Mulher Ao Mar escrita por Caíque Pereira


Capítulo 5
Terra à vista




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16 de agosto de 2052

Chippewa Falls, Wisconsin / EUA

O mundo gira ao meu redor mais rápido do que consigo acompanhar. Sinto vontade de voltar para o banco, sentar lá e esperar até a oficial Dunlop voltar para me prender e, quem sabe, isso me devolva um pouco de sanidade. Ou aguardar o ônibus para casa que inventei e me prostrar na frente dele antes de encostar na calçada. Eu preciso de sanidade.

Penso que a consciência da busca por algo que me dê segurança mental é um sinal. Isso, Aretha, você não está em surto. Pessoas em surto não ficam com fome e você está faminta.

 Engulo seco com a pouca saliva que me resta e levanto o rosto da lixeira, finalmente analisando o entorno. Um bairro aparentemente residencial me cerca sob um céu escuro, o cheiro de chuva recente ainda perambulando no vento inconstante, tal qual meus pensamentos. Isso explica a falta de uma alma viva sequer pelas ruas que meu olhar alcança, parece mesmo que mal parou de chuviscar.

Com um brilho opaco da umidade sobre suas tonalidades neutras, as casas são cuspidas do estereótipo de um perfeito subúrbio americano, algumas cultivando jardins floridos e outras que brincam com a organização de pedras diferentes até suas respectivas portas. O ponto de ônibus fica logo antes da esquina de um cruzamento, onde carros passam com um intervalo imenso. Parece uma ilha fantasma.

Talvez eu tenha morrido e meu espírito veio para cá.

Balanço a cabeça, minha própria mente pregando truques de novo, talvez em resposta à fome ascendente em meu estômago. Como lutar contra si mesma?

Atenção aos significados. A voz de Gillian se contrapõe aos meus pensamentos, talvez vinda de um lugar quente e aconchegante no fundo das minhas memórias. Ela sempre frisava essa abordagem ao me contar de sua carreira como investigadora, buscando sentido ao evitar a naturalização dos fatos. A paz de espírito na certeza do que fazer, apesar de abstrata e imediatista, dissipa o torpor em minha mente. Nada de congelar diante do desespero, pois é isto que preciso fazer: me ater ao que significa estar aqui, na cidade onde Jack nasceu e cresceu, exatamente nesse momento.

Mal posso entender melhor a situação e uma pontada gelada atinge minha perna, de modo que solto o jornal de volta para o lixo e levo as mãos direto a um dos bolsos. Apalpo uma massa dura e fria sob o jeans; é o colar de Rose. Outra fisgada vinda dali arrepia meu corpo da cabeça aos pés. Tiro a joia depressa dali e, por acidente, voa uma carta de baralho que estava junto ao colar. Ela vai em direção ao gramado de um dos jardins.

Me apresso atrás do papel, alcançando-o na metade de caminho entre a grama e a casa em questão. É uma Rainha de Copas, idêntica à que se dissipou na cabine de Rose e se dissolveu na cópia do colar. Mais uma interrogação para lista: como isso veio parar aqui? Pelo menos a monarca mantém uma temperatura ambiente, diferente de sua versão no navio. O gramado molhado amorteceu meu joelho ao me agachar para pegá-la de volta, mas também suja a calça, agora carimbada de terra e matos finos. Não tenho tempo de bater fora a sujeira ao me levantar, pois meus olhos se hipnotizam pelo imóvel em minha frente.

Apesar das residências terem similaridades, há algo de especial nesta em específico que logo me arrebata. Há o espaço para um jardim, mas nenhuma flor desabrochada – talvez ainda estejam crescendo ou seus cuidadores não conseguem se decidir sobre qual muda escolher. Uma árvore baixa se ergue em ângulo e distâncias estratégicas de uma grande janela, que imagino ser uma companheira ideal para leituras longas.

Eu não estou aqui por acaso, e tenho certeza disso ao reconhecer esta casa de uma fotografia dos arquivos de Gillian, memorizados com afinco ao longo dos anos no banco de trás do carro da mãe. Esta é a casa dos avós de Jack, Tim e Mary, onde ele cresceu.

Atenção aos significados. Olho para o colar e, pela primeira vez, suspeito que algo n’O Coração do Oceano me olha de volta. A Rainha de Copas se exibe majestosa na outra mão, me lançando sua perpétua expressão blasé, quase em desafio. A monarca quer que eu me atreva a continuar nesse caminho de raciocínio sem volta, porque já sabe o final.

Há anos atrás, ainda embrulhada na beca de formatura, tentei me esconder de Gillian na garagem do prédio, o corpo já habituado ao formato do banco de trás do carro. Eu queria me distrair do fiasco da cerimônia e continuar mais uma releitura dos dossiês caiu como uma luva. Estava na parte sobre o colar quando uma marcação me chamou a atenção pela primeira vez, mais especificamente na fala da curadora da exposição vigente no museu. As palavras “benfeitor anônimo” brilhavam grifadas em laranja, encabeçadas por um ponto de interrogação nunca respondido. Elas se referiam à pessoa que doou O Coração do Oceano para a exposição, até então desaparecido a bordo do Titanic, logo após o suicídio de Rose.

Jack estava indo em direção à proa do navio quando nos esbarramos.

Rose foi vista, pela última vez, por um dos vigias na proa, mas ele só percebeu sua intenção suicida quando já era tarde demais – mas nunca é tarde demais para um viajante do tempo. Meu coração acelera ao perceber que Jack ia impedir Rose de tirar a própria vida.

Tudo faz sentido agora.

Nunca descobriram como ou quem roubou o colar naquela noite no navio. Abaixo o olhar de volta à joia, a joia que eu roubei. Eu sou a ladra do colar, fadada a pescá-lo no rio da história que nunca sai do próprio curso. O destino cai sobre mim, uma chuva de sentimentos que poderia inundar toda Chippewa Falls mais uma vez, e eu me encharco. Meu corpo cai em choque, agora ajoelhado por completo sobre o gramado, e minhas lágrimas ajudam a enlamear ainda mais a terra úmida.

Independentemente do que eu fizesse, Jack estava destinado a salvar Rose. Ele sempre iria desempenhar o mesmo papel em sua própria jornada: achar o colar na exposição, viajar através dele e deixar tudo (e todos) para trás, criando uma “segunda linha temporal”, como disse o dr. Ganse. Lá, Rose foi salva do suicídio, conheceu Jack e sabe-se Deus o que aconteceu depois com ambos aquele maldito navio. Enquanto isso, na primeira, a jovem se suicidou e o Titanic seguiu sua viagem normalmente, deixando-a trás no Atlântico.

Eu nunca fui a pessoa que destruiu o colar, e a viagem do tempo ter me trazido para este lugar, neste momento, me mostra isso. Talvez eu ainda possa ser essa pessoa. Talvez consiga quebrar o colar e dar à Lizzy um futuro longe do abandono, da perda, de mim. Ela e Gillian nunca se conheceriam para minar a vida uma da outra, não sofreriam por anos e anos em decorrência das ações de Jack.

Eu não sofreria.

Não haveria brigas de segunda a segunda, os gritos mais altos do que o volume máximo de qualquer música que eu colocasse no meu quarto. Nada de mudança repentina para o apartamento de solteira da Gillian, meu carrinho de bombeiros de brinquedo esquecido na calçada. Droga, eu amava aquele carrinho. Esquecer da existência da formatura, a fatídica formatura. Nada de banheira vermelha.

Mas também não haveria Ben. Nada de lembranças calorosas da minha infância, quando minhas mães eram unha e carne, e fazíamos piqueniques no Parque Palmerston. Certa vez, um esquilo roubou nossas nozes e brinquei de detetive com Gillian para achá-lo. Nunca vi Lizzy tão radiante quanto naquele dia. Sempre amei o sorriso dela, sinto falta de vê-la assim.

Sinto falta dela.

Ganse estava certo, o anel é inquebrável. Não há início e fim, apenas as voltas. Eu posso percorrer a circunferência do tempo, atravessá-la para pontos que nunca vivi ou fazem parte do meu passado, mas nunca conseguiria quebrar o círculo. As dores não podem ser apagadas, mas as felicidades também não, e eu precisei das duas para chegar até aqui, pronta para voltar. Voltar para casa, para Ben, Gillian, Lizzy... Eu preciso recuperá-la. Jack salvará Rose e, para isso, precisará abandonar Lizzy ao viajar pel’O Coração do Oceano, mas eu estarei lá por ela quando retornar. Para isso, devo cumprir o meu papel: devolver o colar roubado ao museu SeaCity para que tudo isso aconteça.

No instante em que me aproximo da varanda na casa dos avós de Jack, o vento para de soprar. Revejo todas as opções em minha mente, porém esbarradas em empecilhos e incertezas. Dar um jeito de enviar pelo correio? Precisaria de documentos que não tenho na hora do pedido. Viajar até a Inglaterra e entregá-lo em mãos ao museu? Além do problema dos documentos, a falta de dinheiro impede qualquer ação desse nível. As carteiras nunca deveriam se separar de seus donos em viagens no tempo, aprendi.

A alternativa seria para alguém realizar o envio por mim, mas não parecia certo confiar uma joia tão valiosa a um total desconhecido. Foi quando percebi que havia alguém que eu conhecia ali, por mais que indiretamente: Tim, o avô de Jack, uma das minhas figuras preferidas nos dossiês. A viagem do tempo poderia ter me levado diretamente ao museu ou até os DeWitt’s, os descendentes da família da Rose, mas não. A escolha de Chippewa Falls não foi à toa, muito menos estar em frente à casa de Tim.

Não arriscaria interagir com ele de propósito, então isto terá que servir. Saco o bloquinho e a caneta do outro bolso da calça, felizmente intactos da chuva que pegamos no estacionamento da Universidade de Southampton – aquilo soa como uma lembrança de anos atrás. O esforço de fazer minha caligrafia mais legível resulta em uma nota curta, cujo texto atravessa zilhões de revisões mentais antes de ser escrito:

“Tim Lake,

Esta joia é O Coração do Oceano e pertence à Rose DeWitt Bukaker, a jovem que se suicidou no navio Titanic. Jack precisa salvá-la. Envie o colar para o Museu SeaCity, em Southampton, na Inglaterra, o quanto antes. Não deixe remetente.

Obrigada por isso.

Assinado: Viajante do Tempo”

A varanda da casa é pequena, provavelmente os donos gostam mais de ficar lá dentro. Ainda assim, há um banco azul de dois lugares no canto esquerdo, com estofado de margaridas, e meia dúzia de vasos com plantas ornamentam o espaço. O número 1316 está afixado com peças métalicas em vertical em uma das pilastras e, acima da minha cabeça, uma lamparina ainda está desligada. Os avós de Jack ainda têm apreço por certos itens antigos e charmosos.

Releio o bilhete mais algumas vezes e, quando me dou por satisfeita, posiciono-o encaixado no colar, que está em cima do pequeno tapete marrom e felpudo frente à porta. É isso, Aretha, agora ou nunca. Eu toco a campainha e saio correndo em direção à lixeira no ponto de ônibus, o coração disparado como uma criança pregando uma peça nos vizinhos. Quisera eu que uma bronca das minhas mães fosse tudo que estivesse em jogo agora.

Agacho atrás dela, torcendo para nenhuma parte do meu corpo ficar exposta. Segundos se passam e sinto que atravessei horas até o som de uma porta se abrindo surgir. Conto até três e arrisco metade de um olhar ao lado da lixeira, a ponto de conseguir ver um não tão nítido Tim em sua varanda. Ele é mais alto do que eu pensava, vestindo uma camisa verde que vai até o pescoço de um jeito fofo. Definitivamente gosta de itens antigos e charmosos.

O avô de Jack olha para os dois lados e, ao não ver ninguém, tem a visão atraída para baixo, encontrando o colar. Ele o pega com uma das mãos enquanto a outra vai de encontro ao meu bilhete. Minhas batidas cardíacas são possíveis de serem ouvidas a quilômetros, mas Tim não suspeita de nada ao olhar novamente para os lados, após a leitura do bilhete. Ele entra de volta em casa e não o vejo mais. Sinto um peso enorme se dissolver em meu peito.

Estou sozinha, sorrindo. Acabei de conhecer meu bisavô.

Uma gota d’água lava o rosto da Rainha de Copas, ainda presa em minhas mãos. De imediato, imagino que estou chorando – de alegria, alívio, gratidão ou tudo ao mesmo tempo –, mas outras duas se precipitam em minhas unhas. A chuva voltou.

Olho para cima e minha básica observação metereológica garante uma tempestade em formação sobre o bairro, montanhas escuras se atacando com raios e rajadas de vento,  uma guerra pelo domínio do céu em Chippewa Falls. Não demora para o som cadente dos pingos em queda no asfalto chegar aos meus ouvidos, e eles vêm em minha direção.

Preciso me abrigar.

Busco um refúgio com o olhar e um punhado de árvores entre duas casas entra meu campo de visão, do outro lado da rua larga. Antes que eu possa racionar mais, corro para lá, a torrente de água me inundando em menos de três passos. A chuva se acumula em meus cílios e os cabelos molhados já pesam o dobro, meus sapatos já são barcos de papel inundados, rumo ao bueiro mais próximo. Sigo até a árvore mais próxima e suas folhagens diminuem a força da água sobre mim; apoio minha mão em seu tronco na busca por apoio.

A safira no anel em meu dedo surge como um tapa na minha cara. Ao contrário d’O Coração do Oceano, ela não me olha de volta, porque não é a mesma safira que está ali, a estrutura prateada em contraste com o caule escuro. Seu tom de azul real foi substituído por uma tonalidade branca, como a mente que perde a informação no momento crucial.

A preocupação arregala meus olhos, entretanto, tento pensar que não é nada. Não pode ser nada, não à essa altura, não depois de tudo que aconteceu. Balanço minha cabeça na esperança de afastar os pensamentos e avanço entre o grupo de árvores, há um espaço mais seco ali, quase uma clareira de uma pessoa. Depois de pular o tronco curvado de uma delas, sento no desconforto de galhos e raízes, mas é o melhor que pude alcançar.

No fechar dos olhos, respiro fundo, o ar de 13 anos antes do meu nascimento preenchendo e se despedindo do meu organismo. Seguro as mãos como uma oração, a safira descolorida sob a palma esquerda. Isso precisa funcionar.

Retrato Southampton em minha mente o melhor que posso naquele contexto. As áreas arbóreas sobre o concreto. 14 de abril de 2082. O sol sempre tímido, que aparece tarde e vai embora cedo de todas as festas. 14 de abril de 2082. O Rio Itchen arrastando sua forma de serpente sob a ponte homônima, rumo ao Estreio de Solent. Não era raro ver pais e filhos na pesca com mosca por lá, no ônibus voltando da escola. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082.

A data se repete em minha cabeça e nada acontece. O desespero que havia ignorado ao flagrar a pedra branca começa a crescer, e parto para vociferar dia, mês e ano, no intuito de fazer a viagem acontecer de qualquer maneira. Enquanto uma batalha é travada nos céus e trovejos pontuam as frases, minha voz duela contra o volume alto da chuva forte.

A Rua Havelock surge em minhas imaginações, movimentada nas exposições conceituadas no Museu SeaCity. 14 de abril de 2082. O piquenique com Lizzy e Gillian no Parque Palmerston, a busca pelo esquilo ladrão. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082.

O abraço de Ben durante as maratonas de filmes do Clint Eastwood no meu quarto. 14 de abril de 2082. Todas as vezes que nos beijamos no meu quarto. 14 de abril de 2082. Todas as vezes que fizemos amor no meu quarto. 14 de abril de 2082. 14 de abril de 2082.

Os banquetes exagerados e deliciosos de sua mãe, sempre me engordando nos finais de semana. Ela é a melhor sogra do mundo. 14 de abril de 2082. Minha mãe perdendo a compostura e gritando de medo sobre um dos cavalos quando a levei lá pela primeira vez. Foi a primeira vez que ouvi Gillian xingar. 14 de abril de 2082. A terapeuta idiota me elogiando por bobagens infantis; até dela eu sinto falta. 14 de abril de 2082. Sinto falta de Lizzy. 14 de abril de 2082. Sinto falta da minha mãe. 14 de abril de 2082.

Não sinto meus olhos ficando turvos, tampouco alguma sensação diferente, mas deixo de ouvir a chuva ao meu redor. Funcionou. Abro os olhos quando as últimas gotas rebeldes fazem seu próprio caminho pelas folhagens e caem sobre mim. É possível avistar a casa de Tim por uma pequena frestra entre os caules. Ainda estou em 2052, em Wisconsin.

Isso não pode estar acontecendo...

O anel de formatura não está funcionando. Repito todo o processo, a ordem das lembranças em mudança constante, até que esqueço de mencionar algumas. O esforço é tanto que dá branco; a safira está branca. É como a mente que perde a informação no momento crucial. A pedra que levou ao Titanic e me trouxe para cá não é mais a mesma. Eu não sou mais a mesma. Talvez tenha perdido a cor pelo uso seguido, talvez com o agravante de serem tempos tão distantes? Ela estava mesmo mais clara no navio, depois da primeira viagem. Mas o que isso importa agora? Comprovar minha teoria não faz diferença, suposição alguma resolve o que estou prestes a enfrentar. Não estou em casa. Não posso ir para casa. Minha casa é o futuro e eu estou no passado. Estou sozinha no passado, sem saída.

Estou presa em um tempo que não é meu.

 

—-

 

 

EM BREVE

NO FIM DE TUDO

O MAR VOLTARÁ PARA TOMAR O QUE LHE É DE DIREITO


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