Mulher Ao Mar escrita por Caíque Pereira


Capítulo 4
Redemoinho




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12 de abril de 1912 – Noite

RMS Titanic / Em algum lugar no Oceano Atlânico

A estrutura platinada acompanha diamantes, que formavam o símbolo de um coração. No centro, uma safira brilhava com a luz de um olhar apaixonado, e perco o fôlego ao ver algo tão precioso de perto. Joias nunca estiveram em meus gostos pessoais, mas a arte por trás do colar cantava uma canção hipnotizante. Talvez tivesse pertencido a uma sereia, no início de tudo. Quando dou por mim, a mão já está estendida para alcançá-lo. Quero tocá-lo.

Entretanto, antes de abraçá-lo com os dedos, o menor dos toques coincide com uma pontada gelada em meu bolso, tirando-me do torpor. Recolho o braço pelo susto, o bolso ficando cada vez mais frio. A carta de Jack está lá. Me preocupo se algum líquido caiu ali, esfarelando o objeto, e insiro a mão na brecha da roupa sem hesitar. É bem o contrário do que imagino: a carta está mais dura, pesada, e consigo segurá-la por alguns segundos apenas. Está tão gelada que queima as pontas dos dedos, mas, além da sensação, parece intacta, seca. Tão fria que queima.

Tudo dura algumas frações de segundos, a frieza da Rainha de Copas impedindo que aguente segurá-la por muito tempo. Solto a carta no chão, o vermelho dos dedos ameaçando explodir a qualquer momento. Em câmera lenta, o objeto congelado se projeta no ar, espatifando-se ao pó no impacto com o chão. Fumaça branca ergue-se no lugar da queda.

O que foi isso?

Afasto a pequena nuvem de poeira balançando as mãos. Uma cópia d’O Coração do Oceano jaz no chão, exatamente onde a carta deveria ter pousado intacta.

 

Encaro o colar no cofre, imóvel desde que tentei pegá-lo. Olho de volta para a sósia no chão, e pisco algumas vezes. Não é possível. A carta se dissipou em uma segunda joia, idêntica à original. A confusão me tira o nervosismo de segurá-la e acabo pegando o colar no cofre sem receio. A estrutura é mais pesada do que imaginava, revelando belezas ocultas a cada virada de ângulo em meu pulso. Retorno minha atenção à cópia perto do pé, preciso pegá-la para comparar com a original bem de perto. Tento segurar o colar-cópia com a outra mão, e me surpreendo mais uma vez: ele não se mexe.

É como se pesasse toneladas e não posso mexer um milésimo de centímetro em sua potestade. Estaria grudado de alguma forma no chão? O gelo da carta serviu de um certo tipo de cola? Talvez consiga puxá-lo com as duas mãos. O Coração do Oceano original se acomoda no chão quando o ponho ali e então, ambas as mãos livres, vou à sósia. O sobrepeso desaparece e a pego com a facilidade em que tomei a primeira joia do cofre.

O que está acontecendo?

O colar original brilha ao lado, retornando ao meu campo de visão. Resolvo testar uma teoria e, com a cópia na palma direita, busco segurar a original com a esquerda. Sem sucesso, agora é ela que não se move, talvez pesando tanto quanto esse navio. Testo a troca de colares mais algumas vezes e os resultados não mudam; toda vez que seguro um, o outro se torn impossível de pegar. Não posso segurar os dois colares ao mesmo tempo.

Click.

Maçaneta. Som de maçaneta. Aquilo foi o som de uma maçaneta? Tem alguém aqui?

Meu Deus. Meu Deus. Meu Deus, preciso ir embora.

Os colares olham para mim e, por um momento rápido, penso ter escutado outro barulho, uma voz vindo deles. Estou enlouquecendo, mas preciso escolher. Não consigo segurar ambos ao mesmo tempo. Qual, Aretha? São estupidamente iguais, mas alguma lógica me cai sobre os ombros. Vim buscar o Coração do Oceano no cofre e é esse que levarei, já que não posso pegar as duas versões.

Escolha.

Uma voz sai das joias e me jogo para trás, a respiração montando um pula-pula em meu tórax. Estou enlouquecendo, joias não falam, objetos não falam. Você não vai quebrar a maldição da Fera hoje, Aretha.

Ouço passos ao lado. Alguém se aproxima e não demorará muito para chegar até aqui. Não penso e, mais uma vez, é uma péssima combinação. Volto à frente do cofre e guardo lá o colar-cópia. É só uma sósia, não tem problema em deixá-la aqui, certo? Passos, passos, passos. Não há tempo hábil para calcular alternativas, tampouco as pessimistas.

Recolho o colar original do chão, correr para trás da única porta no cômodo é o que me resta. As sombras encapuzam meu medo ao passo que alguém entra devagar no ambiente, um único pedaço de madeira nos separando.

Serei descoberta. Meus olhos se fecham em automático, a joia original se delineia em minha mão quando cerro os punhos, tentando silenciar quaisquer resquícios de respiração. Talvez haja uma prisão no navio e me mandem para lá. Um perfume cítrico antecipava o caminho da pessoa que entrava na cabine de Rose, os passos ficando mais pesados conforme a distância entre nós dois diminuia. Serei descoberta.

As pálpebras cerradas não me deixam enxergar quem é, minhas mãos coladas nas laterais do corpo, uma delas guardando o Coração do Oceano no bolso da calça como se minha vida dependesse disso – e talvez dependa. Não sei quanto tempo a sombra atrás da porta me esconderá, mas os pulmões parecem não se abalar com a tensão. Coloco uma mão sobre a outra, como em uma oração, e sinto a safira no anel. Que ela me ajude.

O fôlego começa a se equilibrar gradualmente uma calma ameaça me invadir. A visão embaça antes de escurecer, a solidez sob os pés perdendo-se nos sentidos. Talvez quebrar a maldição da Fera fosse melhor do que desmaiar em seus braços.

16 de agosto de 2052

Chippewa Falls, Wisconsin / EUA

— A senhorita não pode dormir aqui. Senhorita...

Há um balanço leve em meus ombros no instante em que sinto o alívio. Aquele alívio. O mesmo que senti ao acordar na ala médica do Titanic.

— Senhorita, por favor...

A sonolência me envolve feito edredom, acho que peguei no sono a bordo no navio. O saculejo da maré tenta me ninar e, quanto mais resisto, mais adormeço.

— Não pode dormir no ponto de ônibus.

Entre cílios, percebo que o balançar vem de um par de mãos enluvadas, sacudindo suavamente meus ombros. Sigo o olhar, dois braços, um corpo, um rosto. A voz sai dali.

Escolha.

Levanto de supetão e a policial dá um passo pra trás, levando as mãos ao coldre por instinto. Estou sobre o banco de um ponto de ônibus, de frente para uma rua molhada no que parece um bairro domiciliar. As roupas da oficial são levemente familiares e, o que se sobrepõe à minha atenção, mais atuais do que o guarda-roupa aristocrata dos passageiros no Titanic. A mesma sensação, a mudança de local...

Viajei no tempo. De novo.

— Quando estou? – a frase sai grave, como se tivesse acabado de acordar após uma boa noite de sono. Uma longa noite.

— Chippewa Falls, mas se não sabe ond-Espera! Você perguntou “quando”?

Chippewa Falls. Já ouvi esse nome antes.

— Desculpe, acho que ainda estou meio sonolenta, oficial... – me esforço para focar o sobrenome da policial em seu uniforme. – Dunlop! Oficial Dunlop. Voltei de uma... Festa, é, festa. Acho que não consegui pegar meu ônibus para casa.

Solto uma risada forçada e ela me encara com um ar desconfiado. Chippewa Falls... Onde já ouvi esse nome?

— Não pode dormir no ponto de ônibus – a mão da policial abre a trava do coldre quando uma gota gelada de transpiração se joga da minha nuca, suicidando-se costas abaixo.

— Sim, claro, claro, eu... Eu vou pra casa agora mesmo. Minha mãe deve estar preocupada, sabe como é...

O suor chega à altura do tórax.

— Não, não sei – Dunlop é intransigente na resposta automática, sua desconfiança avançando sobre mim. Ela me lembra Gillian. Não está comprando a história.

Cóccix. Ela vai descobrir.

— Por favor, seus docum-

Dunlop, na escuta?

Uma voz mecânica surpreende nós duas e a gota se seca no contato de meu suéter com a pele. A policial me dá as costas em reflexo, parece que o chamado vem de sua moto, que não tinha visto até então, estacionada em frente a uma lata de lixo aberta. Dunlop se vira de volta para mim. Minha garganta seca mais do que minhas costas.

— Espere aqui.

Aceno com a cabeça, almejando passar naturalidade, e a vejo se aproximar do veículo, de novo de costas para mim. Ela responde ao chamado, mas não consigo ouvir o que dizem, só me resta reparar na lata de lixo ao lado do banco em que estou. Talvez alguma embalagem tenha datas que ajudem a me localizar. Ou temporalizar, seja lá o termo adequado. Nenhuma loucura nas últimas horas chegou perto de ser adequada gramaticalmente.

Quando inicio um movimento em direção ao lixo, noto um deslocamento em resposta na direção de Dunlop, uma dança implícita entre nós duas, com a minha desvantagem de ter dois pés esquerdos. Ela trocou o peso do corpo de uma perna para a outra, ao passo que seus ombros se resetam sob a jaqueta. Dunlop sobe na garupa da motocicleta, que plana sobre o chão. Sua atenção retorna para mim, estática no banco.

— Vá para casa. Sua mãe deve estar mesmo preocupada.

A policial toca em uma espécie de protetor auricular na orelha, e um capacete se desdobra a partir dali, recobrindo toda sua cabeça em um segundo. Ela arranca com o veículo, levitando sobre o asfalto em velocidade. Mal espero Dunlop sair de meu campo de visão e corro até a lata de lixo. Rápido, Aretha, rápido.

Entre restos de alimentos e algumas amostras grátis de sanduíches provavelmente ruins, encontro um jornal de aparência recente, com exceção de algumas manchas de café, e uma data que me preocupa mais do que toda a interação com a policial: 16 de agosto de 2052.

“Chippewa Falls” está escrito com uma delicada letra cursiva, imitando folhetins antigos e com manchetes bem menos perigosas do que minhas últimas ações. Sabia que já tinha visto aquele nome em algum lugar. No extremo norte dos Estados Unidos, a cidade-natal de Jack me recepcionava 13 anos antes do meu próprio nascimento.


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