A Donzela com Azul nos Olhos escrita por Shalashaska


Capítulo 1
Metáfora e Miragem




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“I swear it is true
The past isn’t dead
It’s alive, it is happening
In the back of my head”

— Agnes Obel, It’s Happening Again

 

A chuva escorria rápida no vidro das imensas janelas do quarto de seu apartamento, no mais alto andar da sede Corporação Kaiba. Ele estava sentado na borda da cama, seus cotovelos apoiados nos joelhos, sua postura um tanto curvada ao observar o cinza do lado de fora. Uma segunda-feira. O céu tinha pontos fixos de tão carregados por uma tempestade, assim como seu rosto estava marcado por olheiras fundas por outra madrugada mal dormida.

A noite tinha sido regada a sonhos de areia, o calor das dunas. Visões tolas de uma realidade que não acreditava inteiramente, apesar de ter visto com seu próprio par de olhos.

Ele inspirou fundo, gotas de suor ainda em seu torso nu. Segurava sua carta de duelos favorita, o Dragão Branco de Olhos Azuis, pois só de tê-la em mãos costumava sentir segurança, acalento. Confiança acima de tudo, como sempre teve em si mesmo e em seu potencial, de modo que já conquistara muito na juventude - mais do que a maior parte das pessoas sequer cogitava na vida inteira.

Agora a carta lhe trazia um aperto que poucas vezes sentira no tórax. Pensava em suas cores, sua luz etérea e seu ar feroz. Pensava em um nome:

Kisara.

Fazia dias que sonhava com o deserto, com um palácio e uma série de memórias que não eram suas. Fazia dias que sonhava com uma mulher de cabelos brancos e olhos tão azuis que mais pareciam pedras. Seu eu naquela realidade, o sacerdote Seth, a comparava à joias, à lazúli. Ele, hoje no século XXI, sabia que isso era um erro. Um erro de amador, inclusive, pois qualquer pessoa instruída saberia que o amor começa por uma metáfora. Só não podia culpar o sacerdote, na verdade. O livro de Milan Kundera não tinha sido escrito ainda e Kisara… Bem, Kisara era uma mulher muito mais valiosa que qualquer pedra.

Inspirou fundo outra vez. Estava fazendo aquilo de novo, idealizando uma pessoa que não mais existia.

Tentou tirar aquilo da cabeça, sabendo que falhava de maneira miserável. Guardou a carta junto com o restante de seu deck de duelo e se arrumou de maneira habitual, começando por um banho quente e terminando com roupas das mais finas alfaiatarias. Não tinha tempo para aquelas bobagens sentimentais, pois logo cedo havia uma reunião importante no Ministério da Terra, Infraestrutura, Transportes e Turismo.

A capital do país sediará um novo torneio de Duelos, mas o investimento era demasiado sério - tanto é que mais de uma empresa foi contactada pelo governo para participar, mesmo que a Corporação Kaiba fosse a referência principal no assunto. Não era de seu feitio observar muito a concorrência, uma vez que sua marca era inovadora e lucrativa em números absolutos, e nem mesmo se sentia à vontade para ficar de conversa fiada com outros líderes. Poderia até considerar a atitude de convidar empresas estrangeiras uma ofensa, pois a Corporação Kaiba sozinha era capaz de fornecer um evento grandioso, a infraestrutura de um estádio moderno e era uma empresa local. No entanto, tal coisa parecia outro jogo para exibir as habilidades de cada marca - e Seto Kaiba sabia que podia vencer aquilo. E venceria.

Optou por tomar um café na limusine e saiu sem acordar seu irmão mais novo, Mokuba. Também não era nada bom para ele testemunhar seu humor seco pela manhã ou suas olheiras. Ficaria preocupado, como sempre, obrigando-o a repetir a mentira tão habitual em sua boca: “Virei a noite trabalhando.” Não era uma mentira impossível, nem podia dizer que era uma mentira de fato, porque havia virado muitas e muitas madrugadas no passado para construir seu império de negócios. Já no banco detrás do automóvel e conferindo o relógio, Seto Kaiba flagrou-se puxando a carta do Dragão Branco.

— Maldito hábito. — Ele disse, embora sem largá-la. A carta era tão incrível quanto da primeira vez que a segurou, ainda só um garoto. Suas palavras na época, não podiam ser mais verdadeiras:

Estou apaixonado por esta carta!”

Eram também palavras amargas.

A chuva continuava a martelar o vidro do carro, o clima tempestuoso feito os pensamentos dele. O trajeto até Chiyoda, bairro onde estava a sede do Ministério, não era muito longe, mas lhe dava minutos para pensar. Deslizou os dedos pelas bordas da carta com carinho, recordando-se de como o Dragão havia lhe acompanhado durante esses anos todos. Uma voz no fundo de sua mente dizia que não, aquela memória de infância não era a primeira vez que viu o Dragão.

Ele piscou e não estava mais naquela realidade.

Era noite, o céu salpicado de estrelas como jamais uma cidade moderna poderia ver além da neblina e da poluição. A mente de Seto gritou para que aquela memória parasse, porém  vento ainda castigou seu rosto e o aroma árido do ambiente encheu seus pulmões. Sua boca se tornou muda, pois quem falava era a lembrança milenar. O corpo de Seth era jovem, a pele de suas mãos cor de bronze a segurar as rédeas do cavalo. Era mais uma volta noturna para além de seu vilarejo, um passatempo pacato de um rapaz criado apenas pela mãe, com grandes ambições e poucos recursos. O que tinha era a erudição recebida através dos templos e ia cada vez mais a fundo nos segredos das estrelas, da vida, da morte. Sabia que os sacerdotes viam isso com bons olhos e que consideravam levá-lo para essa vida devota aos deuses e ao faraó, o que bem deixava sua mãe orgulhosa. Ela sempre falava que isso era seu destino, e que seu pai ficaria orgulhoso. A questão é que ela nunca dizia mais nada sobre ele, o que era motivo de algumas discussões, inclusive a mais recente. Seth se irritava. Tudo o que havia conquistado foi pelas próprias mãos e suor, os deuses enxergavam aquilo e abençoavam seus esforços. Não era destino. Não era seu sangue. Era ele.

O ritmo da cavalgada era calma apesar de seus nervos, sem rumo entre os rochedos e parca vegetação. Aos poucos se acalmava e o seu semblante era sereno.

Até que ouviu um grito.

Rangeu os dentes. Não era sábio se aventurar além, pois estaria sujeito aos perigos que espreitavam as sombras. O reino parecia mais seguro depois da destruição de Kal Elna, ou era isso o que os mais velhos diziam sobre a aniquilação da vila de ladrões e assassinos. No entanto, não eram raras as notícias de saques, invasões.

Seth avançou com o cavalo.

Era um garoto de coração nobre e sua mãe dizia que isso era bom, pois agradaria os deuses e garantiria uma vida melhor após a morte. Um coração mais leve que a pena de Ma’at. Ela também dizia que tal virtude poderia lhe trazer problemas se não pensasse nas consequências de seus atos. Tudo o que ele pensava naquele instante era que alguém morreria caso não fizesse alguma coisa e aquilo, com certeza, não agradaria deus algum.

Foi a primeira vez que a viu, a menina numa jaula. Uma prisioneira. Não parecia ser daquelas terras, tampouco parecia real. Sua pele estava longe da cor bronze, muito menos era como o ébano da tez dos vilarejos vizinhos. Mais que a cor rosácea dos países além mar, a menina era branca, lívida, assim como seus cabelos. Uma estrangeira, talvez, de algum lugar distante que jamais ouviu falar. O restante da caravana bebia e ria envolta da fogueira, mal prestando atenção em seus cavalos e seus pertences, muito menos em sua prisioneira. Ele reconheceu pelas adagas e pelo comportamento que tratava-se de bandidos de estrada, mercenários baratos de jeito grosseiro. Ele aproveitou a distração para se aproximar e soltar a menina. Desceu de sua montaria e foi até ela.

“O que está fazendo?” Disse, sua voz muito sussurrada.

A forma de articular a frase era um tanto trôpega, o que confirmava a teoria de que ela não era dali. Não era bom ter uma aparência distinta daquelas e ainda não falar bem a língua, pois somente assimilando a cultura local que seria considerada uma pessoa. Do contrário, permaneceria como um ser humano baixo, um objeto, uma escrava. Seus joelhos estavam trêmulos, a pele suja e com alguns hematomas. Seth a ajudou a descer da jaula, mal acreditando que ela conseguia manter-se de pé.

Um dos bandidos virou sua atenção à eles e começou a gritar, chamando os outros.

“Salvando sua vida.”

O rapaz pegou sua mão e correu até o cavalo. Apesar do tempo gasto auxiliando-a montar no animal, os dois conseguiram escapar dos homens. Cavalgaram noite adentro, cada vez mais longe dos brados dos algozes e longe até mesmo de onde Seth morava. Ele questionou a menina se tinham parado de persegui-los e, ao ouvir que sim, desceu do cavalo ainda em movimento. Ele era ágil e continuou a correr ao seu lado.

“Continue em frente.” Ele lhe instruiu. “Logo chegará às muralhas da cidadela e poderá voltar para seu país.”

“Qual é seu nome?”

“Seth.”

Ele deu um tapa na lombar do animal, que disparou para frente ainda mais rápido. Seu cavalgar soltava poeira sob a luz do luar. Antes que ela desaparecesse no horizonte, pôde ouvir a jovem agradecer, sua voz igual a doçura de um rio:

Espero um dia poder retribuir!”

Ele não queria que tivesse a necessidade, nem que a menina viesse a este mesmo local para ser escorraçada mais uma vez. No entanto, seria interessante vê-la de novo, um pedaço da lua que caiu na areia por puro descuido. Ele sorriu e imaginou que tal aventura fosse vista com bons olhos pelas divindades.

Caminhou por muito tempo antes de chegar em seu vilarejo, apenas para encontrá-lo em chamas e pessoas gritando, chorando. Pessoas queimadas, muitas já mortas.

Não achou sua mãe. Sua casa era menos que pó. Mas os bandidos, aqueles que haviam aprisionado a menina, o encontraram. Jogaram-o no chão, chutaram seu torso. Foram eles que atacaram o povo e queimaram as casas. Disseram coisas que não entendia, embora Seth compreendesse em suas palavras que a menina era valiosa para eles, muito mais do que a vida do que qualquer inocente. Uma mercadoria rara. Se antes achava que tinha ajudado uma deusa, agora pensava o que então tinha feito para despertar tamanha fúria, tamanho castigo. Ele ganiu de dor, ganiu de ódio. Depois de medo.

Então o Dragão Branco surgiu das labaredas, suas escamas alvas refletindo o fogo.

Seu grunhido retumbou por todo o deserto, vibrando o corpo assustado e ferido de Seth. Ele olhou para a criatura no céu batendo suas asas com força, e teve a certeza que os olhos incandescentes do animal divino encararam de volta, contemplando seu espírito. O tempo pareceu desacelerar. As chamas silenciaram-se, o vento assoviava distante. Só havia a respiração dele, baixa e entrecortada, e a aura do Dragão banhando-o em tons de branco e azul. Um dos homens que o segurava pelo tecido da roupa o soltou, assim como o restante afastava-se em reverência covarde. Sabia-se que além das divindades, existiam também os dragões deuses com poderes imensos e de natureza misteriosa. Somente os faraós podiam invocá-los. Seth soltou um suspiro, seu peito tomado por um sentimento morno. Ele, tão devoto quanto um jovem rapaz poderia ser aos seus deuses, testemunhava a soberania de sua mera presença.

Não estava aterrorizado.

Os bandidos correram em direção aos seus cavalos, porém tarde demais. Eles temiam que a justiça do Dragão fosse pior que a de Ammit ou as torturas reservadas aos pecadores, então tentaram escapar com súplicas e promessas vazias. O Dragão abriu sua bocarra com um sonoro rugido, disparando luz tal qual uma flecha lançada ou uma estrela cortando o céu de Nut. Desapareceram nas cinzas e na areia, sem deixar rastros. Suas almas foram condenadas à inexistência absoluta, bem como seus corpos.

Seth encarou com fascínio os olhos azuis do Dragão uma última vez antes que tal entidade desvanecesse, sabendo que tinha sido protegido por ela - e sentindo que sempre seria.

 

— Senhor Kaiba? — Seu funcionário repetiu, a voz incerta. A porta do automóvel estava aberta já havia alguns minutos, embora Seto não tenha se movido. — O senhor está bem?

Ele franziu a testa, passou a mão no cabelo. Guardou a carta de volta no deck, saindo do carro com rapidez. A verdade é que suas mãos tremiam. As visões estavam cada vez mais intensas, pois tomavam sua mente e corpo por minutos - mesmo ainda acordado. Não podia permitir que isso acontecesse na frente de outras pessoas, principalmente agora numa reunião.

— É, claro. — Confirmou ao homem que fechava a porta da limusine. Antes que este pudesse sorrir, talvez por seu patrão não lhe dirigir nenhuma palavra áspera, Seto fez um gesto no ar de puro deboche como se abanasse tal preocupação tola dali. — Mas não lhe devo satisfações do que se passa na minha cabeça.

— Sim, senhor.

Ele subiu os largos degraus da entrada, ladeado por alguns funcionários do prédio que lhe davam instruções e outros que faziam uma tentativa débil de engajar uma conversa superficial. Ele assentiu com vago interesse, se dirigindo ao saguão e depois ao elevador. Mal notava os flashes de câmeras ou o barulho da mídia que noticiava a ocasião. Sua mente dividia-se em fragmentos de memórias e o pensamento racional de que deveria se focar no instante presente se quisesse mostrar poder absoluto às outras empresas. Tinha que se assegurar que a Corporação Kaiba fosse a principal contratada para um novo e maior Torneio de Duelos. Esperava que o Secretário do Ministério desse preferência às empresas locais, portanto seu maior rival naquele momento era o grupo Nami e seu detestável líder, Ren Hokusai.

No entanto, assim como uma tempestade de areia que movia as dunas, a cabeça de Seto não repousava num único ponto - e nem mesmo a música de elevador conseguiu relaxar seus ombros tensos. Aquela memória… Sim, tinha sido a primeira vez que viu o Dragão e a primeira vez que tinha visto a estranha de cabelos brancos.  Ele a salvou e ela o protegeu, a história dos dois começou e terminou assim.

Uma das últimas lembranças que tinha dela era seu sacrifício, quando Kisara se pôs a frente de um golpe que deveria acertar o sacerdote e foi alvejada no centro do peito, exatamente onde batia seu puro coração - e em ele como chorou por ver seu corpo inerte, sua alma selada junto com o Dragão numa tábua de pedra. Seu espírito alvo, antes de desvanecer, lhe fez a promessa de servi-lo e protegê-lo para a eternidade.

Ela cumpria sua parte.

Seto sabia que não iria deixá-lo agora, onde quer que repousasse seu espírito. Em seu íntimo, quando não se recriminava por pensar em almas e emoções ou outras vidas, ele ardia para que Kisara estivesse ao seu lado, mesmo sabendo que isso era impossível. Uma tola ilusão que jamais se concretizaria. Tinha sido assassinada - pois era assim que ele denominava aquilo, um assassinato— há pelo menos três mil anos e, de acordo com o que viu, sua alma foi presa para todo o sempre. Sem paraíso, sem reencarnação ou quaisquer fantasias religiosas. Ademais… Seto era um homem cauteloso, calculista, e enxergava  padrões. Na vida passada foi um homem poderoso, erudito e um tanto severo, com um péssimo relacionamento com o pai. Não era muito diferente agora. Certas coisas tinham o péssimo hábito de se repetir e ele não aguentaria vê-la partir novamente. Assim como muitos sábios haviam dito antes dele, o eterno retorno era implacável e repetia as mesmas amarguras e iguais doses homeopáticas de alegria. Não poderia suportar tal trauma outra vez.

As coisas eram melhores assim, sozinho. Só desejava que essas visões do deserto parassem de confundir seus sentidos.

 

— A sala de reuniões foi preparada para receber você e os líderes de outras empresas. — Uma mulher aproximou-se com uma breve reverência, entregando uma prancheta com os dados do Torneio, as expectativas dos empregadores e o valor do investimento. Existiam mais de um concorrente selecionado para a discussão, mas as as equipes que chamaram atenção de Seto além do grupo Nami foram as do Canadá, Alemanha, Coréia e por fim uma última equipe pequena e mal digna de nota da Estônia. Kaiba passou os olhos por aquilo e soube apreciar o jeito sucinto da funcionária. — Todos já estão aqui, falta apenas o representante do governo para conduzir as negociações. É a sala seguinte.

Seto Kaiba flagrou-se pensando no café que não tinha tomado no trajeto de seu apartamento até a reunião, mas não tinha problema. Adorava devorar a concorrência pela manhã. Remoeu os melhores argumentos na ponta da língua, enumerou cada conquista da Corporação e cada avanço tecnológico de destaque para desbancar o resto. Não seria uma tarefa exatamente simples, pois existiam muitas variáveis e oponentes respeitáveis. De qualquer modo, ele gostava de um bom jogo.

As portas automáticas se abriram, revelando uma sala de vidro e uma mesa ovalada. Haviam duplas para cada equipe e todas conversavam entre si, num tom ameno que mal interessava a Seto. Sabia que aquele clima afável era falso, embora tenha respondido aos cumprimentos educados, inclusive de Ren Hokusai. Foi somente quando sentou-se que a viu.

Uma visão do oásis no meio do deserto. Uma miragem.

Todos os músculos de seu corpo fisgaram quase num soluço, ficando rígidos, tensos. Ele engoliu em seco e tentou parecer indiferente a mulher de cabelos alvos e pele clara, de gestos muito suaves enquanto dialogava com a equipe coreana. Leu a placa a frente de seu assento: Empresa Ada, da Estônia. Ela não notou seu olhar fixo e logo não houve mais tempo para nada. O Secretário do Ministério das Terras, Infraestrutura,  Transporte e Turismo adentrou o recinto, obrigando Seto Kaiba a voltar sua atenção ao momento presente.

As apresentações foram corteses e breves. Era uma honra para qualquer um ser convidado por tal Ministério, somente menor do que o Ministério da Defesa do Japão. O Secretário cumprimentou a todos, depois ficou à frente da mesa, próximo a ponta. Ao seu lado havia uma tradutora, que repetia o que ele dizia em inglês, para que o restante pudesse entender suas palavras. Kaiba, é claro, entendia tanto em sua língua nativa quanto a tradução.

— Sei que todos aqui presentes tem justificativa ótimas para serem escolhidos na construção do primeiro estádio internacional de Duelos. Sei que são projetos mais ambiciosos que o Domo de Tóquio. Mas queremos promover algo maior do que isso, mais do que o nome de uma empresa num contrato, afinal, os Duelos servem para aproximar pessoas. Por que não países?

Seto franziu a testa, e logo viu que o restante de empresários fez o mesmo. Todos ali estavam com discursos preparados na ponta da língua para desbancar os concorrentes, não com planos de diplomacia. Isso estragava todos os seus devaneios de pisar em Nami. Os Torneios de Duelos já eram populares em todo o mundo e movimentavam milhões no mercado devido ao comércio de cartas, acessórios e competições, sem falar nos avanços tecnológicos para aprimorar os hologramas. Todos queriam uma fatia daquilo.

— Portanto, — Ele continuou. — Vocês também vão competir e cooperar para a construir algo que represente o espírito dos jogos de Duelos. Nós vamos avaliar o design, a inovação e o conforto aos usuários, mas também vamos considerar bem o orçamento.

Risadas nervosas.

Outros funcionários uniformizados adentraram a sala com pastas escuras e dispuseram à frente de cada um na mesa. Seto agradeceu por educação, já folheando o conteúdo sem acreditar. Eram diretrizes da competição, enumerando itens que cada projeto deveria apresentar e o prazo de até três meses para ser entregue. Ao fim, cada projeto seria avaliado pelo Ministro, além de passar por uma votação popular pela web.

— Os vencedores contarão com patrocínio, auxílio em impostos, e é claro… As honrarias de construírem o Estádio. A ajuda mútua entre os países servirá também para estreitar as relações econômicas, então poderão fazer algo muito significativo para suas respectivas nações. Nós, do Ministério, optamos por essa dinâmica para que o projeto surja do que verdadeiramente representa os Duelos: Competição amigável e Cooperação. E, assim como qualquer partida se inicia com cara e coroa, começaremos com um pouco de sorte para decidirmos as equipes. Todos de acordo?

Seto Kaiba não estava de acordo. É claro que não tinha como contestar o Secretário do Ministério só porque preferia trabalhar sozinho, mas aquele discurso lembrava-lhe a ladainha sobre amizade e o poder das cartas que tanto Yugi dizia. Baboseiras. Ainda um pouco pasmo, observou os nomes das empresas girarem nos hologramas ao lado do Secretário. O sorteio indicou o primeiro grupo: Feder, da Alemanha e Taebaek, da Coreia do Sul. A dupla de representantes de cada cumprimentaram-se, um tanto satisfeitos. Seriam adversários fortes.

Ele inspirou fundo. Será que teria o desprazer de trabalhar com justamente Ren Hokusai? Ou então será que… Seto encarou a jovem do outro lado por apenas um segundo. Não queria pensar na palavra destino, recusava-se a aceitar besteiras sobre deuses. Desviou o olhar antes que ela ou outra pessoa notasse, voltando sua atenção para os hologramas. Uma das mãos apoiava suas têmporas, a outra tamborilava a mesa de maneira discreta, porém incessante. Faltavam apenas mais três seleções.

Segundo grupo: Moose, do Canadá e Brea, Chile.

Quem fosse sorteado em seguida decidiria o último sorteio, já que seriam as empresas restantes. Fazia tempo que não sentia um calafrio tomar conta de seu estômago, mas tratou de deixar o olhar duro, sério como sempre.

Terceiro: Nami, Japão e Elysées, França.

Seto mal viu Ren Hokusai cumprimentar os franceses e nem pensou no agouro do número quatro, já selecionado também nas letras coloridas dos hologramas. Ele se levantou por instinto, mal ouvindo as vozes ao fundo das outras pessoas conversando.

Quarto e último grupo: Corporação Kaiba, Japão e Ada, Estônia.

A jovem de cabelos brancos veio acompanhada de outra mulher, que fizeram o máximo para serem cordiais e respeitarem o costume do ojigi, de modo que se curvaram em reverência por alguns instantes. Seto curvou-se em resposta automática, depois ofereceu aperto de mão do hábito ocidental. A mulher mais velha se apresentou como Vaike Ergma, líder da companhia Ada, e teceu algumas palavras sobre seu próprio trabalho e elogios ao desempenho da Corporação Kaiba. Foi a vez da jovem se introduzir.

— Me chamo Kisara Kask. É um prazer conhecê-lo.

Sem saber o efeito que seu nome provocava em Seto, ela sorriu, mas havia olheiras abaixo de suas íris azuis - tão azuis que sua cabeça insistiu em lembrar-se da comparação com a pedra: lazúli. Seto bloqueou esse tolo pensamento e se focou nas olheiras dela, pouco escondidas por uma camada de maquiagem. O que teria tirado seu sono? E por que ninguém parecia se importar?

Ele se importava.

Droga, havia pensado mesmo naquilo? Em um segundo, mal fazia diferença. Ambos sustentaram um olhar que atravessava milênios, até que o Secretário do Ministério chamou a atenção dos competidores para últimas considerações. Foi difícil se concentrar, mas ao final de tudo Seto Kaiba saiu ileso daquela estranha reunião - ou o mais ileso que poderia. Na realidade, parecia que todos os seus pontos de vida tinham sido reduzidos a zero num Duelo difícil.

Ao voltar para a limusine depois do encerramento de certas formalidades, Seto tirou uma bebida do frigobar do veículo. Não costumava a lançar mão do álcool para se acalmar, muito menos pela manhã, mas ninguém seria estúpido por impedi-lo de tomar uma dose de saquê em seu próprio carro. O gole foi longo e demorado. Em seguida pensou em como estava sendo tolo. É claro que ninguém o impediria, pois não havia ninguém ali - só o motorista a frente, separado por uma janela escura. Não havia ninguém, repetiu para si mesmo, só ele, o saquê e seu deck de cartas. Tirou o Dragão Branco e mais uma vez se pôs a observar o brilho de sua superfície lisa. O que aquilo tudo significava? Deveria ser impossível… Fechou os olhos. Nada. Aquilo não significava nada além de mero fruto do acaso, que obrigou uma estrangeira ser muito parecida com uma ilusão distante. Não era destino. Não eram os deuses, espíritos. Seto Kaiba era um visionário, um homem focado no futuro e não no passado, e certamente não no passado fictício de…

Bebeu mais um gole, interrompendo seus devaneios. A quem queria enganar? Era o eterno retorno, cujo tanto havia lido sobre.

Encostou a cabeça no estofado do automóvel, soltando um suspiro. Seriam longos três meses.

* * *

* Ministério da Terra, Infraestrutura, Transportes e Turismo realmente existe no Japão. Sei disso pela Kagomechan!
*Kal Elna é a cidade "amaldiçoada" na lore de Yu-Gi-Oh.
*Ma’at - Deusa da Justiça e equilíbrio na mitologia egípcia. Depois da morte, o coração das pessoas é pesado numa balança. Se tiver o mesmo peso que uma pluma de Ma'at, você terá um destino feliz no pós-vida.
*Ammit - criatura que devora o ka, ou espírito, dos indignos após a pesagem do coração.
*Nut - a deusa da noite. Seu corpo reveste a abóbada celeste.
*Nenhuma empresa citada aqui na fic realmente existe, seja na realidade ou na lore de Yu-Gi-Oh. Como disse nos disclaimers, não quero algo 100% voltado aos duelos e etc.
No entanto, a empresa ADA foi criada em homenagem à Ada Lovelace, a mãe da programação! Outra informação compartilhada pela Kagomechan! Escolhi a sede ser na Estônia, um país muito envolvido em avanços digitais. Eles até mesmo votam pela internet!
*Também optei por não fazer a Kisara japonesa. Apesar do nome parecer japones, na verdade é de origem árabe, aparentemente. Kask é um sobrenome comum da Estônia, isso eu pesquisei asdhasod

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