A Donzela com Azul nos Olhos escrita por Shalashaska


Capítulo 2
Memórias que escorrem




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Água escorreu de sua face, mas as memórias não se desvaneciam de sua cabeça. Seto encarou-se bem no espelho, sem bem reconhecer seus próprios traços. Enxergava ainda seu rosto mais moreno, o kajal abaixo dos cílios. Enxugou o rosto com mais força para apagar a imagem do rosto de Seth, o sacerdote de uma vida tão distante. Considerou que a quantidade de coisas que tinha que pensar durante a competição seriam suficientes para suprimir as visões tolas, mas era justamente o contrário. Não pudera nem mesmo confiar na sua sanidade para pilotar o seu jato particular, sendo obrigado a usar o avião e comissários de bordo para chegar até a Estônia. Mokuba, seu irmão mais novo, insistiu em acompanhá-lo para conhecer a empresa que fariam parceria e agora estava dormindo na poltrona, pois devorara todos os doces que existiam ali. Seto nem contestou tal atitude, pois seu humor já  estava no limite, embora o mais novo confundisse o comportamento arredio do irmão com puro estresse. Havia já se passado uma semana desde a reunião no Ministério em Chiyoda. A questão é que ele não dormia.

Como poderia descansar se cada vez que fechava os olhos enxergava brilho do Sol na areia, se via uma mulher sob o luar? Seto não acreditava em deuses ou destino, não tinha que se curvar aos fatos passados.

Em uma lembrança mais recente, ele se recordou da vez em que duelou contra Ishizu Ishtar, a mulher que possuía uma das Relíquias do Milênio - um colar dourado. Ela alegava que podia ver o futuro e, apesar de Seto não acreditar pessoalmente nisso, admitia que a desgraçada era inteligente. Foi também nesta ocasião que começou seu tormento das visões do passado de areia. Estava prestes a comandar sua carta deus egípcio - o Obelisco - atacar os pontos de vida de Ishizu quando ouviu um rugido familiar: O rugido do Dragão Branco de Olhos Azuis. Era um alerta, um aviso que ele levou a sério. Foi capaz de sacrificar seu deus egípcio e outro monstro para invocar o Dragão. Venceu, ao contrário da previsão de Ishizu.

Depois da partida ter terminado, ele viera a saber que sua adversária tinha uma carta armadilha em seu deus egípcio, e que se realmente tivesse atacado com o Obelisco, teria perdido o duelo de forma automática. Na época, pareceu apenas instinto de um jogador experiente ou um pouco de sorte, mas ele sabia que enganava a si mesmo. Foi capaz de sacrificar um deus para trazer seu Dragão e ganhar o duelo, para firmar o próprio futuro contra todas as palavras agourentas de Ishizu. Não era pouca coisa para quem dizia não acreditar em destino, e agora sabendo de sua ligação com o Dragão e com a mulher em seu espírito…

Não, não. Não era destino ou passado. Nenhuma corda o prendia.

Só queria que sua cabeça leve para se focar no que precisava.

A quantidade de fatores envolvidos era o suficiente para travar qualquer sistema operacional, e as memórias do deserto não exatamente ajudavam Seto Kaiba a raciocinar melhor. Havia detalhes técnicos a se pensar e toda uma questão legislativa na competição, isso sem ainda considerar o inconveniente de que o grupo Nami decidiu também convidar a empresa francesa a permanecer no país, o que lhe dariam leve vantagem no planejamento urbano. Portanto, Seto quis conhecer seus parceiros de perto primeiro, antes que se juntassem em uma unidade da Corporação Kaiba em Tóquio. Não tinha intenção de ser desrespeitoso com a equipe estoniana ou com o Secretário do Ministério, mas ele poderia fazer tudo sozinho no mesmo prazo sem ouvir toda aquela ladainha de cooperação - o exato discurso entediante de Yugi - ou ser forçado a cumprir tarefas de mera formalidade.

Ele soltou um suspiro e acertou os botões das mangas de seu casaco de corte reto, bem estruturado. Faltavam ainda algumas horas para chegar na capital da Estônia e a demora tanto lhe dava nos nervos quanto lhe dava tempo para pensar, o que no fim somente servia para piorar seus ânimos. Estaria Kisara lá? E se estivesse, ela o reconheceria? Não apenas como Seto Kaiba, mas como Seth. A incerteza do quase esmagava-o por dentro. Quando a viu na reunião no Ministério, não enxergou um único brilho de reconhecimento em seus olhos, um mísero sinal. No entanto, havia no rosto dela o roxo de olheiras abaixo do azul de suas íris - os exatos tons que coloriam a face dele.

Ele divagou sobre as nuances do púrpura até perceber que mais uma vez o Sol árido tingia o céu. Se firmou na pia do banheiro, grunhindo ao tentar manter a mente no lugar, mas o vento e areia levaram sua consciência para milênios atrás.

 

Seth enxergava o roxo dos hematomas de uma mulher caída ao chão.

“Mas o que está acontecendo aqui?”

Sua mera presença foi capaz de aquietar a multidão, que parou de lançar pedras e insultos contra a estrangeira caída no solo sujo. Agora aos sussurros, o povo louvava o nome de Seth, o sacerdote do faraó, um dos Sete Guardiões do Milênio. Ele deu passos a frente com muita calma, suas vestes azuis tremulando com a brisa e o tilintar de adornos de ouro, tal qual seu bastão maciço. Diferente de um heqat, o cetro cerimonial do Faraó, ou do nekhakha, seu chicote, o bastão tinha uma esfera na ponta com um olho esculpido e lâminas ao lado. Além disso, sua aura pesada exalava poder - o mesmo poder que havia salvado aquelas terras anos antes.

Cada servo, artesão, político e até mesmo bandido conhecia histórias sobre as Relíquias e sobre como faziam coisas inimagináveis. As histórias mais notáveis eram aquelas em que os Guardiões, os sacerdotes, invocavam monstros; as lendas mais temidas eram quando recriavam o julgamento dos deuses em corpos ainda vivos - e tiravam espíritos vis deles para selá-los em placas de pedra. Era uma forma de manter o palácio e seus arredores seguros, puros.

No entanto, as Relíquias eram também alvos de cobiça. Em mãos erradas, causariam estragos piores que a praga, a seca ou a fúria de deuses -  e infelizmente um dos itens já tinha sido roubado por um ladrão de tumbas, Bakhur, que havia violado o templo mortuário do antigo faraó. Não satisfeito com essa ofensa sem tamanho, agora ele desejava o resto das relíquias.

O reino e o faraó eram ameaçados mais uma vez e os Guardiões do Milênio buscavam formas de conter o mal que se alastrava. Isis gastava horas tentando ler o futuro, Mahad recorria à magia. Seth era menos indulgente. Seu plano era selar mais criaturas em placas para que pudesse invocá-las quando fosse preciso - e certamente seria necessário ao enfrentar as forças ocultas de Bakhur. Para isso, ele e outro guardião, Chaddad, percorriam as ruas da cidadela em busca de um poder que se equiparasse aos dos deuses.

Um momento atrás um trapaceiro havia pedido clemência aos dois em troca de informações sobre o Dragão Branco. Dissera que era com ele que deveriam se preocupar, pois rondava as ruas e poderia pôr a vida da família real em risco. Chaddad não acreditou nas palavras daquele homem vil, mas Seth foi abalado pela menção ao Dragão. Encontrar agora a mesma mulher que ele salvou ainda muito jovem não era coincidência.

Ele encarou vestes simples de linho dela, puídas e sujas, em contraste com sua pele cor da lua. Não sangrava, mas algo o fazia supor que seus ferimentos escorreriam como prata - como o sangue dos deuses. Ele interrompeu seu pensamento para perguntar a Chaddad se ele podia usar sua relíquia, a Chave do Milênio - capaz de ver a mente e o coração de cada ser existente - mas ele já erguia o objeto na forma de um ankh na direção da mulher.

Pelo Sol!” O guardião soltou um arquejo, olhos arregalados.

Seth, sem se distanciar da mulher, virou-se para ele, estranhando sua expressão. Chaddad era uma pessoa séria, talvez apenas não tanto quanto Seth, e era notável a surpresa em sua face tatuada. Não soube dizer se era horror. Como não elaborou nenhum comentário, o Guardião da Chave se pôs a explicar:

“Eu vejo… Eu vejo grande poder nessa mulher. Poder que somente vi nos dragões que o Faraó pode invocar.”

“Então encontramos o que viemos procurar.”

Ele deu ordens para que os homens de sua corte abrissem caminho. Pegou-a no colo de forma branda, segurando-a com cuidado em seus braços. A lógica afirmava em sua cabeça que era o mais sábio a fazer, afinal, precisavam de criaturas a altura dos monstros de Bakhur e se a mulher tinha um poder igual aos deuses dragões…

Mas sua mente também se dividia em pensamentos mais amenos. Lembrava-se de desejar não ver mais a estrangeira, pois isso significava mais problemas para ela.

Anos se passaram desde a primeira vez que vira a menina sem nome e o Dragão Branco. Era um homem agora, mais do que isso: Era um sacerdote real. Sua juventude foi dedicada aos estudos na Per Ankh, lugar onde seu trabalho como escriba ganhou destaque e pôde aprender mais sobre as estrelas, sobre as leis matemáticas que sustentavam os monumentos dos antigos governantes e as forças que regiam as colheitas ou corpo dos homens. Ele fazia mais do que acompanhar nos ensinamentos que lhe eram instruídos, ia atrás das obras de outros escribas e também participava dos ritos do templo local durante o ano inteiro, mesmo com o ciclo de sacerdotes que tomavam conta do lugar.

Conhecimento preenchera cada fibra de seu ser, mas sentia que sabia ainda tão pouco sobre os mistérios da vida. Sua sede por saber mais sobre os deuses e as criaturas etéreas despertou atenção de figuras notáveis. Seth detinha um talento raro e intelecto afiado, de modo que logo seus esforços fossem agraciados pelas divindades em si com uma oferta para algo muito maior: O Sacerdócio do Milênio, uma vida de devoção ao faraó e aos deuses como guardião das relíquias sagradas que outrora salvaram o reino. Precisavam de um sucessor digno, portanto as provações não era fáceis e talvez perdessem em complexidade apenas para o julgamento após a morte, na balança que pesava-se o coração e a pluma de Ma’at. Porém, não existiam amuletos de escaravelho para lhe ajudarem, nem feitiços e muito menos um livro com certas dicas. Era irônico para Seth que existissem caminhos conhecidos para enfrentar o julgamento dos deuses na morte e não para um teste em vida.

Ele não precisou de nada disso, de qualquer modo.

Agora vivia em meio a realeza e tinha uma série de deveres, assim como o restante dos sacerdotes selecionados. Sob o auxílio de Akhinad, o Guardião do Olho do Milênio, aprendera ainda mais sobre a arte da invocação de monstros e logo tornou-se uma figura de prestígio entre os demais na corte, sendo inclusive próximo do faraó.

Já dentro do palácio, Seth alocou a estranha convidada num quarto grande e ventilado, embora o corredor que levasse para lá fosse muito bem vigiado por soldados em turnos. O cômodo era utilizado poucas vezes para receber visitas ocasionais de outras famílias reais, sendo mobiliado com o necessário para uma figura ilustre: cama com pés esculpidos, baú para pertences, um pequeno apoio para um jarro de água e uma cesta diminuta de frutas para um leve desjejum.

Não achava ela que iria fugir devido a suas condição física debilitada e também o fato que ela notaria que estava num lugar seguro. Precisava dos cuidados de um curandeiro, além de repouso e boa alimentação, coisa que Seth providenciaria em breve. Ao deitá-la na superfície lisa da cama, ele olhou mais uma vez para seus hematomas e pensou em como tinham levado vidas diferentes nos anos que o separaram. Assim como uma alma que ascende em direção ao Sol, Seth alcançou uma posição notável. Não havia sido fácil, mas estava lá - ao lado do Sol, do Faraó, ao lado de . Já ela… Continuava como a areia sob os pés dos viajantes, esmagada e levada pelo vento. Teria conseguido passar das muralhas naquela noite? Ou então mais uma vez foi aprisionado, vendida? Flagrou-se querendo saber a história por trás de suas cicatrizes e roxos sobre sua pele.

Como uma criatura como o Dragão Branco se abrigaria em um corpo tão frágil? E por que vinha agora, um momento tão terrível quanto aquele, com toda a ameaça de Bakhur? Era um aviso, uma dívida pelo Dragão ter salvado-o antes? Seth consultaria os textos e Ísis para entender melhor a situação.

Ela abriu os olhos de repente, sem susto e sem grandes cerimônias. Apenas os abriu, deitada.

Você.” Disse, muito simples, mas desprovida do sotaque carregado que há anos ele ouviu de sua boca. Era longe de um tom imponente de Dragão, longe de um timbre etéreo. Apenas a voz de uma mulher. Ele anuiu e respondeu, seu tom com doses de sarcasmo e humor frio:

Você.”

Bakhur chamava todas as suas artimanhas e maldades de Jogos das Sombras, comparando o duelo entre ele e o Faraó como um mero divertimento sádico. Seth agora passava a considerar suas palavras insanas, pensando que talvez a estrangeira fosse mais uma peça em meio às outras - e que talvez houvesse forças ocultas brincando com todos eles.

 

Seto acertou o próprio punho no espelho, trincando-o. Suor brotava de suas têmporas, agora sangue escorria de um ferimento aberto em sua mão. Ele xingou e xingou, aliviado por sair da visão e irritado pelo o que tivera que fazer para desanuviar a própria cabeça. Abriu a torneira da pia e lavou as mãos até que o sangramento diminuísse. Foram necessários vários minutos até que estivesse em condições de sair do banheiro e esperava que ninguém lhe perguntasse razão do espelho estar quebrado. Mandaria consertar, é claro, mas não  queria nenhum aborrecimento. Se lhe questionassem tal coisa, era capaz de lançar outro soco em alguém.

Sentou-se ao lado de Mokuba, que ainda dormia, e em silêncio amaldiçoou Kisara, amaldiçoou Seth e amaldiçoou a si mesmo por continuar enxergando-os, estivesse acordado ou sonhando. Ela era só uma mulher albina no lugar errado, ele era só um fanático religioso que não entendia o mundo como realmente funcionava e atribuía tudo aos deuses, destino. Tolos, tolos.

Talvez devesse voltar a terapia quando terminasse o projeto. Por enquanto, tinha muito trabalho a fazer e Seto afundaria-se nele até que nenhum grão de areia do deserto pudesse contaminar seus pensamentos. Manteria-se focado, determinado, afinal… O avião já pousava em Tallin, a capital da Estônia.

 

Ele já tinha pesquisado sobre Ada, seus lucros na bolsa de valores e avanços notáveis em tecnologia para um grupo pequeno de um país igualmente pequeno. Não que ele pudesse falar muita coisa morando no Japão, mas ao menos sua nação tinha um nome influente internacionalmente e sua empresa também. De qualquer modo, ele sabia reconhecer os esforços da Estônia em se tornar um país moderno em pouco tempo, mesmo após anos sob dominação soviética. Só não estava esperando muita coisa ao ser recebido pela equipe estoniana, divagando em que contribuiriam para ganharem a competição.

O logo da empresa estava na frente do prédio, letras retas e de tipografia moderna com um forte púrpura, o que lhe dava certo ar vintage e feminino. Seto fechou mais a expressão ao ver aquela cor. Além de preferir azul, os tons de roxo já haviam trazido memórias ruins o suficiente para aquela manhã e ele temia o que poderia acontecer se continuasse a pensar sobre isso, ou pior: Se visse Kisara de novo, o que infelizmente era provável. Optou por listar mentalmente as questões que lançaria a equipe de pesquisa e qual seria o direcionamento do projeto, embora já tivesse algo planejado em mente.

Já no saguão, a proprietária da empresa lhe deu um educado cumprimento e elogiou a pontualidade, pois as horas de diferença de fuso horário que provocariam um jet lag terrível - fato que ela mencionou sentir na viagem à Tóquio. Seto acatou o elogio, um tanto menos interessado que seu irmão para ouvir detalhes sobre a estrutura do local e muito aliviado por não ver Kisara ao lado dela. A senhora de meia idade e cabelo preso num coque firme enumerou a quantidade de funcionários trabalhando na unidade sede e como suas obras impactavam a economia do país, já que ajudavam no sistema integrado digital do governo. Aquilo sim era relevante para a inovação requisitada durante a competição do Estádio Internacional, mas logo mudou-se de assunto.

Depois de muito repassar os sistemas de sustentabilidade e energia solar, coisas que eram aplicadas há alguns anos na Corporação Kaiba, a cientista e proprietária Vaike Ergma passou a explicar a origem do nome da empresa. Não era como se ela os forçasse a escutar cada minúcia da história daquele local, pois Mokuba perguntava cada fato por trás de coisas até mesmo banais.

Seto confiava no julgamento do irmão e não era raro delegar a ele responsabilidades adultas na própria empresa, de modo que Seto esquecia-se que era ainda apenas uma criança, quase um adolescente. Agora estava país diferente aprendendo coisas novas, sem evitar a curiosidade e tampouco sua animação, portanto era de esperar um comportamento infantil. Não iria cortá-lo, pois uma vez foi aquela criança.

Uma vez.

— Eis a inspiração para a nossa empresa. — Vaike aproximou-se de um retrato de uma mulher clara e de cabelos pretos delicadamente enrolados. Parecia somente uma dama em trajes pomposos e lilases da Era Vitoriana, com véus e flores, mas Seto reconheceu a figura de seus estudos. — Não é estoniana, porém...

— É Ada Lovelace, a primeira programadora da história!

Seto desceu seus olhos até Mokuba e guardou um suspiro para si. Só desejava que ele fosse menos entusiasmado de vez em quando, pois isso evitaria as comparações entre o seu humor e o dele, que não poderiam ser mais contrastantes.

— Correto. — Vaike abriu um sorriso. — É bom saber que a reconheceu.

— Por favor, não fique surpresa. Ele recebe uma boa educação.

— Não duvido disso. Mas muitas vezes essa mesma educação costuma deixar figuras importantes de fora. Geralmente mulheres.

— Eu sei. — Disse ele, de forma sucinta, pois ela estava correta e não havia o que discutir. — Deveria ser como reconhecer Einstein ou Tesla, ou ainda Benjamim Franklin.

— É. — A empresária lhe ofereceu uma expressão mista entre melancolia e determinação. — Deveria. E é por isso que nosso trabalho é tão importante. Deve ter notado a presença de muitas mulheres aqui. Temos programas de incentivo.

— Está funcionando. — Ele deu de ombros, agora colocando as mãos nos bolsos do casaco. Era apenas uma constatação, já que realmente via-se uma quantidade considerável de mulheres transitando todo o complexo da empresa, todas atarefadas.

Vaike Ergma continuou o tour  adentro, agora direcionando-os para as salas de pesquisa e programação. Ia a frente dos dois e tomou um instante para responder algumas perguntas de uma funcionária acerca de um projeto menor que desenvolviam.

— Bom, — Mokuba disse, ao lado do Seto. Ele encarava a abóbada de vidro e os tons lavanda da decoração com notável fascínio, seus olhos muito arregalados. Seto agora reparava que a cor representava o vestido de Lovelace em seu retrato mais famoso e os círculos nas paredes - que formavam padrões - eram referência a programação da cientista, que na época fez todo o código em papel. Era um design inteligente e uma motivação nobre. Existiam muitas pessoas indo e vindo com pranchetas nas mãos, conversando no idioma nativo, e o mais novo dos irmãos Kaiba observava tudo com interesse. — Eles parecem muito competentes.

— “Parecer” não adianta nada. — Ele cruzou os braços. Era um gesto habitual seu e uma forma de deixar seu punho ferido menos à mostra. — Em um duelo, uma carta bonita não te faz vencer. É necessário estratégia, raciocínio forte. Sabe disso, Mokuba.

— Sim, mas… Ada foi escolhida por ter algo bom, não é?

— Vai ser necessário mais que um design, mais que programação para vencer a competição. — Respondeu. — Precisamos de um desempenho impecável. Ou você acha que as outras empresas vão pegar leve?

— Na verdade, — Seto congelou com a voz familiar, mas que não deveria ser familiar.— Nós estamos contando com isso.

Virou-se para ela. Kisara. Ela estava uniformizada e com o cabelo preso, mas foi inevitável imaginar que ficaria melhor em roupas brancas ou azuis. Seto franziu a testa por conta do pensamento impróprio e somente deu de ombros, prestes a soltar algum comentário debochado quando Mokuba deu um passo à frente.

— Oh, então você também fala japonês!

Ela sorriu para o mais novo, claramente notando a diferença entre os dois. Por sua vez, Seto soltou um suspiro irritado. Não poderia manter conversas em particular com seu irmão.

— Sim, sim. A empresa já mantinha relações com o Japão antes mesmo dessa competição. — Ela ergueu apenas uma sobrancelha e lançou um olhar um tanto acusatório para Seto. — Acho que continuaremos a surpreender vocês. Positivamente.

A expressão dele mal se alterou.

— É, nós também estamos contando com isso.

A jovem abriu a boca para responder, mas se deteve. Relaxou os ombros com um suspiro curto e quase imperceptível, depois formou outro sorriso educado. Seto podia enxergar nela a vontade de responder palavras ásperas para o comentário rude dele, o que o deixou mais calmo. Era bom que ela se mantivesse afastada, pois isso evitaria mais memórias, mais emoções que ele não gostava imaginar. O distanciamento e a raiva eram previsíveis, certeiros, coisas com que conseguiria lidar. Sentimentos diferentes, não.

A despeito disso, o temperamento de Kisara provocava mais uma vez a sensação de familiaridade, quase como se Seto estivesse somente brincando com ela. Seus nervos se agitavam por conta disso, mas ele podia fingir por alguns instantes que estava no controle da situação. Fingiria até que estivesse, de fato.

Encararam-se por um breve instante. Existiam ainda olheiras no rosto dela, assim como no dele. Ela sabia quem ele era ou quem os dois foram, em outra realidade? Perderia o sono por conta disso? Seto engoliu em seco, quase ouvindo o vento de um antigo cenário desértico, até que enfim aquele momento foi quebrado pela voz de Vaike.

— Ah, vocês já estão conversando. — A empresária parou ao lado da jovem. Tinha acabado de lidar com sua outra funcionária e aproximou-se dos três. Havia um brilho de orgulho nela, quase maternal. — Foi muita coincidência sermos sorteadas justamente com uma equipe japonesa, sendo que Kisara é fluente na língua. Vai facilitar muito.

— Eu não diria coincidência. — Seto não deixaria de refutar conceitos como estranhas coincidências e destino. Sem falar que existiam duas empresas japonesas na competição, então as chances eram maiores no sorteio. — É mera probabilidade.

— Uma bem conveniente. — Vaike não se afetou com a constatação. — Ah, e à respeito de seu convite de permanecer em Tóquio, senhor Kaiba… Tenho um projeto em andamento aqui na capital, portanto não tenho tempo disponível para ficar no Japão. Quem vai administrar a equipe estoniana em Tóquio será Kisara. É membro notável daqui e sei que ela põe a alma inteira em coisas importantes. Vai ficar em boas mãos.

Foi a vez de Seto querer e não querer responder. Não abriu a boca, porém sua expressão se fechou mais um pouco ao lembrar-se da questão de almas, proteção, Kisara.

— Bom, — Ela cruzou os braços, seus olhos relampejaram. — Sabem que vou participar ativamente nesse projeto, então passaremos três meses juntos. Vamos ter tempo de sobra pra surpreender um ao outro, huh?

Uma pausa.

— Assim espero.

Seguiram para outra sala, a fim de discutir detalhes da competição. Seto sentia o olhar intrigado de Mokuba sobre si, entre o espanto e a curiosidade. Mais curiosidade. O mais novo jamais tinha visto Seto entrar numa espécie de jogo de implicância e flerte com outra pessoa e, na realidade, Kaiba secretamente apreciou aquele instante. Seu irmão disse muito baixo enquanto ainda caminhavam:

— Seto, eu deveria perguntar…

— Não, não deveria.

Seth, o sacerdote, estava certo sobre uma coisa: forças desconhecidas brincavam com todos.


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