Lavei meu rosto algumas vezes para me acalmar em todos os sentidos. Meus óculos redondos estavam embaçados. Meus cabelos descoloridos e ressecados já estavam molhados e pingando em minha roupa, agora eu tinha que me secar.

A parte física até que já estava melhorando, agora a vergonha que eu sentia não estava nem perto de melhorar. Ah, mas também nem tinha motivo para eu ficar tão nervoso, não é como se ele fosse o amor da minha vida ou algo assim. Ele só é, ou melhor, ele só parece o garoto com quem eu sonho. É isso, ele só é parecido, só isso. Nada me garante que ele seja o garoto dos meus sonhos, o garoto dos meus sonhos nem deve existir. Eu tenho que aceitar que ele é só fruto da minha imaginação e que nunca vou me encontrar com ele porque ele não existe. Mesmo que seja reconfortante pensar que seja ele.

— Ei, você tá passando mal?

Tomei um susto ao ouvir uma voz surgir repentinamente. Virei-me e me deparei com um garoto bem baixo e magro, com o rosto bem delicado. Se ele tivesse descendência oriental, poderia ser um idol bem popular, sei disso porque até tentei entrar nesse ramo há uns anos porque meu disse que daria muito dinheiro, mas acabou não indo adiante porque não tenho uma boa aparência que compense meu talento  musical mediano.

— Não, eu estou bem. - garanti

— Ah bom. - ele assentiu com a cabeça - É que quando eu entrei você tava lavando o rosto e eu já tô indo embora e você ainda tá aí.

Será que eu já estou há tempo assim no banheiro?

— Está tudo bem, não se preocupe.

— Você não é daqui, né? Seu sotaque é bem forte. - ele mudou completamente de assunto - De onde você é? É de algum lugar que fala espanhol, né?

E ele não parou mais de falar, eu nunca vi uma pessoa tão tagarela na minha vida. Mas isso não era um problema, o problema era que às vezes ele começa a falar rápido demais e eu não entendia absolutamente nada. E eu, como sou meio tímido, não sou de falar muito, ainda mais com pessoas que eu acabei de conhecer. Já o Adrien, que eu havia acabado de descobrir o nome, é o extremo oposto e já saiu me contando tudo sobre ele, a escola e a França.

No meio disso tudo, eu refleti por muito tempo se deveria perguntar sobre o garoto dos meus... o garoto de hoje mais cedo, até que decidi perguntar.

— Espera, deixa eu ver... Ah, eu acho que você está falando do Arthur. É, só pode ser o Arthur, ele tem um rosto bem diferente mesmo.

Arthur? Então é esse o nome dele. Arthur até que é um nome bonito.

— Ele é um encrenqueiro. - Adrien continuou? - Fica zoando todo mundo, não respeita as regras e ainda paga de debochado quando é pego fazendo algo errado. Eletambémpareceumainsdústria, fumadoisoutrêsmaçospordia.

A primeira parte me deixou decepcionado, já a segunda parte eu não entendi.

— Mas eu acho que ele deve ter algum trauma. -prosseguiu. Que tipo de trauma levaria uma pessoa a se tornar um encrenqueiro? - Nãotenhocertezamastenhoconvicção... - o encarei com uma expressão confusa, já não estava entendendo um palavra do que Adrien dizia - Aheutôfalandomuitorápido? - e mais uma vez eu não entendi - Desculpa, eu tô, né?

— Sim, você está. - confirmei, aliviado por ele ter percebido

— Ah, desculpa. Eu falo rápido assim mesmo, mas eu vou tentar ir devagar, ok? Se nem minha mãe me entende às vezes, o que eu posso cobrar de você que nem fala francês direito, né?

— Ok. - concordei, ignorando o insulto às minhas habilidades com a língua francesa - Obrigado.

— Por nada. - ele disse - Ei, você está com fome? Eu posso te levar num café depois da aula, você nunca foi, né?

— Não, nunca fui. Mas agora eu quero.

— Então vamos. Eu posso ser seu guia turístico, te mostrar tudo de legal aqui em Paris.

— Ok, ok. - ri - Vamos depois da aula, guia turístico.

Continuamos a conversar por mais um tempo, até que o intervalo terminou e tivemos que ir cada um para sua sala. Adrien é um pouco mais novo que eu e está no primeiro ano do ensino médio, enquanto eu estava no segundo.

Quando retornei à sala, Arthur ainda não estava lá. A aula foi passando e nem sinal dele. Será que ele estava matando aula? Seria tão a cara de um encrenqueiro. Seja lá o que tenha acontecido, agradeci aos céus por não ter o encontrado, acho que só o tempo do intervalo não foi o suficiente para me recuperar da vergonha.

[...]

Saí da casa um pouco mais calmo dessa vez, já que aprendi bem o caminho para a escola.

Havia passado a tarde do dia anterior passeando pelas ruas de Paris com Adrien. Justamente por não parar de falar, ele se provou um ótimo guia turístico, a cada rua pela qual passávamos ele achava alguma história relacionada a ela para contar. Além de contar muitas histórias, ele também me fez muitas perguntas sobre mim e meu país natal, o que me deu um pouco mais de espaço para falar sem que eu me sentisse inconveniente ou desconfortável.

Apesar disso, passei a tarde inteira pensando sobre o Arthur. Adrien havia dito que ele era encrenqueiro e eu reparei que ontem ele estava sentado bem ao lado do menino que jogou bolinhas de papel em mim no primeiro tempo. Os dois pareciam ser muito amigos, eles riam algumas vezes durante a aula, deviam estar me usando como piada. Isso me fez colocar os pés no chão.

Ontem à noite eu sonhei com o garoto mais uma vez. Se eu tivesse controle sobre meus sonhos, teria perguntado seu nome, onde ele estuda, se tinha me conhecido na escola, qualquer coisa para poder confirmar se ele era Arthur ou não, mas nem foi preciso. Uma conversa comum já bastou para eu lembrar que o garoto dos meus sonhos é a pessoa mais doce e amigável que eu conheço, ele nunca, em hipótese alguma seria um encrenqueiro e jamais me usaria como piada. Arthur definitivamente não tem nada a ver com ele, além do rosto, que para mim é o menos importante, mesmo que seja surpreendente lindo.

— Você está melhor?

Esse pessoal tem a mania de me pegar distraído, se continuar assim eu ainda vou infantar.

Dessa vez era uma voz que eu conhecia bem, mas infelizmente era só Arthur. Mierda! Por que até as vozes dos dois tem que ser idênticas?

— Hein? - questionei, surpreso

— Você está melhor? - o famoso encrenqueiro repetiu a pergunta - Ontem você ficou muito mal.

— Ah. - suspirei - Eu já estou bem, não se preocupe.

— Que bom. - ele disse e foi se sentar

Ué, só isso? Ele parecia tão preocupado comigo ontem, mas agora me pareceu tão indiferente. E eu também estava assim. Ontem eu me sentia nervoso, sentia meu coração palpitar e vontade de vomitar porque achava que tinha encontrado o garoto dos meus sonhos, mas agora sei que ele é só Arthur, o encrenqueiro.

Pelo menos agora vou poder manter o foco nos estudos e não fica pensando em coisas que nunca vão acontecer.

[...]

O dia de aula correu normalmente, assim como deveria ser. Aquele amigo do Arthur tentou fazer gracinha comigo de novo, mas dessa vez eu não dei importância e logo ele parou.

Estava arrumando minhas coisas na mochila para voltar para casa, quando Arthur veio até mim. O que será que ele queria comigo? Dios mio!

— Oi. - ele cumprimentou

— Oi. - respondi enquanto arrumava a mochila

— Então, nessa sexta vai ter uma festa. Seria uma boa para conhecer pessoas novas.

Torci o nariz. Uma festa de alguém do grupo dele deve ser cheia de fumantes, minha respiração diz para não ir.

— Obrigado, mas eu não gosto muito de festas. - disse

— Se mudar de ideia, fala comigo que eu te passo o endereço.

— Ok.

Ele concordou com a cabeça e foi embora, tirando um cigarro do bolso.

Eu não mudaria de ideia sobre a festa, talvez seja só mais um pretexto para me usar de piada. E se não for, acho que festas não são um bom lugar para mim, lugares com muitas pessoas definitivamente não combinam comigo.

Se ele ainda fosse o garoto dos meus sonhos, talvez valesse a pena ir. Mas como ele não é, tenho só que deixar essa festa longe dos ouvidos de Adrien, senão eu serei arrastado.