que finalmente deitasse seu tronco no colchão, uma notificação fez seu celular vibrar. Geralmente, Seto Kaiba somente veria o que era para então facilmente ignorar. Desta vez, foi impossível: tratava-se de um e-mail encaminhado para todos aqueles que haviam participado da reunião no Ministério das Terras, Infraestrutura, Transporte e Turismo há semanas.

Ele voltou a sentar-se na cama, percorrendo seus olhos por todas as linhas do e-mail e nas traduções abaixo nos idiomas que conhecia, versões para os participantes de outras nacionalidades. Inacreditável. Era um convite, um maldito convite enviado de última hora para todas as equipes socializarem dali a duas semanas. Seto Kaiba xingou em sua cabeça, xingou também em voz baixa.

Que diabos, com tantas coisas para fazer ao longo da semana, agora teria que se preocupar com mais isso! Naturalmente, era apenas para as equipes se exibirem umas às outras e gostarem maior atenção do Secretário do Ministério, sem falar na questão midiática. Inspirou fundo, tirou print do e-mail e abriu o Line, mais especificamente na conversa que mantinha com Kisara.

Esperou. Estava tarde para mandar alguma mensagem e ele não queria dar a impressão que era um empresário obcecado — por mais que realmente fosse — ou um outro tipo de doido qualquer que manda mensagens tão tarde da noite sem intimidade alguma com a outra pessoa. Pior foi o que aconteceu o seguinte:

Kisara ficou online e enviou um print do mesmo e-mail tirado do próprio celular.

 

Você viu isso?

 

E imediatamente suas mensagens foram marcadas como visualizadas por Seto. O primeiro impulso foi arremessar o celular do último andar do prédio, amaldiçoando o fato de não ter retirado as confirmações de leitura do aplicativo. Maldito o dia em que achou muito inteligente manter aquilo ativado apenas para dar a certeza para outras pessoas que sim, ele tinha visto a mensagem e deliberadamente ignorado-a. Demorou um pouco, depois começou a digitar.

 

Estava prestes a encaminhar isso para você.

 

Visualizado. Depois, silêncio. Eram duas da manhã de um sábado e ele estava a sós no quarto, ouvindo a própria respiração, entretanto… em Azabu, Kisara também estava acordada. De repente, era como se ele ouvisse-a ali, com ele. Não quis pensar em como estava vestida. E esperou, incerto se propunha alguma solução prática ou se a questão seria empurrada para segunda-feira.

 

Parece que vamos trabalhar no sábado.

Quer almoçar em Azabu amanhã?

 

Não. Não queria. Não deveria. Seus dedos digitaram rápido e apertaram enter, falando algo que ela mesma havia respondido a ele em uma conversa anterior.

 

Claro. Só me diz o lugar e horário.


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