A Donzela com Azul nos Olhos escrita por Shalashaska


Capítulo 6
Pequenas conversas, grandes planos


Notas iniciais do capítulo

Olá! Demorei para atualizar, admito. Na realidade, acabei me focando em outras fics e também atravessei alguns problemas. Para relembrar: Seto Kaiba vai almoçar com Kisara para os dois resolverem o que vão fazer até um evento organizado pelo ministério. Mas é claro que um almoço não é um simples almoço para os dois.



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Ele não sonhou naquela madrugada e, quem sabe, aquilo fosse um bom sinal se não levantasse outras questões. Seto Kaiba não fazia o tipo de sujeito otimista para achar que as coisas mudavam espontaneamente para melhor, era um indivíduo obstinado a alcançar seus objetivos. Impedir sonhos e pesadelos, porém, provava-se uma tarefa difícil tanto para sua inteligência quanto para seu dinheiro até então. O que havia impedido tudo isso naquela noite? Por que ele não visitara o deserto enquanto dormia, por que não sentira o toque morno do Sol e nem provara da brisa árida?

Tentou não soar muito distraído nesses pensamentos enquanto tomava café junto a Mokuba, que acordou tarde no sofá. Também não disse nada sobre encontrar Kisara durante o almoço; apenas avisou o irmão que iria sair e… Que não tinha horário definido para voltar. É claro que Mokuba assumiu que ele passaria a tarde trabalhando e, se Seto fosse mais desonesto consigo mesmo, podia afirmar categoricamente que tratava-se da pura verdade: Seto e Kisara combinaram de se verem devido a um e-mail inesperado do Ministério. Haveria um evento em breve, os outros competidores estariam presentes. Tudo isso justificava seu encontro — encontro! — com a senhorita Kask, mas tratando-se dela, sempre havia algo a mais. Mokuba sentia isso e não o pouparia de comentários sugestivos. Pior: Seto não podia mentir para si próprio, ou ao menos não de um jeito muito convincente. Não era só trabalho.

Ainda assim, havia uma parte sua que insistia em teimar. Havia responsabilidade sua naquele encontro à tarde? Nenhuma. Ela convidou-o, Seto apenas aceitou.

Arrumou-se dentro do horário, levando o livro de Kisara no bolso interno e largo do sobretudo. Já que tinha mencionado o dito livro nas mensagens anteriores — mencionando que Mokuba desejava devolvê-lo — fazia sentido finalmente entregá-lo. Também era conveniente usar um sobretudo, pois o clima ainda reservava nuvens e uma temperatura amena. 

E mesmo que sua altura não fosse discreta, Kaiba optou por cores menos chamativas: apenas azul marinho e preto. Kisara já atraía certa atenção e ele não desejava alguma notícia de fofoca chegando aos ouvidos de Mokuba antes que pudesse filtrar os acontecimentos daquela tarde.

Mas antes que ele instruísse seu motorista a dirigir até o apartamento dela, o aplicativo do Line apitou em seu celular. Kisara não estava em casa e lhe deu outro endereço, falando que podiam caminhar pelo bairro até algum restaurante bom. Em Azabu, realmente não era difícil.

Ele não pensou muito no endereço até sair do carro e andar da esquina até uma pequena praça central, cercada por lojas. Próxima a calçada, havia uma estátua de uma menina com um enorme casaco de pedra avermelhada, abaixo de um poste de luz. Não era um monumento rebuscado ou de imensa relevância internacional.

Kaiba reconheceu a silhueta de Kisara observando-a com mais do que mera curiosidade de um transeunte, mas sim plena atenção. A estátua de Kimi-chan jazia no mesmo lugar, transportando os pensamentos de Kisara para onde ele não poderia sequer imaginar. 

— Senhorita Kask. — Ele já estava parado ao lado dela, com as mãos no fundos do casaco. Em resposta ao chamado, ela piscou rápido e se virou para ele com um sorriso sem graça, quase como se tivesse sido desperta de um encanto. Kaiba poderia fazer alguma referência a tal coisa, mas evitou. Em vez de constrangê-la por algo íntimo, ele optou por constrangê-la pelo aparente conteúdo da sua sacola de compras cheias. — Não acredito que projetos com tinta, caneta e origami possam impressionar o ministro nessa competição.

— Seus comentários ácidos tampouco servem de ajuda, Kaiba. 

— Fazendo mais compras de turista?

— Não seria absurdo eu dizer que isso não te interessa, mas vou saciar sua curiosidade. — Os lábios dela mentiam: ela não estava verdadeiramente aborrecida. Mas por um instante ele desejou que sim, que Kisara se cansasse de seu comportamento e desaparecesse como areia, como neve. Seria doloroso, mas não tão doloroso quanto… Ah, inferno. A compreensão alfinetava-o: Ele realmente acreditava sobre o passado no deserto. Sobre amá-la e perdê-la. Sobre reencontrá-la e a sensação de familiaridade incendiá-lo. — O fato é que eu trabalho muito e muito bem. Acho que mereço outros interesses além do escritório, então faço compras. Aliás, estamos aqui a trabalho de novo, não?

Sim. Não. Me diga você, ele pensou. Mas só mudou de assunto:

— Tem uma preferência onde comer? Há muitas opções em Azabu.

— Hm, nenhuma preferência. Ah, mas fiquei curiosa com um restaurante de comida chinesa e outro que serve comida francesa.

— Por que não acessa aqueles aplicativos que sorteiam um destino entre restaurantes próximos? Assim não precisa escolher.

Ela lhe lançou um olhar jocoso.

— É assim que escolhe seu jantar?

— É assim que Mokuba escolhe. Não duvido que ele tenha descoberto o Akai Ito desse jeito.

— Bom, vamos ver aqui, então.

Kisara se aproximou com o celular em mãos, escolhendo o app e logo acionando o sorteio. Uma sequência rápida de fotos de vários restaurantes aleatórios foi exibido na tela junto com uma música festiva, até que surgiu uma ilustração animada de confetes e serpentinas: o vencedor era o restaurante Nefertari, há apenas dez minutos de caminhada dali. 

Houve um momento de quietude enquanto ambos observavam a foto do lugar: um restaurante egípcio. Seto não quis encará-la e pelo jeito o sentimento era recíproco. Tinha sido uma má ideia sugerir aquele app…  Mas ele usaria a ocasião ao seu favor de qualquer forma. Antes que ela quebrasse o silêncio, ele lançou sua armadilha.

— Não gosta de comida egípcia?

— Eu… Eu comi pouco antes. — Ela franziu a testa. — Tenho aquele conhecido egípcio. E você?

— Preciso relembrar.

O brilho no olhar dela era pontiagudo e Seto Kaiba também se preocupava em afiar sua expressão, provocando-a. Se o acaso tinha jogado um maldito restaurante egípcio no colo deles, um restaurante que Seto jamais descobriria a existência sozinho, ele aproveitaria para conferir se Kisara tinha alguma vaga ideia sobre um suposto passado que eles partilharam.

Caminharam até lá sem dizer nada relevante, só frases desimportantes sobre o trabalho. Era um tipo de silêncio frágil e difícil de romper sem que Seto transparecesse seu interesse pessoal, embora traçar estratégias para vencer aquele jogo não fosse algo inédito para ele. Era melhor esperar que as peças estivessem em seu lugar para que pudesse atacar, ou melhor, para que assim Kisara revelasse algo grande por si própria e perdesse. As melhores estratégias de duelos eram assim: conduziam o oponente à sua própria ruína.

Ele imaginou a vitória. E, após passar pelo batente da porta do restaurante e escolher uma mesa junto com ela, uma sensação gélida se apossou de seu peito.

E se fosse, enfim, verdade?

Kisara estava de volta e ainda o amava. E então? O que faria?

Engoliu seco, tirou o sobretudo e ajudou Kisara com a sacola de compras, a qual ela se recusara a dar para Seto carregar no percurso, enquanto ela se livrava do casaco púrpura. Nada mais vinha à mente — um deserto de ideias, a imensidão vazia e constrangedora de pensamento. Era mais fácil escolher o prato no cardápio, então foi o que ele fez.

Apesar da estética kitsch de Egito Antigo — mais parecendo uma loja de souvenires de gosto duvidoso — havia algo nos painéis de hieróglifos que trazia uma onda de aconchego e uma maré de desconforto simultaneamente. Seto não deveria ser capaz de reconhecer as palavras naquela decoração, mas reconhecia; entendia quando objetos dispostos juntos deveriam estar longe um do outro e que talvez um punhado de estatuetas nas prateleiras laterais, junto com narguilés, não fosse uma coisa muito honrosa para os deuses egípcios. A maior parte das opções no cardápio fazia parte da culinária do Mediterrâneo Oriental, mas o cardápio prometia o modo de preparo essencialmente egípcio, de receitas caseiras e seculares. Seto, em seu íntimo, tinha a certeza de que tudo o que provaria ali seria diferente dos sabores que provara no Egito há milênios.

Enfim, fizeram os pedidos: falafel, pão pita, duqqa, queijo e babaganoush. Demoraria um pouco para essa entrada ser servida, então ele tinha tempo o bastante para avaliar o rosto da estoniana. Se o restaurante provocava as mesmas sensações nela, Kisara escondia bem: era só quando falava ou se distraia que dava vislumbres de algum pertencimento estranho ao passado, algum reconhecimento diferente nos olhos. Endireitando a própria postura, ele decidiu sondá-la em assuntos menos essenciais:

— Alguma razão especial para admirar a estátua de Kimi-chan na praça? É porque aparece em Sailor Moon?

Ela pareceu surpresa com a questão e com o deboche, mas logo sua expressão cedeu lugar a um sorriso felino. Ou seria o sorriso de um dragão?

— Hm, então parece que alguém também assistia Sailor Moon, não é? Interessante.

— Responda a pergunta. 

— É claro que vou responder a pergunta, eu só precisava responder a sua provocação antes. — Ela deu de ombros, depois se inclinou para frente e segurou o próprio queixo com a mão direita, o cotovelo apoiado na mesa. — E devo dizer que sua curiosidade me intriga.

— Não pode me censurar. Estamos em condições desiguais, pois é muito fácil encontrar informações sobre mim em qualquer site de notícias. Minha historia é… Bem conhecida.

— Eu não tenho interesse em saber coisas sobre você através de sites ou jornais de fofocas.

Ele ergueu apenas uma sobrancelha.

— Mas tem interesse em saber?

— Bom, senhor Kaiba… — A voz dela desceu um tom, já sua pele entregou seu breve constrangimento: enrubesceu-se, causando certa satisfação indiscreta em Seto Kaiba. Porém, logo ela ficou mais séria. — Acho que é um tópico sensível, mas me vejo encurralada. E para me explicar, vou ter que começar do começo: Fiquei aos cuidados de uma família que abrigava crianças em Talin. Sou órfã. Mas eu ficava muito tempo sozinha assistindo TV porque o casal que me abrigou trabalhava muito e os outros órfãos já estavam na faculdade. E a primeira vez que ouvi japonês na vida foi de um festival internacional na televisão. — Ela passou a ponta do dedo esquerdo na toalha da mesa, contornando um hieróglifo dourado no formato de pena. — Aí nesse festival, tocou a música sobre uma menina…

— Com sapatinhos vermelhos.

Ela assentiu, com um sorriso melancólico igual a famosa canção de ninar no país. Kaiba não se lembrava bem da letra, mas sabia da história da menina que inspirou a música. Apesar de alguns furos na narrativa e a forte teoria de que não existia ninguém real por detrás da lenda, havia o consenso de que a menina, Kimi, seria levada por missionários, mas contraiu tuberculose e faleceu antes num orfanato em Azabu no início do século XX. Outros diziam que Kimi foi apenas levada até lá, sem que missionários estivessem envolvidos, para que ela vivesse bem e não fosse uma despesa para família. Comentários mais ousados dizem que Kimi era mestiça. Fosse o que fosse, para Kisara era algo mais pessoal: Uma história de uma menina órfã, longe de casa.

— É… — Ela inspirou fundo. — Mas não foi por causa disso que aprendi japonês ou vim pra cá. A vida tem seus caminhos estranhos. Mas eu não podia deixar de ver a estátua dela. Bom, essa é a razão especial de ir ver a estátua… Isso e Sailor Moon também, é claro.

Ele quase sorriu do gracejo tolo dela, quase. No entanto, o peso da conversa ainda pesava seus ombros e o fazia ter vislumbres do próprio passado, naquela exata vida. Se o Egito Antigo lhe ofertava doses inumanas de pesar, o Japão Contemporâneo também lhe trazia agudas farpas. 

— Quantos anos você tinha?

— Quando assisti o festival? Talvez uns oito. 

— Não, quando…

— Ah. Quando eu fiquei órfã. Cinco. — Ela comprimiu os lábios e um pensamento passou por sua expressão, tal qual uma sombra. — Não lembro bem da minha mãe, mas também não consigo chamar esse casal de pais, não o tempo todo. Acho que sempre me senti meio desconectada mesmo. Sem lugar. Mas não é assim que todo órfão se sente, eu suponho. Meus irmãos… parecem bem. Você também.

— Você fala disso fácil.

— Sendo sincera, parece que você quer saber. E não me envergonho… É difícil, mas é a verdade. 

Ele nunca faria a mesma coisa. Talvez fosse melhor que as pessoas soubessem dele unicamente através do que estava publicado nos jornais. 

E aquele pensamento o fez refletir o quanto estivera focado no passado errado. Ele não quis pensar no homem que adotou ele e o irmão — Gozaburo Kaiba — ou em como nunca saboreara a infância: Um sinal claro de que era melhor marcar terapia de novo em um futuro próximo. Seto Kaiba não gostava e nem foi muito franco nas sessões anteriores, mas talvez não fosse questão de gostar, e sim de precisar. Já marcava sessões para o irmão e vira progresso nele, então quem sabe…

Uma nova camada de atenção se formou de Seto para Kisara. Ele tinha refletido antes que, estando imerso em sonhos no deserto ao lado dela — ou a mulher que ela foi há mais de mil anos — pouco dedicava sua atenção a realmente conhecê-la no agora. Parte de si sabia que era simples negação e, custava-lhe admitir, receio; e a outra parte dele se recriminava naquele instante. Sim, havia fogo e tristeza no olhar de Kisara, mas ela era outra pessoa.

Assim como ele.

A conclusão não desfez o calor em seu peito ou a eletricidade em sua cabeça quando pensava nela. Com cautela e uma dose maior de gentileza, perguntou:

— E você acha que vai encontrar o seu lugar?

Kisara abriu a boca, sem responder de fato. Podia estar pensando em uma resposta qualquer, algo tolo para quebrar a tensão ou então a verdade sem filtros, difícil de ser dita e de ser ouvida. Ele jamais saberia, pois naquele instante os pratos chegaram. Eles se ocuparam em comer e finalmente em falar sobre trabalho.

O tempo passou: da entrada foram para o prato principal, do prato principal à sobremesa e da sobremesa ao chá. Outro perigo de conversar com Kisara era a facilidade com a qual ela fazia sugestões no assunto trabalho e debatia novas possibilidades, então era simples traçar um plano ambicioso em apenas uma refeição. Eles decidiram manter as otimizações nos hologramas e, já que a questão arquitetônica e planejamento para os campeonatos de duelos estava muito bem delineada no projeto, sobrou seguir com os ajustes para a versão do estádio e o aplicativo vinculado a ele. Poderiam fazer uma demonstração no evento ao final da semana e angariar mais atenção do público — e também dos jurados. Afinal, duas semanas após aquele maldito evento de última hora, seriam liberadas a votação popular na web e os recursos de marketing de cada empresa por três semanas. Ao fim disso, viria a decisão do Ministério e essa jornada inteira estaria encerrada. Contar com recursos extras garantiria mais segurança para a posição da Corporação Kaiba e ADA na competição.

Isso se trabalhassem até tarde.

Enquanto Kisara escrevia algumas metas diárias em seu bloco de anotações, Seto discretamente pediu e pagou a conta antes de algum protesto dela. E ao saírem do restaurante, ele seguiu caminhando ao seu lado, fazendo o caminho inverso que tinham feito.

— Sabe, você não precisa me acompanhar. E nem pagar toda refeição.

Eles esperaram o sinal de pedestres ficar verde. Agora faltavam apenas dois quarteirões para o apartamento dela.

— Não está aberto à discussão. — Disse, resoluto. Mas não demorou para dar alguns passos e sentir o olhar duro dela contra si, aquele par de íris com o peso de lápis lazúli. Justificou-se: — Tenho você em minha consideração, afinal você concordou trabalhar mais durante essa semana.

— Sou competitiva. Eu não iria recusar uma chance a mais de ganhar.

— Então descanse bem, porque teremos muito trabalho na segunda-feira.

— Vamos ver se você consegue me acompanhar.

A expressão no rosto dele se suavizou. Não demorou para chegarem ao destino, o céu ainda cinzento de um dia nublado. Se Seto ainda fosse Seth, ele teria coisas mais bonitas a dizer: Khat, ka, ba, cheias do Nilo, o desabrochar de flores de lótus e outras coisas que ele antes considerava bobagens. Esperava que ela entendesse essas coisas belas não ditas.

— Ah, antes que me esqueça: o livro que emprestou para meu irmão. — Tirou uma edição pequena de “De Volta a Istambul” em inglês do bolso interno do sobretudo e entregou a ela. — Tenha uma boa tarde, senhorita Kask.

Ela sorriu, lhe desejou uma boa tarde também e fez uma reverência educada e curta antes de entrar no saguão do prédio. Enquanto ligava para seu motorista na rua, Seto Kaiba se flagrou pensando que jamais tinha ficado ansioso assim pela segunda-feira.


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Notas finais do capítulo

* O restaurante egípcio existe mesmo em Azabu.
* A canção/lenda da Kimi-chan também é real.
* Se você puder deixar um comentário, me fará muito feliz!



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