A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 42
41: O limiar entre nós


Notas iniciais do capítulo

Tem sido meio corrido escrever os capítulos ultimamente, mas até agora está tudo bem, então obrigada por voltarem!



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Aquele homem era realmente algo para levar em conta.

Arisu geralmente não se interessava por tipos violentos, mas naquele caso, seria um desperdício de um rosto tão bonito.

E vendo-o como ele virava descuidadamente uma taça de champanhe após a outra e não parecia sequer começar a ficar bêbado, mesmo quando começou a misturar as bebidas, pois realmente queria experimentar os drinks que eram servidos no bar, ele parecia ter um grande potencial.

—Você realmente tem uma grande tolerância ao álcool, não é? — perguntou com um sorriso de lado, girando a taça de champanhe na mão.

—Você não acreditaria. — ele sorriu-lhe de lado brincando com uma cereja entre os lábios antes de comê-la — Você por acaso não está tentando me distrair aqui enquanto a polícia cerca o prédio, está? Porque garanto que eles teriam uma bela surpresa.

Completou rindo de leve.

Sua postura relaxada, seus modos tranquilos e sorridentes, a voz mansa… sim, tudo muito bom, na privacidade de seu escritório ela avaliava-o cada vez mais interessada.

—Você fez um belo estrago lá. — admitiu, observando suas reações atentamente. — Achei que fosse outra briga de bêbados arruaceiros, elas não são tão incomuns nesse ramo de trabalho.

—Imagino. — ele respondeu despreocupado.

—Eu teria chamado a polícia, mas quando o vi pensei que seria mais vantajoso trazê-lo aqui para lhe oferecer um pouco de água gelada e algo para comer, enquanto faço um pequeno… estudo. — comentou girando a taça de champanhe lentamente.

—Espere aí, então você atraiu-me para uma arapuca! — ele a olhou atentamente — Prometendo-me champanhe quando na verdade planejava me servir água?!

—Precisamente. — confirmou inclinando-se sobre ele e passando a unha pela lateral de seu rosto, tracejando desde a ponta da orelha e descendo pela linha da mandíbula — Mas você parece surpreendentemente sóbrio para mim, Gin… — A forma como sua voz soava aveludada quando dizia seu nome… Gintsune adorou aquilo. — E não apenas continua sóbrio, como também tem se mostrado deliciosamente promissor.

Sorrindo, ele enlaçou a cintura estreita da mulher com a mão livre.

—Ah, já me disseram que sou alguém muito auspicioso. — comentou inclinando-se — E quão promissor você acha que estou me revelando até agora, Arisu…?

Sorrindo ardilosamente a mulher esquivou-se dele, apoiando uma mão em seu tórax e usando como apoio para afastar-se.

—Isso ainda está em avaliação. — argumentou bebendo mais um golinho de champanhe, de forma provocadora, apreciando como ele sorria de volta e bebia outra taça. — Fuma?

—Com alguma regularidade. — admitiu rindo.

O que é isso? Arisu não pôde conter seu sorriso, será que ela havia tropeçado em seu próprio Empire Diamond?

—Tem alguma marca de preferência?

Talvez pudesse solicitar uma carteira e avaliar a forma como os fumava também…

—Oh, na verdade não fumo cigarros.  — negou rindo enquanto servia-se de mais champanhe, esvaziando assim outra garrafa — E nem charutos, se é o que estava prestes a me perguntar.

—Então… — Arisu fez uma careta — O que fuma?

—Tenho um cachimbo muito precioso. — contou virando a taça e bebendo tudo de uma vez.

Isso poderia ser um problema… mas por agora Arisu se concentraria no que havia de positivo:

—Essa já foi sua terceira garrafa, estou certa? — comentou — E já bebeu talvez uns quatro drinks diversos…

—Cinco. — Agora mesmo enquanto falava ele estava aceitando um copo de Vodka Margarita Rosa.

—Mas mesmo assim você me parece sóbrio, então estou curiosa: se não foi a bebida qual foi à razão de você atacar aquele estranho no meu bar? Algum gosto peculiar pela violência?

Ele jogou a cabeça para trás, olhando para o teto enquanto permanecia em silêncio por um bom momento, estava pensando na resposta ou era apenas a bebida começando a fazer efeito?

—Eu não sou particularmente violento, mas admito que foi prazeroso socar aquele sujeito. — respondeu bebendo distraidamente — Talvez porque ele fosse um verme traidor.

O semblante de Arisu ficou visivelmente mais frio, e ela deixou sua própria taça, ainda pela metade, sobre a mesa com um suspiro.

—Você por acaso é algum moralista?

Gintsune começou a rir tão repentinamente que mesmo quando se cuspiu toda bebida, ele não conseguiu parar.

—M-me desculpe. — gaguejou tossindo enquanto tentava se secar, mas ainda estava rindo — Ninguém nunca me perguntou se eu era um moralista antes… — ele deixou o copo sobre a mesa, tremendo enquanto tentava conter o riso — J-já me chamaram de muitas coisas: “canalha”, “cretino”, “marau”, “vagabunda”, “libertino” “bêbado”. Mas moralista… deve ser a primeira vez.

Arisu ainda não estava bem certa sobre o que pensar dele, então perguntou cruzando as pernas:

—Então por que lhe incomodou tanto uma traição de um desconhecido?

—Ah, não posso falar sobre casais infiéis, eu mesmo devo ter arruinado algumas dezenas de centenas de relacionamentos. — um pouco mais calmo ele pegou seu copo e bebeu mais um gole — Porém, mesmo eu tenho meus limites, aquele sujeito iludiu uma amiga, e trair os amigos… ele merecia o soco.

Que resposta… peculiar, Arisu arqueou uma sobrancelha.

—Então você costuma ser muito leal aos seus amigos, eu suponho.

A expressão de Gintsune tornou-se séria, ele estalou a língua desviando o olhar.

—Eu costumava achar que sim, mas aí… — ele deu um sorriso amargo e bebeu mais um gole antes de deixar o copo de lado — Perguntou-me se eu sou um moralista, mas não acho que alguém com moral tão elevada assim iria sair para beber e se divertir depois de perceber que machucou profundamente o coração de uma amiga.

Inclinando-se ligeiramente, outro garçom apresentou-se com mais uma garrafa de champanhe para substituir à antiga, as ordens de Arisu eram continuar trazendo-as até que ela dissesse chega.

—Então se eu entendi corretamente, Gin…

—Por favor, eu queria mais dois desse aqui. — ele acenou para o garçom com seu copo vazio antes de ele sair.

—… mesmo que tenha essa alta tolerância a álcool, a única razão para você estar bebendo tanto agora, é porque magoou essa amiga?

—Ah não, temo que tenha me entendido errado, linda dama. — ele sorriu-lhe brilhantemente, sem deixar nenhum rastro da expressão taciturna de antes — Eu amo beber, seja na miséria ou na fortuna, sempre há uma razão para beber!

—É um alívio ouvir sobre isso! — Arisu gargalhou, pegando da mesa sua taça de champanhe e erguendo-a — Então por que não fazemos o seguinte: iremos brindar a nosso fortuito encontro, enquanto conta-me um pouco mais da miséria que causastes.

Isso com certeza levariam mais do que uma noite e muitas outras garrafas de bebidas, mas se Arisu estava preparada para pagar, Gintsune não tinha porque recusar, sorrindo, ele ergueu a taça para brindar junto a ela.

Mas enquanto estava ali, bebendo e conversando naquele ambiente tão divertido, sua linda irmã estava em algum canto do Jardin Sankeien, em Yokohama, dormindo ao relento, é claro que Gintsune também gostaria de sempre proporcionar o que houvesse de melhor para sua amada irmã, mas não havia nada que ele pudesse fazer se ela preferia descansar ao relento, não que Momiji fosse capaz de dormir por longos períodos de qualquer forma, apenas duas ou três horas por vez, e hoje, como de costume, ela levantou-se cerca de meia hora antes da aurora, puxou seu pente de madeira da manga e começou a pentear os cabelos.

Momiji e Gintsune haviam sido criados como nômades por seus pais, portanto era natural que eles não possuíssem muitos pertences aos quais se apegarem, além daqueles que podiam carregar consigo, Momiji sempre abandonava suas roupas quando conseguia novas, e não havia nada que carregasse consigo em tempo integral além do fio de cabelo de To-chan e do pente que os pais lhe presentearam, e To-chan também sempre carregara poucos pertences consigo, mas olhando agora, parecia que sua coleção vinha aumentando gradualmente.

Inicialmente, ele carregava consigo apenas o cabelo da irmã e o kiseru presenteado pelos pais, mas desde que eles se reencontraram, To-chan sempre carregava consigo um grande chapéu de palha trançada que “precisava guardar bem para devolver ao tengu” e mesmo que arranjasse roupas novas ele se recusava a desfazer-se do quimono antigo, e agora, além disso, também guardava uma luva, um grampo de cabelo e uma presilha de plástico em forma de flor.

To-chan era uma criatura atenciosa e cuidadosa, então havia pedido à irmã que guardasse seus tesouros enquanto ele se divertia, pois não queria perder nenhum de seus preciosos pertences, porém, independente de quanto tempo ela os observasse ou seguisse pensando naquilo, simplesmente não conseguia entender o que havia de tão precioso naqueles três últimos itens mundanos para serem tão especiais ao seu precioso príncipe, mas pressentia naturalmente que a resposta a irritaria, então se abstinha de perguntar.

Suspirou terminando de amarrar os cabelos com sua fita prateada e guardando o pente de volta na manga, o sol já havia despontado e logo To-chan estaria de volta, então levantou e pensou em dar uma caminhada curta para admirar mais algumas das belezas invernais do jardim Sankeie, pensando em talvez visitar o pagode, logo vários visitantes humanos estariam chegando, mas desde que eles não a incomodassem ela não se importava, ainda assim havia escolhido uma das trilhas menos movimentadas, quando uma sombra cruzou o céu.

E ao erguer o olhar, o que viu a fez empalidecer.

A escuridão engolia o mundo, não havia para onde fugir dela, parecia que ela abraçaria toda a terra, quer você estivesse na grande e movimentada Yokohama, ou na pequena e pacata Higanbana.

Ele podia não saber se havia existido em algum momento anterior à pousada, mas de uma coisa tinha certeza: a escuridão era aterrorizante e esmagadora.

Geralmente Zashikis Warashis se escondiam nos cantos mais escuros dos quartos, para velar por todos em segredo, a escuridão era amiga de sua raça… mas não dele, ela era sua prisão.

E somente aquela mulher era capaz de compreender o peso opressivo das sombras, e a beleza libertadora dos raios, assim como o consolo de poder sentir novamente o calor de uma nova aurora, mas ela não estava ali agora: havia ido embora com seu irmão problemático.

 Então quando até mesmo o sol era engolido pelas sombras, que esperança restava?

Escuro. Solidão.                                                                                  

Encolheu-se fechando os olhos e cobrindo os ouvidos, o coração batia acelerado em seu peito, a respiração descompassada, queria sair, queria sair, queria…! Por que ninguém vinha ajudá-lo…? Por que o haviam deixado ali? Ele havia sido bom para eles, então por que o tratavam assim…?

—Nossa, o que faz aqui sozinho? — uma mão tocou-lhe o ombro, sobressaltando-o — Rapazinho você está bem?

O Zashiki Warashi abriu os olhos.

—Chi… haru? — perguntou tremulo.

—Parece tão assustado, onde estão seus pais?

Sim, estava completamente apavorado, tanto que nem se perguntou como ela estava o vendo e o tocando naquele momento, apenas atirou-se impulsivamente contra a mulher a sua frente, agarrando-se a ela.

—Por que está tão escuro?! — chorou segurando-se a ela — Eu sou bom, não me tranquem lá de novo…!

 

 

De novo?

Lá aonde?

Quem o tinha trancado? Por quê? Ele não se lembrava de nada.

Mas estava com medo.

Com muito medo de ser deixado novamente na escuridão.

Odiava-os! Odiava-os! Iria amaldiçoá-los…!

—Você está tremendo, pobrezinho. — Chiharu o acolheu, passando as mãos em suas costas — Está tudo bem, é apenas um eclipse, uma coisa linda e rara de se ver, não precisa ter medo, como você se chama? — ele não respondeu, nunca havia tido um nome. — Tive uma ideia, por que não vamos lá fora para observar junto com os outros hóspedes? Seus pais devem estar lá também e eu fiz um projetor pinhole.

Nenhum raio veio dessa vez para partir o teto, atravessando a escuridão e mostrando-lhe a liberdade, mas ela o pegou pela mão e começou a guiá-lo com a lanterna de um celular… oh isso não estava certo, percebeu de repente, nenhum raio nunca havia atingido a pousada Shibuya, havia para-raios na casa e na pousada, então nenhum nunca havia atravessado o teto e causado esses danos… mas por que achou que se lembrava de algo assim…?

A pousada e casa de banhos Shibuya contavam com dois estacionamentos: o primeiro, mas extenso e coberto, estava localizado na base da colina rochosa, destinado somente aos hóspedes de longo prazo e o segundo, a céu aberto localizado no topo da colina, justo diante da entrada da pousada era destinada àqueles que passariam um curto período de tempo, para usar os banhos ou, no máximo, pernoitar, mas naquele dia o estacionamento aberto estava completamente livre de veículos e ocupado inteiramente pelos hospedes e funcionários da pousada que se espalhavam sozinhos ou formando pequenos grupos ocasionais, todos com uma variedade de equipamentos para apreciar o eclipse solar, em sua maioria os equipamentos era apenas projetores pinholes caseiros ou óculos de papel com filtro de polímero, mas ainda havia alguns com telescópios ou câmeras preparados com filtros especiais e, bem ali, estava um casal de idosos com o que pareciam ser óculos de solda.

Isso talvez se devesse em grande parte aos esforços de vovó Tsubaki que havia sido bem incisiva em alertar todos, fossem hospedes ou funcionários, a não olharem de jeito algum diretamente para o eclipse “a menos que quisessem ficar permanentemente cegos”, mas aquilo em que ela certamente colocara mais esforço fora em arrancar seu filho turrão do escritório para apreciar o evento solar também.

—Isso não é algo que se veem todos os dias, Daisuke, a vida é mais do que apenas tabelas e folhas de pagamento! — Tsubaki estava ralhando com o filho rabugento de pé ao seu lado.

—É uma sombra em um pedaço de papel, mamãe. — Daisuke respondeu resoluto enquanto tentava ajustar adequadamente os binóculos sobre o ombro para projetar a luz sobre a cartolina branca aos seus pés. — Posso ver um “espetáculo” melhor apenas sintonizando no noticiário esta noite, tenho certeza que estarão falando sobre isso.

Próximo a eles Yukari permanecia em silêncio, ela realmente andava mais quieta que o normal, também assistindo com uma expressão tão entediada quanto a do pai.

—O que é que eu vou fazer com vocês dois?!  — Tsubaki sacudiu os punhos sobre a cabeça, cerrando os dentes como se quisesse enfiar o juízo à força na cabeça de seu filho e sua neta cabeças duras até que virou-se turbulentamente ao perceber a presença da nora — Chiharu, está atrasada! Onde você estava?!

—Me atrasei porque encontrei um pequeno hóspede, ele… onde está?

Ela virou-se confusa olhando de um lado para outro, será que havia encontrado os pais?

Nem havia se dado conta do momento em que soltou sua mão… assim como também não era capaz de perceber que, na verdade, a criança continuava parada justo ao seu lado.

—Como ele era? — perguntou Daisuke.

—Um garoto pequeno, de uns sete anos, vestido formalmente com hakamas e haori, como se estivesse pronto para sua cerimônia shichi-go-san. — descreveu Chiharu — Estava escolhido perto das escadas, com medo do escuro.

—Ele deve ter avistado os pais. — Daisuke respondeu muito concentrado em sua tarefa, embora já tivesse declaro seu desinteresse por ela.

—Ou era o Zashiki Warashi da pousada. — vovó Tsubaki brincou com uma risadinha.

De certo havia alguns raros momentos que, de forma inexplicável e bastante imprevisível, a depender do dia, horário e até da forma como a luz agia, mesmo alguém insensível ao mundo sobrenatural podia acabar tendo alguma espécie de contato, quer se desse conta ou não, com o outro lado, mas geralmente esses momentos eram fugazes, não que isso incomodasse ou decepcionasse o pequeno Zashiki Warashi, alguém havia vindo e segurado sua mão quando as sombras engoliram o sol, ainda estava escuro, mas ele não estava só e tampouco aprisionado, sim, ele era um pequeno e bom espírito da boa sorte, jamais odiaria a humanidade ou tentaria amaldiçoá-los, olhou para o alto, admirando como a lua e o sol se sobrepunham no firmamento, quando se vivia tanto tempo ligado a um mesmo lugar era preciso saber apreciar as pequenas coisas da vida.

Uma lição que possivelmente seria benéfica se aprendida por Yukari também.

Apenas uma sombra em um papel. Refletiu, encarando a projeção na folha de cartolina. Que coisa mais sem graça.

—É claro que quando insisti em ver tudo como sendo preto no branco, só vai conseguir fazer parte de um mundo cinzento e sem graça Daisuke. — ouviu sua avó comentar — Se conseguisse olhar da forma certa, veria que até uma sombra pode ser um evento único e mágico.

De repente Yukari sentiu a avó colocar algo discretamente em sua mão, e confusa percebeu serem óculos com filtro de polímero preto, surpreendendo-se ao ver que tanto sua mãe quando a avó já usava os óculos, enquanto somente seu pai seguia observando a sombra da projeção do eclipse.

—Não entendo o que está dizendo mamãe. — ele respondeu concentrado em sua tarefa.

Tsubaki deu uma piscadinha para Yukari que, reprimindo um sorriso, colocou os óculos, parecia apenas uma sombra cinza e sem graça antes, mas… era realmente um fenômeno único…

Algo de parar o coração.

Por favor. Suplicou a raposa com as mãos no peito, sentindo todo o corpo pulsar. Por favor, termine logo.

A noite era longa e tortuosa, mas cada vez mais suportável, e aos poucos Momiji havia começado a relembrar sua beleza… porém ver o sol ser engolido por trevas diante de seus olhos jogou-a novamente naquele poço do qual temia jamais ter saído.

No inicio achou que se tratava de uma nuvem passageira, mas quando olhou para o céu e viu a escuridão se apossar do sol que acabava de despontar no horizonte, o horror absoluto tomou conta de seu ser, é um eclipse, disse seu lado racional, ela já havia visto dezenas desses, mas esse lado era ínfimo e insignificante comparado ao lado que gritava que a escuridão a engoliria, enquanto tremia e encolhia-se sobre si mesma, não podia voltar, não podia…

Os lábios se separaram sugando o que parecia ser sua última porção de ar naquele mundo:

—To…!

Braços a envolveram.

—Irmã! — To-chan a chamou — Está tudo bem, estou aqui, desculpe ter chegado tão tarde.

Agarrando-se a ele, ela tentou controlar a respiração e a eletricidade que percorria seu corpo desde as pontas dos dedos, inspirando fundo e confortando-se em seu perfume, enquanto ele passava a mão pelos cabelos dela.

—Eu fiquei surpresa. — murmurou satisfeita por sua voz sair tão calma, suas mãos estavam quase parando de tremer — Um eclipse solar não é algo que se possa ver sempre, e estando aqui comigo… quando foi a última vez que nós estivemos juntos durante um eclipse?

Seus olhos dourados fixaram-se no astro rei, a sombra estava diminuindo agora, estava quase terminando, uma pena, ela gostaria de tê-lo apreciado adequadamente, mas ao mesmo tempo estava profundamente aliviada, suspirou deitando a cabeça em seu ombro.

—Acho que quando éramos filhotes. — ele respondeu calmamente. — Por isso quando o vi, vim voando até aqui o mais rápido que pude… é claro que não podia perder essa chance, que bom que cheguei há tempo.

—Deve ter sido difícil, não precisava ter se esforçado assim. — mas mesmo enquanto dizia isso, ela não se afastava de seu abraço.

Era a irmã mais velha, mas estava ali sendo mimada como um filhotinho.

—Eu estava aqui do lado, em Tóquio, só foram uns cinco minutos de viagem. — ele garantiu acolhendo-a.

O eclipse estava em seus momentos finais, quando ela afastou-se, ele pegou suas mãos e beijou uma palma de cada vez, antes de deitar-se com a cabeça em seu colo.

—Estou feliz que o vimos juntos. — respondeu tocando-lhe o rosto.

E Gintsune estava aliviado que sua irmã tinha por hábito sempre se ocultar dos olhares humanos, porque se algum a tivesse visto naquele estado, ele poderia garantir que nenhum teria sobrevivido.

—Irmã, o que quer fazer depois? — perguntou entrelaçando os dedos dela aos seus — Há muitas coisas para se fazer em Yokohama, ou podemos ficar apenas aqui se você quiser também.

—Podemos fazer o que você quiser To-chan, teve uma noite agradável?

Uma risadinha escapou de seu amável príncipe.

—Acho que foi um pouco peculiar.

—Algo inusitado aconteceu? — ela sorriu-lhe.

—Eu conheci uma mulher muito… instigante. — afirmou com um sorriso de canto — Na verdade ainda estava com ela até agora a pouco, talvez até volte para vê-la novamente, mas eu queria ver o eclipse com você!

—Obrigada To-chan, você sempre foi muito gentil…

Uma sombra obscureceu seu semblante momentaneamente, e Gintsune percebeu aquilo de imediato, arregalando os olhos.

—O que foi? — assustou-se se sentando — Ainda está escuro para você, irmã? Se quiser, eu incêndio os céus!

Isso soava muito como algo que o pai deles diria à mãe… provavelmente já havia dito.

—Não, To-chan, tudo bem. — o tranquilizou tocando sua mão — Eu só estava pensando agora, se aquela criança está bem.

—Que criança? — perguntou confuso.

Momiji conteve-se momentaneamente, não queria mencionar aquela cidade, e muito menos aquela hospedaria em especifico, mas talvez isso fosse bom para avaliar o quão ferido seu auspicioso príncipe ainda estava.

—A criança da pousada.

—Ah! O camaradinha? — reconheceu com um estalo — Por que ele não estaria bem?

Agora que Gintsune não estava lá ele devia estar em um estado de espírito especialmente festivo, mas preferiu não mencionar isso à irmã.

—Porque ele não gosta do escuro. — Momiji respondeu naturalmente. — Afinal também esteve por muito tempo selado sozinho nele.

—Ele lhe disse isso? — surpreendeu-se.

—Não, mas… — ela olhou com dúvida para o irmão menor por um instante — To-chan, você não se deu conta?

—Do que? — perguntou confuso.

Momiji piscou.

—Aquela criança da boa sorte, é o mesmo “pequeno deus da boa sorte” que, segundo a lenda do contador de histórias, foi selado e corrompido pela ganância humana certa vez.

Gintsune ficou boquiaberto.

Os raios de sol incomodavam e ele gemeu colocando as patinhas sobre o rosto e tentando encolher-se mais para junto de sua mãe, mas acabou apenas rolando sozinho no chão.

Onde estava sua mãe? Ela nunca o teria deixado sozinho… ah!

Os olhos do pequeno filhote se arregalaram e ele sentou-se com um movimento repentino.

O mundo humano!

Mas sua empolgação rapidamente desmoronou em tédio e decepção, o que era isso? Uma Floresta? Começou a olhar em volta, mas era só um monte de pedras e árvores inúteis, o mundo humano era para ser tão chato assim…? Quase pulou de susto ao perceber que havia alguém sentado de pernas cruzadas ao seu lado, mas era apenas o shikigami da sua mãe.

O boneco parecia já estar ali a um longo tempo, esperando-o acordar.

—O que você quer? — Anko coçou a orelha direita. — Você não tinha trabalho a fazer?

O boneco apoiou ambas as mãos sobre os joelhos e curvou a cabeça diante dele, logo antes de colocar-se ereto novamente e estender-lhe a mão direita, puxando a manga para mostrar a tatuagem de uma raposa tubo cujo corpo longo e esguio enrodilhando-se em volta de seu antebraço, e a cabeça triangular estava demarcado na palma da mão, com a ponta do focinho apontando-lhe diretamente. Ah certo. O Shikigami tinha a missão de buscar os filhotes de sua mestra, e Anko era um dos filhotes dela.

Mokujin tirou a mochila de madeira das costas e abriu-a, tirando de lá um tubo de bambu que abriu para libertar três dos criados de sua mãe.

Estamos livres!

—Viemos para buscar o filhote da mestra!

—Estamos vivas!

Comemoraram voando em torno da cabeça de Anko, mas então pararam repentinamente confusas ao reconhecê-lo, afastando-se um instante para reunir-se e chia entre elas.

—Por que o jovem mestre está aqui? — perguntou uma delas há poucos centímetros de seu rosto. — Também é um filhote rebelde evitando sua linda mãe?

As outras duas o encaravam de perto, cheias de curiosidade e talvez se preparando para amarrá-lo dependendo de sua resposta, Anko afastou-as sacudindo uma pata no ar.

É claro que não, estou aqui para supervisioná-los! — regougou audacioso, sentando-se com o focinho erguido — Porque vocês são tão dispersos e pouco inteligentes que ela não podia confiar apenas em vocês!

As raposas tubo vibraram e aplaudiram com suas minúsculas patinhas.

Então que bom que o jovem mestre está aqui para nos guiar!

—O jovem mestre é realmente tão confiável!

—Devemos dar vivas ao jovem mestre!

Eram realmente umas criaturas muito estúpidas.

Mokujim estava se movendo novamente, Anko olhou-o bem a tempo de vê-lo tirando da mochila de madeira a máscara de raposa negra.

—Não precisamos contatar a mamãe ainda! — gritou saltando sobre o shikigami e arrancando com a boca a máscara de suas mãos.

É claro que os criados logo vieram para incomodá-lo por isso, cercando-o e tentando puxar a máscara de volta.

—A mestra disse que tínhamos que contatá-la! — insistiram enquanto o shikigami observava em silêncio, ainda parado no mesmo lugar — Devemos informá-la que estamos vivos e Mokujin está inteiro! Que vamos procurar seus filhotes ingratos!

As patinhas de Anko começaram a escorregar no chão coberto de lama e gelo. Ah, que irritantes! Com um ultimo impulso ele jogou seu corpo para trás, expandindo-se até sua forma humana e caindo de costas no chão enquanto simultaneamente jogava os criados para longe.

—Eu estou no comando aqui e digo que não precisamos contatá-la ainda! — reafirmou decidido, tirando a máscara da boca e se levantando.

Sua mãe ainda devia estar fazendo um verdadeiro espetáculo àquela altura, chorando e gritando que seu raio de sol era insensível, era melhor contatá-la mais tarde, quando ela tivesse parado de dar show.

Os três pequenos criados se amontoaram para cochichar e chiar entre si, se continuassem dando problemas, tudo o que Anko tinha que fazer era trancá-los novamente no tubo de bambu, e quanto ao shikigami… Anko olhou-o de canto, ainda parado no mesmo lugar, observando tudo em silêncio, ele tinha certeza que era mais rápido que aquele boneco, mas o problema era que a mascara de seu pai ainda estava naquela mochila. Ele mordeu a ponta do polegar.

A mestra nos ordenou entrar em contato! — uma das kudagitsunes chiou alto quando finalmente chegaram a uma conclusão.

O tubo de bambu não estava longe…!

E ordenou ao jovem mestre que nos supervisionassem! — uma segunda completou.

—Então seguiremos o que o jovem mestre diz! — concluiu o terceiro.

Que bom que eram estúpidos!

Agora quanto ao shikigami… Anko voltou a olhá-lo, mas o boneco de madeira ainda estava parado no mesmo lugar, como se esperasse por suas ordens, então decidiu experimentar.

—Vou ficar com o tubo de bambu e a máscara de meu pai também. — avisou estendendo a mão com um gesto autoritário.

Quando o servo o obedeceu sem titubear, o filhote tornou-se ainda mais confiante, ele ainda não tinha as habilidades básicas de seus pais, de esconder dúzias de objetos em suas roubas, como se elas estivessem cheias de bolsos secretos mágicos, então optou por puxar um punhado de barbantes do obi e usá-los para amarrar as máscaras e o tubo de bambu.

—Ótimo então você pode seguir com sua tarefa e rastrear meus irmãos, eu vou ficar por aqui e… — Mas bem quando colocou o chapéu de palha trançada na cabeça e se virou algo o agarrou por trás e tirou-o do chão. — O que está fazendo? Coloque-me no chão agora!

Ele debateu-se até retornar à sua diminuta forma animal deixando cair os objetos que acabara de conseguir, mas o shikigami não o soltou nem se alterou enquanto dava inicio a sua marcha carregando o inconformado filhote consigo.

—Nossa missão é rastrear e juntar os filhotes da mestra, jovem mestre! — as raposas tubo afirmaram sobrevoando à sua volta, cada uma delas carregando um de seus espólios.

—Eu acabei de ordenar…!

Anko rosnou ainda arranhando e se debatendo para libertar-se, mas aqueles insolentes o cortaram rapidamente:

—O jovem mestre está aqui para supervisionar nossa missão, mas não pode mudá-la!

O filhote negro rosnou irritado, tinha que dar um jeito de despistar o shikigami de sua mãe, seria mais fácil lidar com as raposas tubo sem Mokujin por perto e ele não havia ido até ali só para ficar sob a vigilância de uma babá!

Seus irmãos estúpidos estavam brincando ali há tempos sem nenhuma vigilância dos pais, então porque somente ele não podia ter nenhuma diversão?!

Ele continuou remoendo isso inconformado, até que o grupo alcançou uma estrada que cortava a floresta ao meio, a estrada seguia indefinidamente a leste, mas a oeste ela desaparecia dentro de um túnel escuro, de onde ouviram um som retumbante e uma gigantesca carruagem sem cavalos ou bois saiu de lá a toda velocidade.

Anko definitivamente não estava assustado, só porque ele encolheu-se e tentou esconder-se nos braços do shikigami, não significava que ele estava assustado…! E por que aquele boneco idiota estava indo direto para o covil da besta?!

—Oi! O que está fazendo idiota?! — ele debateu-se e arranhou, tentando libertar-se — É claro que meus irmãos não estão dentro do covil de um monstro! Vá para o outro lado!

Sua mãe estava sempre falando dos filhotes perdidos, a garota era fria e quieta, mas muito delicada e elegante, e o garoto era muito afetuoso e alegre, obviamente nenhum dos dois havia herdado o comportamento sanguinário do pai! Então o que eles estariam fazendo na toca de um monstro?! Mas o servo que antes havia o obedecido tão bem, de repente parecia ter se voltado surdo, ignorando completamente suas ordens e seguindo adiante sem hesitação!

Morder e arranhar não surtia efeito algum, quando a luz desapareceu, o filhote encolheu-se fechando os olhos e cobrindo a cabeça com as patas.

Mas ao invés de uma toca, foi mais como se eles houvessem passado por um novo portal, pois do outro lado daquela caverna havia um mundo completamente novo e fascinante para os olhos do pequeno filhote, tanto que ele de repente voltou a sua forma humana e escapou dos braços do shikigami.

—Mas o que é isso? Que tipo de lugar é esse? — empolgou-se correndo para longe.

Ladeada por cerejeiras e estranhos postes com lanternas apagadas em ambos os lados, uma estrada curta e curva seguia descendo por alguns metros até uma nova estrada, com muitas carruagens mágicas, prédios de pedras e… humanos! Humanos para todos os lados! Eram como a mãe daqueles tengus, mas ainda assim diferentes, estavam em todos os lugares, de todos os tamanhos e formar!

A trança do garoto ricocheteava sem parar, enquanto ele virava a cabeça em todas as direções, querendo ver tudo apenas de uma vez.

E os cheiros! E os sons!

Mesmo com a forma humana, cauda e orelhas estava exposta com tamanha excitação, pois tudo era tão novo e incrível…!

Com uma guinada repentina, ele arrancou em uma nova corrida para a esquerda, mal sentindo o ar sendo cortado, bem próximo a sua orelha quando a mão de Mokujin por pouco não o agarrou.

Havia um prédio baixo de pedra com janelas de vidro e portas mágicas que se abriam sempre que um humano estava prestes a passar por elas, e foi ali que Anko entrou primeiro, lá dentro havia prateleiras cheias de itens estranhos e curiosos, ao fundo o filhote viu um homem tirando garrafas de uma grande caixa com porta de vidro, mais próximas a uma janela estava um par de mulheres folheando estranhos pergaminhos, e dois pequenos humanos, talvez do tamanho de Anko, recebiam um embrulho de uma humana que estava atrás de um balcão.

—Oi vocês! — intimou aos pequenos humanos quando eles começaram a andar em sua direção — Que lugar é esse? Qual é o nome…?!

Mas foi ignorado por ambos os garotos que passaram direto por ele, ou, para ser mais específico, passaram através dele.

Anko tropeçou dois passos para trás, piscando incrédulo, antes de correr em direção às mulheres que folheavam pergaminhos.

—Vocês! — tentou puxar as roupas delas, mas assim como havia acontecido com os garotos, suas mãos também as atravessaram.

Parou olhando para as próprias mãos se perguntando se havia desenvolvido uma nova habilidade… de repente sua cauda agitou-se e ele girou, correndo entre as prateleiras, tentando agarrar ou derrubar qualquer coisa, tentou gritar e saltar nas pessoas, mas tudo era apenas atravessado por ele, como se o filhote negro não fosse mais do que uma suave corrente de ar, em algum momento o garotinho tornou-se um pequeno animal e isso também não ajudou em nada.

Como ele fazia para parar com…?!

—Estúpido solte-me! — esperneou revoltado quando de repente foi içado do chão pelo cangote — Coloque-me no chão, é uma ordem!

Logo os pequenos criados os cercaram em polvorosa também

—Jovem mestre, você não deve se afastar assim! — uma das raposas tubo o advertiu.

—É perigoso correr sozinho por um ambiente desconhecido! — afirmou a segunda raposinha.

—O que é isso? — Anko silvou cruzando as patas dianteiras, ainda inconformado com sua situação humilhante — Por que não posso tocar em nada? Por que ninguém aqui me escuta nem me vê?

—É porque o jovem mestre é muito fraco para atravessar o véu! — a terceira kudagtisune respondeu prontamente.

—Que véu?! — Anko agitou-se.

Quando é que aquele boneco idiota iria colocá-lo no chão?!

—O véu divide o mundo humano no plano físico e no plano espiritual, jovem mestre. — as kudagitsune explicaram agitando-se em torno dele — O jovem mestre e nós somos seres espirituais, mas não temos forças para atravessar o véu.

—Fraco?! Como ousam?! — Anko esperneou sacudindo-se — E você boneco estúpido, até quando pretende me segurar? Eu já ordenei que me soltasse!

Se o shikigami tivesse alguma emoção, a essa altura ele provavelmente já estaria completamente esgotado, mas ignorando os silvos revoltados, ele levantou-se segurando o filhote em uma das mãos enquanto olhava a volta, tomando nota dos possíveis danos causados, ele não deveria chamar a atenção durante a busca dos filhotes de sua mestra, pois isso poderia causar situações incomodas, mas aparentemente nenhum dano havia sido causado. Bom.

—Hã… senhor cliente? — a mulher no caixa o chamou hesitante, aquele estranho homem encapuzado parado sozinho no meio do corredor de cosméticos já estava deixando a ela e ao restante dos clientes visivelmente desconfortáveis — Será que posso ajudá-lo em algo?

Somente seus olhos eram visíveis quando a pessoa voltou-se para ela, porém, após um momento de silêncio, ele balançou a cabeça lentamente e então se dirigiu para a saída.

A funcionária estalou a língua. Eram assim todos os anos: Higanbana nunca deixava de atrair turistas estranhos!

—E o que foi aquilo lá atrás? Aquela mulher claramente estava falando com esse pedaço de pau! — Anko agitou-se revoltado — Como ela pode ver ele e não pode ver a mim?!

Parado do lado de fora, ainda segurando o filhote mais novo de sua mestra enquanto os criados tentavam apaziguá-lo, Mokujin olhou de um lado para o outro da rua enquanto decidia que direção seguir, ele podia sentir a tatuagem de raposa deslizando e se agitando inquieta por sob suas roupas, o que significava que os filhotes restantes de sua mestra estavam por perto ou, no mínimo, haviam passado por ali, mas primeiro ele precisava encontrar um templo.

Em seu caminho eles sequer deram atenção a um homem magro e de aparência cansada com olheiras bem demarcadas por trás dos óculos de armação redonda com o qual cruzaram quando ele vinha saindo de uma farmácia.

—Uma vez ao dia, antes de dormir. — ele resmungou consigo mesmo. — Não operar máquinas pesadas… certificar-me que os gatos não vão me confundir com um cadáver e tentar me devorar…

Yukari não era a única que vinha ficando cada vez mais nervosa sempre que ligava a televisão ou acessava alguma noticia pela internet.

Kakeru nunca havia conhecido alguém capaz de beber tanto quanto Gintsune-san, e para ele não seria difícil acreditar que nada menos que uma destilaria inteira seria o suficiente para aplacar sua “sede”, e também havia os noticiários sobre as misteriosas degradações e vandalismos de vários pontos históricos e turísticos pelo país, a cabeça de Kakeru doía apenas de lembrar, mas então… aquele tufão em pleno inverno nas ilhas de Okinawa.

Mesmo que Gintsune-san quase sempre mostrasse uma faceta sorridente e despreocupada, Kakeru já havia testemunhado por, pelo menos, duas vezes, sua faceta mais cruel e bestial, que era capaz de amaldiçoar alguém sem nem piscar.

E ainda havia aquela irmã… o que Gintsune-san havia dito mesmo sobre ela?

“Se tentar tocá-la, especialmente se tentar tocar em uma de suas caudas, não vai conseguir usar essa mão novamente”.

Se Gintsune-san tinha sob seus sorrisos uma faceta bestial, aquela irmã levava a própria calamidade onde quer que fosse, mesmo que Yukari-chan tivesse negado o envolvimento de raposas nos incidentes ocorridos em Higanbana no final do ano anterior, era inegável que o cataclismo se abatera sobre a pequena cidade após a raposa de Higanbana, a “linda irmã” de Gintsune-sama ter se libertado, e então os monges expulsaram as raposas da cidade e, como resultado inevitável, o estrago se espalhara para o resto do país…!

Mas não era como se ele pudesse alertar alguém sobre as raposas, mesmo se Gintsune-san não o tivesse amaldiçoado, Kakeru tinha certeza que no instante em que ele soubesse que ele havia aberto a boca e causado algum problema a sua querida irmã, a raposa voltaria para devorá-lo, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.

Nunca se devia subestimar o rancor de um youkai.

Mas de qualquer forma, Higanbana estava exorcizada de raposas e ele não tinha mais nada haver com qualquer raposa que fosse, então tudo o que precisava fazer era parar de assistir os noticiários e tomar seu remédio para evitar ter uma crise nervosa… parou na rua, olhando para a sacola que tinha em mãos, talvez precisasse de uma dose maior.

—Bom dia professor!

Kakeru foi cumprimentado uma vez após outra em diferentes níveis de animação e desanimo pelos alunos que começavam a chegar, por que será que ele sempre era escolhido para vigiar os portões no primeiro e no último dia de cada semestre?

—Não corram, e tirem às mãos dos bolsos, o chão pode estar escorregadio. — dizia a um e outro aluno — depois de deixarem suas coisas na sala de aula, se dirijam ao ginásio…

—Já sabemos professor, relaxe! — um par de alunos riu ao passar por ele em suas bicicletas.

Os jovens realmente eram sortudos por conseguirem viver tão despreocupadamente… ou quase todos eles.

—Bom dia professor. — Shibuya Yukari curvou-se cumprimentando.

Ela também sabia sobre as raposas e seu caos, provavelmente mais que ele, e o peso disso para uma garota tão jovem… Kakeru quase a chamou, mas ela já havia entrado no prédio, pelo menos ela tinha uma aparência melhor que a dele, quem sabe não havia tomado a sábia decisão de parar de assistir televisão de uma vez e apenas seguir com sua vida normalmente?

As raposas não tinham mais nada haver com Higanbana, e um novo semestre começava no colégio Arashino; assim como mandavam as normas, todos os alunos foram assistir a cerimônia de inicio de semestre, na qual o diretor lhe daria as boas-vindas, os faria cantar o hino da escola, daria um longo sermão sobre como deveriam se portar…

—Oh sério eu quase sinto que posso dormir em pé aqui! — a representante reclamou às costas de Yukari.

—Representante! — Yukari chiou chocada.

Pois essas palavras não condiziam com a posição de representante de classe… embora com certeza condissessem com a personalidade de Aiha.

Sendo as garotas mais altas em sua turma, as duas haviam ficado no fundo da fila, mas ainda assim Yukari ficava nervosa com a possibilidade de serem pegas conversando durante a cerimônia.

—Relaxe Shibuya, daqui eu consigo ver Yonekura de fones com o celular na mão. — Yukari ouviu um pequeno estouro, a representante estava mascando chiclete também?! — Estamos de pé aqui há quanto tempo? Quarenta minutos? Já estão me dando câimbras…

—… por fim, eu gostaria de relembrá-los que todos os terceiro anos membros de clubes precisam dar baixa para que melhor se concentrem nas provas de vestibular. — o diretor pronunciou-se — E aos alunos mais novos, mesmo que ainda não estejam em época de prestar vestibular, é sensato que se concentrem em seus estudos e ajam adequadamente…

—Que tédio! — a representante choramingou às costas de Yukari.

—Agora passo a palavra ao nosso ilustre ex-presidente do conselho estudantil, Tanaka Hiroshi.

Quando Tanaka Hiroshi subiu ao palco e curvou-se ao diretor antes de pegar o microfone, instantaneamente a representante parou de reclamar às costas de Yukari.

—Muito obrigado senhor diretor. — Tanaka-senpai pigarreou virando-se para o público — Aos meus colegas de classe bom dia, como muitos de vocês já devem saber eu sou Tanaka Hiroshi e, durante os últimos dois anos tive a honra de servir como presidente do conselho estudantil do colégio Arashino, no entanto, este ano estarei cumprindo o último semestre de meu último ano escolar e como formando eu já deixei o cargo e, portanto, estarei agora o entregando ao, até então, vice-presidente do conselho estudantil: Kanõ Tomaya-san.

Aquele nome trouxe uma comichão à memória de Yukari e ela franziu o cenho tentando se lembrar onde já havia o ouvido antes… mas desistiu, ela havia participado da equipe organizadora no último festival escolar e se ele era um membro do conselho estudantil, era natural que já tivesse ouvido seu nome em algum canto.

O novo estudante que subiu ao palco era um rapaz alto com aspecto solene de uniforme e cabelos perfeitamente alinhados enquanto caminhava com uma postura impecável.

—Muito obrigado senpai. — agradeceu pegando o microfone e virando-se para o público, ainda mantendo uma postura ereta com as pernas ligeiramente separadas e o braço esquerdo dobrado atrás das costas — ATENÇÃO! — de uma só vez o ginásio inteiro se retesou, assustados com a ordem repentina e, como um militar, o novo presidente prosseguiu: — Preparem-se! — mesmo confusos e surpreendidos, todos os alunos seguiram o comando, se alinhando com os braços estendidos, tocando os ombros do colega à frente — Em posição! — com olhos ainda arregalados de surpresa, baixaram os braços, deixando-os rente ao corpo — É com grande alegria que assumo agora o cargo de presidente do conselho estudantil, e embora assumir esse cargo seja uma grande honra e uma agregação bem vinda ao currículo escolar, também estou ciente de que, em suma, ele não é mais do que meramente um cargo honorário, mas estou preparado para dar meu máximo esforço nesta função com tal de não envergonhar e orgulhar ao meu senpai e meus professores que o confiaram a mim. Tendo dito isso, embora tenha grande respeito por meu senpai, devo dizer que ele sempre teve uma natureza muito branda — ele fez uma pausa, olhando lentamente para os alunos diante de si, e mesmo sem virar a cabeça para olhar, Yukari ainda estava ciente dos alunos conversando e daqueles que mexiam em seus celulares aqui e ali — E mesmo sendo seu sucessor eu não pretendo de maneira alguma seguir com tal política então… estejam preparados. Descansar!

Embora ele tenha finalizado com um sorriso, de alguma forma a temperatura no ginásio parecia ter caído.

Afinal quem era aquela pessoa?!

—Tomoya? Vocês realmente se esqueceram dele depois daquele vexame na última semana antes do recesso?

Sakura-chan perguntou-lhes surpresa quando as encontrou no armário de sapatos na saída.

—Que vex…? — Yukari começou a perguntar franzindo o cenho.

Mas de repente a representante bateu palmas, como se uma luz tivesse acendido em seu cérebro.

—Aquele que fez toda aquela manifestação sobre casais pegajosos?!

Certo, talvez Yukari se lembrasse de algo assim…

—Aquilo… foi ele? Eu não tinha ideia. — Aoi-chan murmurou colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha, embora não parecesse realmente surpresa.

Já Kaoru teve uma reação bem mais expressiva, piscando e balançando a cabeça:

—Não acredito que aquele era ele! Como isso é possível?!

—Ele parecia bem diferente hoje sobre o palco. — Yukari concordou enquanto calçava os sapatos.

—Quanto a isso… Tomoya costuma ter um par de apelidos dentro do conselho estudantil. — Sakura-chan de repente usou um tom tão conspiratório que até Yukari parou de calçar os sapatos — “Dr. JeKyll” e “Sr. Hyde”.

Yukari, Kaoru e Aoi-chan se entreolharam sem entenderem o sentido dos apelidos.

—Quem são…?

—“O médico e o monstro”! — a representante estalou os dedos.

—Precisamente. — Sakura-chan suspirou acenando enquanto se afastava.

O primeiro dia de aula era apenas meio período e não contava com atividades dos clubes ainda, então sua mãe havia lhe pedido um “pequeno favor”… como se Sakura não tivesse nada melhor para fazer do que cruzar a cidade de bicicleta com aquele vento que pareciam espinhos de gelo em sua pele.

Embora não fosse uma das mais famosas da cidade, uma das lendas de Higanbana dava conta de que, no terreno do pequeno templo de Inari local, havia um bordo japonês onde em seus galhos jazia uma veste divina que só podia ser vista por aqueles que possuíssem o dom, então obviamente Sakura nunca havia visto nada de anormal naquela árvore velha e tampouco acreditava realmente nas histórias, mas não era incomum encontrar seu tio, um monge do templo de Inari, observando-a, e hoje não foi diferente: ali estava ele olhando para a árvore com uma expressão anormalmente séria.

—Tio Tooru! — chamou-o.

Kato Tooru era o irmão mais novo da mãe de Sakura, um homem gentil já pela casa dos trinta, com cabelos e barba escuros e aparados curtos, que costumava oferecer doces à sobrinha sempre que a via, desde que ela era pequena.

—Boa tarde Sakura! — Assim que avistou a sobrinha, o rosto do jovem monge relaxou — O que a trás aqui?

—Mamãe assou batatas. — respondeu entregando-lhe um embrulho — Desculpe, mas não estão quentes porque estou vindo da escola agora.

Os olhos de Tooru praticamente se fechavam quando ele sorria.

—Muito obrigado, Sakura, e desculpe por ter que fazê-la ter que desviar seu caminho dessa forma…

Mas quando estava prestes a aceitar o embrulho, ele foi soprado para longe por uma forte rajada de vento que espantou a ambos.

—O que foi isso?!

Sakura assustou-se fazendo menção de virar-se, mas o tio agarrou-lhe os ombros, forçando um sorriso.

—Foi apenas o vento. — garantiu. — Sinto muito pelas batatas, filha.

Tooru sabia que a sobrinha não seria capaz de enxergar os mesmos vultos esbranquiçados e translúcidos que ele vira quando as batatas foram atiradas para longe, mas ainda assim quis evitar que ela se virasse, na verdade, desde jovem Kato Tooru sempre fora capaz de ver coisas estranhas: vultos e silhuetas que ninguém mais parecia perceber e, muitas vezes, era mais como uma sensação de que havia algo ali do que propriamente a confirmação visual do fato.

Sinceramente esse dom até costumava ser mais forte antigamente, quando o uchikake de Inari assemelhava-se a uma miragem semitransparente de algum tipo de tecido azulado, mas agora ele era apenas um mero vulto embaçado e quase incolor, porém era verdade que o monge já havia visto e sentido muitas coisas ao longo de sua vida e ainda assim aqueles serzinhos desconhecidos eram diferentes de qualquer coisa que Tooru já havia visto antes, eles não eram como as mazelas que comumente atormentavam as pessoas, e tampouco eram como aquela pequena presença pura e luminosa que habitava a pousada Shibuya… também não passavam a Tooru nenhuma sensação de que fossem perigosas ou malévolas, talvez apenas… irritantes.

E, em seu íntimo, sabia que provavelmente elas tinham alguma relação com o estranho que havia avistado na noite passada junto ao bordo japonês avaliando o uchikake de Inari, Tooru nunca havia conhecido alguém que fosse capaz de tocar nas roupas divinas, mas quando correu até lá para pergunta-lhe quem era ele e o que queria; o sujeito já havia desaparecido, junto com o uchikake de Inari.

E agora ele não sabia como falar que as roupas da deusa haviam desaparecido e andava vendo aqueles rastros brancos voando por todo o templo.

Talvez… fossem servos divinos?

Ele sinceramente torcia para que esse fosse o caso.

—Lamento pelas batatas, Sakura. — ele sorriu desajeitado — Mas pode dizer à sua mãe que eu as achei deliciosa?

—Claro tio. — Sakura sorriu-lhe de volta.

Assim que a sobrinha se foi, o monge olhou novamente ao redor, mas não havia nenhum sinal daquelas criaturinhas, talvez se ele pudesse descobrir para onde elas haviam ido, entenderia o que estava acontecendo ali… mas elas eram tão rápidas que era uma tarefa praticamente impossível.

Suspirou dando meia volta e desistindo dessa ideia, de qualquer forma, aquela altura elas podiam estar em qualquer canto… inclusive no cemitério das proximidades.

—Jovem mestre, nós trouxemos alimento! — as kudagitsunes anunciaram retornando.

Sentado impaciente com as pernas cruzadas sobre uma das lapides e embrulhado com um grande quimono todo bordado, Anko reclamou:

—Já não era sem tempo! — Mas quando ele tentou pegar as batatas, elas também escapuliram através de suas mãos, assim como todo o resto das coisas naquele mundo. — Seus idiotas! — gritou ficando de pé raivosamente — Como esperavam que eu fosse comer?!

As raposas tubo estremeceram e se enroscaram.

—Como eram oferendas para um monge, nós achamos…

O mundo humano era muito mais chato do que Anko havia imaginado, porque ele era invisível e intocável para quase todos ali, e os únicos que pareciam capaz de enxergá-lo eram aquelas coisas pequenas e nojentas que ficavam dizendo “vem aqui filhotinho” para ele até os criados e o shikigami os afugentarem, e além deles a única coisa que ele havia conseguido tocar era aquele quimono que Mokujin havia enrolado em volta dele, ah, e estranhamente, mesmo que não conseguisse tocar em nada e atravessasse paredes, ele ainda conseguia se sentar e andar por cima dos muros e pedras.

Mas qual a graça de ficar sentado em uma lápide embrulhado com um quimono velho enquanto ignorava aquelas coisas nojentas chamando-o?!

E era tão injusto: mesmo se não podiam ser vistas, as raposas tubo podiam tocar nas coisas!

—Vocês roubaram a comida de um monge?! — na pressa de levantar-se Anko enroscou-se no quimono e caiu de cima da lápide — Ficaram loucos?!

Sua mãe já havia lhe contado sobre os monges: exterminadores e caçadores que escravizavam e matavam youkais.

—Nós pensamos…

 “Lembre-se meu raio de sol: aqueles que exageram em suas brincadeiras acabam virando penicos!” 

—Não pensaram em nada! Devolvam agora antes que ele venha buscá-las!

Ele havia ido até o templo junto com Mokujin e os criados, se lavado e cumprimentado à deusa, mas apenas porque no templo de Inari eles tinham por obrigação cuidar bem de raposas, mas mesmo assim Anko não queria ter nada haver com um monge!

Agarrando-se ao quimono, e pegando seu chapéu e as máscaras de seus pais, ele virou-se e fugiu dali, o que aconteceria se o monge o encontrasse?!

—Jovem mestre, espere!

—Não vá por aí!

Os criados o chamaram tentando alcançá-lo, mas Anko já estava acostumado a fugir e enganar os criados de sua mãe, para ele não foi difícil esquivar-se, saltar e afastar-se do trio, enquanto despistava-os por entre os túmulos, até que repentinamente girou apontando-lhes o tubo de bambu e sugando todos de uma vez.

—Fiquem quietos, vocês só dão problemas…! Argh! — gritou quando foi erguido do chão repentinamente — Me solte! Eu não fiz nada! Eu mandei eles devolverem!

Protestou debatendo-se, socando, chutando e arranhando o ar, enquanto involuntariamente retornava ao seu diminuto tamanho animal, deixando cair as máscaras de seus pais e o tubo de bambu, sem perceber que, na verdade, aquele que o carregava não era nenhum monge verdadeiro, apenas Mokujin.

O shikigami assistiu impassível o ataque inexplicável do filhote, e olhou ao redor procurando a possível ameaça que o havia deixado naquele estado, mas não avistou nada, debaixo de suas roupas ele podia sentir a tatuagem de raposa deslizando e se agitando incansavelmente, ele até havia encontrado as roupas da menina ali perto, mas a presença do filhote mais jovem confundia e gerava um pouco de interferência no sinal, por isso ele havia o deixado em uma zona mais segura enquanto afastava-se momentaneamente apenas para se situar um pouco, e mesmo assim… o que havia lhe acontecido em tão pouco tempo…?

De repente, em sua agitação, o filhote negro acabou por chutar sua cara com uma força tão inesperada que sua máscara saiu voando e, surpreso, Mokujin acabou soltando-o.

Livre, Anko tentou fugir, mas em seu desespero acabou não vendo por onde pisava, tropeçando e dando várias cambalhotas no chão, batendo as costas e a cabeça e só parando com os braços e pernas estendidos quase um metro depois.

Quando ele sentou-se com um solavanco, viu Mokujin ali.

—Por que não disse logo que era você seu…?!

Parou.

Confuso, começou a apalpar o próprio tronco, pescoço e braços, por que havia retornado à forma humana? E por que a sensação parecia diferente?

Ainda parado no mesmo lugar, Mokujin tentava cobrir uma face lisa de madeira com uma das mãos, enquanto “olhava” ao redor, como se procurasse por algo… Anko arqueou as sobrancelhas, será que…?

Ele tocou o próprio rosto com as pontas dos dedos.

Ah! Um sorriso maroto despontou-lhe. Isso poderia ser bastante divertido!

De repente girando para o lado e colocando-se pé com um salto Anko esquivou-se da mão que quase o agarrou novamente.

—Dessa vez não! — zombou chutando o shikigami na nuca e derrubando-o de cara no chão antes que ele pudesse se recompor. — Tem umas coisas que quero experimentar, então vou ficar com isso também otário!

Riu recolhendo suas coisas do chão antes de escapar saltando por entre as lápides do cemitério, com as longas mangas e costas de seu quimono bordado grande demais para si, esvoaçando ao vento.

Não havia como uma criança correndo pelas ruas vestindo uma roupa tão cara e refinada como aquela não chamar atenção… pelo menos em uma situação normal, mas naquele momento as pessoas de Higanbana teriam mais com o que se preocupar, do que quimonos bordados.

Doze minutos depois que a aula já deveria ter começado a porta da sala abriu-se e a professora de japonês passou ofegante e desalinhada por ali.

—Desculpe o atraso gente, mas vocês não acreditariam no que me aconteceu! — exclamou — Quando eu estava saindo de casa uma bola de neve gigante desceu as escadas da rua de cima e no susto eu me joguei para o lado para não ser atingida e minha bolsa voou para longe, tenho certeza que ouvi risadas de criança apesar de não ter visto nenhuma, depois quando encontrei a bolsa não achei as chaves do carro e precisei pegar um ônibus, mas ele atrasou porque houve um acidente quando estávamos passando por um cruzamento: um rapaz escorregou com a bicicleta no gelo bem debaixo dele e dois carros quase bateram tentando se desviar, e quando finalmente chego ao meu ponto… vejam! — ela virou-se, mostrando as costas de seu casaco, sujas e com uma parte rasgada na ponta — Quando desci do ônibus eu não percebi que a ponta do meu casaco ficou presa na porta e ele derrubou-me na arrancada! Por sorte o motorista percebeu bem na hora ou poderiam ter sido bem pior!

Yukari franziu o cenho, tudo muito estranho…

—Professora essa foi por pouco! — alguém gritou de perto da janela.

—Não brinque professora, a senhora apenas dormiu até tarde e se atrasou, não é? — uma garota riu próxima a Yukari.

De repente a porta abriu-se novamente.

—Perdão. — a representante pediu com um humor sombrio e folhas no cabelo — Precisei pular o muro para entrar porque, aparentemente, a bicicleta se desmontar bem debaixo de você não é desculpa para o atraso.

E então seguiu mancando com um joelho ralado até o seu assento, dessa vez as sobrancelhas de Yukari quase se tornaram uma só.

Pequenos acidentes de trânsito, uma confeitaria onde todos os doces havia se tornado salgados e todos os salgados haviam ficado doces, sete ruas que amanheceram rabiscadas com giz e nanquim desde as calçadas até o telhado das casas, dezenas de postes de luz que perderam suas lâmpadas, uma escola do primário que descobriu que toda a refeição do almoço daquele dia havia desaparecido, um único carro que amanheceu soterrado em neve depois de uma noite sem neve… todos esses incidentes estranhos e muitos outros se tornaram razão de comentários em Higanbana ao longo dos dias.

Era Gintsune? Não parecia ser coisa dele, mas ao mesmo tempo não havia outra explicação, esse pensamento ocorria a Yukari pelo menos uma dúzia de vezes por dia, e pela forma desesperada como o professor Haruna a olhava sempre que se encontravam era óbvio que ele estava pensando a mesma coisa.

“Eu não sei” queria dizer “não tenho ideia do que Gintsune pensa, nem tenho o menor controle sobre ele!”

E é claro que com todas essas anomalias ocorrendo pela cidade, ninguém iria reparar em um misterioso monge perambulando pela região… quando Yukari o viu, ele estava agachado à beira do rio, debaixo da ponte, e ela soube imediatamente que aquele não era Gintsune, e também que era grosseria ficar encarando, mas por alguma razão não conseguiu desviar a atenção, até que ele repentinamente pareceu sentir seu olhar, levantando-se e virando-se para encará-la de volta.

Seu rosto estava encoberto pelas sombras de um capuz, mas ainda assim Yukari assustou-se com aquela ação e se sentiu constrangida por ter sido pega, então rapidamente curvou-se pedindo desculpas e apressou-se a ir embora, enquanto o monge nas sombras seguia-a com o olhar.

Havia sido um encontro estranho, mas ela não voltou a pensar em raposas ou monges até aquela noite, quando estava limpando as termas masculinas e deteve-se ao ouvir o toque do celular, um número desconhecido, Yukari não sabia por que continuava a andar com ele mesmo depois de ter deletado aquela foto comprometedora, não, na verdade ela sabia sim: estava esperando por aquela ligação.

Atendeu.

—Alô? — silêncio — Alô? — nem mesmo o som de uma respiração, Yukari suspirou abraçando a si mesma com um dos braços enquanto se recostava à parede — É você, não é? — nenhuma resposta — Ouça, se isso é mais uma de suas brincadeiras, saiba que é de péssimo gosto e bastante insensível depois da última vez também, principalmente depois de ter declarado tão orgulhosamente por incontáveis vezes a sua lealdade aos amigos enquanto chamava a mim de amiga, você entende? Eu já sei que você está de volta à cidade, embora não tenha vindo me ver, e acho que estou aliviada por isso, eu te disse para não destruir Higanbana, mas o que está fazendo afinal? Tentando testar minha paciência para ver quando vou chamá-lo e lhe repreender? Ou será que é apenas uma forma de testar meu humor, porque sabe que fez besteira? Não, na verdade não quero saber, eu… não estou com humor para suas brincadeiras. — fez uma pausa, não porque esperava uma resposta, mas para organizar seus pensamentos antes de seguir falando: — Mas se você ligou para se desculpar porque acha que estou zangada, é melhor que saiba exatamente pelo que está se desculpando, e também seria melhor feita cara a cara… o que pode dificultar as coisas, porque nesse momento não estou querendo ouvir a seu respeito e muito menos vê-lo na minha frente. — franziu o cenho, sem ter certeza se estava sendo clara — O que quero dizer, é que preciso de um tempo, então a partir de agora não atenderei mais nenhum número desconhecido isso é tudo que eu queria dizer… ah, mas se isso for um engano, então, por favor, desconsidere tudo o que acabei de falar, achei que fosse outra pessoa.

E então ela desligou e a linha silenciou-se, mas Gintsune ainda continuou com o celular junto à orelha por um longo momento antes de por fim baixá-lo, havia sentido falta daquela voz ranzinza e suas reclamações, então estava um pouco satisfeito, pois não esperava que ela fosse falar tanto além do “alô”, mas não sabia se devia se sentir culpado por isso ou não, já que mesmo sabendo que era ele ligando ela não parecia tão brava quanto ele esperava, e não tinha certeza se isso era um bom sinal.

“De volta a cidade? Porque ela achou isso?”

—Como entrou aqui? — a voz atrás de si perguntou surpresa.

—Eu tenho meus meios. — Gintsune virou-se com um sorriso para Arisu — Você me disse que se eu decidisse voltar um dia, teria algo interessante para me mostrar. — abriu os braços com um gesto teatral — Pois aqui estou.

Dissipando a surpresa, um sorriso espalhou-se lentamente pelo rosto dela.

—Sim, estou vendo… então o que acha de começarmos com um jogo? — ela olhou-o dos pés à cabeça antes de concluir: — Já usou um terno sob medida?

Gintsune sorriu de volta, isso parecia interessante.

 


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Notas finais do capítulo

Curiosidades do Japão:

Jardim Sankeie: Localizado ao sul de Yokohama, é um dos mais belos e visitados jardins do Japão. Aberto ao público em 1904, cobre uma área com cerca de 175000㎡, boa parte emoldurado por milhares de cerejeiras que encantam com o colorido e perfume de suas flores. O parque apresenta ainda uma série de edifícios históricos em harmonia com a paisagem. No famoso jardim também existem rios, lagos, trilhas e inúmera variedade de plantas que oferecem um espetáculo aos seus visitantes em todas as estações do ano.

Pagode: Pagode é um termo que se refere a um tipo de torre com múltiplas beiradas, comum na China, no Japão, nas Coreias, no Nepal e em outras partes da Ásia.


O conto da raposa negra:

Diz a lenda que certa vez uma raposa negra invocou uma tempestade para atormentar três guerreiros em um pequeno barquinho, e divertiu-se muito enquanto os fazia sofrer, até que um deles avistou-a e matou-a com uma flecha de abisinto, depois arrancou a cabeça da raposa e fez seu crânio de latrina para ele e a esposa.



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