Mulher Ao Mar escrita por Caíque Pereira


Capítulo 3
Naufrágio




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12 de abril de 1912 – Noite

RMS Titanic / Em algum lugar no Oceano Atlânico

Esperei a dor. Esperei os braços formigando, a tontura giratória, os pensamentos embaralhados, mas, para minha surpresa, me sinto estranhamente aliviada. Lembro da sensação de experimentar lasanha pela primeira vez, da primeira briga da minha vida na quarta série, do primeiro beijo com Ben, até quando perdi a virgindade. É esse tipo de sentimento, de descoberta, ativando algo em meu corpo já preparado e desejoso de fazer.

Estou deitada sobre um colchão, o corpo virado para uma parede branca. Não enxergo nada além do tom leitoso, também presente no lençol da cama e nos ferros de sua estrutura. É, isso faz bem mais sentido: enlouqueci e fui internada. Bem-vinda à nossa clínica de repouso, Aretha. Vamos cuidar tão bem de você quanto nos empenhamos em esconder “manicômio” na placa de entrada.

Os suspiros e roncos entrecortados sussurram uma canção calma pelo ar, e percebo um padrão no que seriam as notas mais altas, zumbidos respirados. Há pessoas dormindo ao meu redor. Aproveito um crescendo entre as estrofes do sono, que pudesse abafar qualquer ranger, quando sento na cama. Por pouco não acerto a cabeça na cama de cima, minha beliche não é a única do cômodo. Alguém dorme sobre mim e duas mulheres dividem outra cama de dois andares ao meu lado. As beliches seguem até o fundo do lugar a perder de vista. É minha chance.

Levanto e vou em direção à porta, o olhar pipocando através de uma portinhola circular. Não há ninguém no corredor e arrisco que estou na ala hospitalar do Titanic.

Funcionou. Viajei no tempo.

Meu Deus. Viajei no tempo.

Inspiro, expiro. Calma, Aretha, pensa nisso depois. Agora é fazer o planejado.

Se estou no hospital do navio, isso me coloca no Convés D, lá pelo lado direito do navio e perto da quarta chaminé – as horas a fio estudando o acervo de Gillian vieram a calhar. Gillian. Southampton. Safira. A safira!

Confiro o anel e ele olha de volta para mim em meu dedo, a safira está lá. Na meia luz do local, ela parece um pouco menos azul, mas sua beleza permanece hipnotizante. Entretanto, lembro do colar de Rose, o real motivo de eu estar ali. É minha missão aqui. Respiro fundo e rumo à maçaneta, com destino à Primeira Classe.

O corredor serpenteia um cheiro misto de temperos, mas não esbarro com ninguém. As paredes simples reproduzem o tom apático da enfermaria. Sigo um farfalhar de vozes, tão misturado quanto o aroma de comida no ar, até me deparar com uma porta dupla e mais portinholas. Quando tomo coragem para olhar através delas e do vapor abafado ao seu redor, vejo que se trata de uma cozinha a pleno vapor.

O lugar parece enorme. Por alguns segundos, consigo avistar mesas cobertas por leguminosas, bancadas enfarinhadas, caldeiras fumegantes e fornos com a logo engordurada da Cooking Wilson. Entretanto, o ingrediente principal do funcionamento do ambiente é, sem sombra de dúvidas, os cozinheiros. Fardados de branco – Tudo combina com aquele hospital ou é o contrário?—, correm de uma praça à outra, anunciando pedidos que transportam em panelas flamejantes; uma dança de cortes, picotes, mexidos, viradas e muitas doses de experimentação na colher. É hipnotizante.

Abandono a visão e colo o corpo na parede ao lado da porta, meio ofegante. Fico tentada a tirar o suéter pelo calor que emana das chamas vizinhas, mas foco no problema que surge em meu caminho: a escadaria que dá acesso à parte superior do navio – e, consequentemente, ao quarto de Rose – fica do outro lado da cozinha. Para chegar lá, preciso nadar entre seus tubarões de avental, que alimentam homens e mulheres nos andares de cima. Impossível não ser notada, quanto mais com essas roupas.

O caminho se ilumina em minha mente mais uma vez. Tenho uma ideia que talvez soasse arriscada em outros contextos, mas não vejo alternativas imediatas. Quanto mais o tempo passa, é mais desafiador continuar por aqui. Essa loucura foi um erro. Depois de olhar mais uma vez pela portinhola e ver a cozinha seguindo seu funcionamento na velocidade máxima, faço o caminho contrário e retorno à realidade perolada do hospital do Titanic.

Chego à escadaria do outro lado da cozinha a tempo de não derreter sob o dólmã e o chapéu branco, acumulados sobre meu suéter. Olhando para baixo, sigo até achar uma sombra próxima e isolada, para só então arrancar o disfarce. Enrolo tudo em uma muda já suada, que deixo em um canto no chão.

Um armário com roupas de pacientes foi a salvação que encontrei na enfermaria: algum cozinheiro estava de cama e guardou o uniforme. Em meio à correria culinária, ninguém reparou enquanto atravessei o ambiente, mantendo a cabeça baixa e passos apressados. Quando finalmente subo a grande escadaria, a ação só não tira tanto o fôlego quanto a visão que me recebe lá em cima.

Estou realmente em um navio. A ficha cai quando a brisa fria do mar me surpreende, acariciando meus cabelos quando corro para me debruçar na mureta. O calor da cozinha parece uma lembrança distante. A lua tamborila seu reflexo sobre as ondulações do Atlântico, o aroma salgado perfumando o balanço do chão de madeira. A magnitude do oceano se tentacula por todas as direções e não enxergo nada além da escuridão de águas pesadas por quilômetros, preservando o desconhecido assustador sob as ondas.

Estou em um navio.

Giro o corpo de supetão e dou as costas ao mar.

Meu Deus.

Casais aristocráticos me olham torto com seus trajes de gala, luvas brancas e cartolas intimidadoras. Não encaro os olhos de ninguém e ando em direção às cadeiras de madeira esparramadas pelo corredor. Altos janelotes vidrificados iluminam o deque com feixes de luz, um corrimão demarcado na parede. Não posso me alienar agora. Foco, foco, foco.

Se isso for um sonho, vou até o fim para acordar.

Se isso for uma alucinação, sigo até cair na realidade.

Se isso é verdade... Agora não há mais volta.

As noites em claro, estudando os dossiês da investigação de Gillian, vêm a calhar. A planta arquitetônica do navio, a divisão dos níveis por classes, os estudos que tentavam traçar os rumos do ladrão d’O Coração do Oceano, que levavam diretamente ao quarto de sua dona. Os detalhes do documento se iluminam em minha mente e sei exatamente como chegar no quarto de Rose. Estou a ponto de seguir o caminho rumo às suítes da Primeira Classe, quando sinto um impacto no ombro direito e tropeço pra frente, quase caindo no chão.

— Desculpe... A senhorita se machucou?

— Não, tá tudo bem – respondo à voz masculina que toma forma, mãos estendidas para me segurar. Subo o olhar para encará-lo e vejo Lizzy. Não fisicamente, mas a lembrança é tão contundente que envolve e permeia o ser humano real em minha frente.

O homem cultiva cabelos loiros em um corte incomum, moldurando o rosto de uma assombração. Roupas simplórias quase o tornam invisível, um fantasma entre as galas da noite naquele andar do navio. Algumas cartas de baralho se destacam para fora no bolso da calça, porém não perco tempo reparando ali. Algo logo me atrai e, sem muita escolha, fixo minha atenção. Engulo seco. Os olhos azuis-esverdeados de Jack me pertubam mais do que o desconhecido sob as ondas.

Ele é o homem que esbarrou em mim.

Estou de frente para Jack Dawson em pessoa.

Vácuo, o ar desaparece. Nos meus pulmões, parece que nunca existiu. Tento me mover, esboçar uma expressão, mas o corpo não obedece. Está congelado, tanto quanto se estivesse à deriva no oceano lá fora. Não consigo respirar. A garganta fecha, mas as palavras almejam sair. O raciocínio se confunde: o quê falar? Da pedra? Das viagens? Da paternidade?

Oi, cara que nunca conheci, mas odeio.

Obrigado por estragar minha vida e meio que criá-la também.

Não consigo respirar.

O quê falar? Em como ele destruiu a vida de Lizzy? O ar fica pesado como um iceberg ao meu redor, sinto que vou afundar com ele. Quero afundar.

Meu Deus, o que foi que eu fiz?

— Com licença! – de repente, uma voz anasalada atravessa entre nós. Uma senhora de vestido pomposo, acompanhada de um senhor elegante, rouba meu campo de visão de Jack. Suas roupas espalhafatosas não me deixam mais enxergá-lo, e perco seu olhar. – Com licença! Ora, liberaram o andar para terceira classe? Onde já se viu...

Eles não esperam que eu saia do caminho e passam aos empurrões, o que me tira do torpor. Titanic. Viagem. Colar. Volta, Aretha. Me vejo caminhando para trás no automático, até encostar na parede. Quando me dou conta, Jack já segue seu caminho rumo à proa, logo atrás do casal mal-educado. Mais um homem na multidão, como dezenas que caminham pelo navio de cima a baixo. Tudo dura um, dois segundos, no máximo. Não sei se é pela viagem no tempo, mas pareceu uma eternidade. Inspiro, expiro.

Isso não pode estar acontecendo.

Inspiro, expiro.

Era ele.

Inspiro, expiro.

Ele.

Fecho os olhos e sigo inspirando, expirando, o corpo sem desgrudar da parede. Dou um tempo para me recompor, as pernas ainda sem me obedecer. Suor frio desce pela nuca, a maresia arrepiando meu torso. A lembrança da cozinha quente soa uma tentação.

Minha cabeça cai, a pressão deve ter baixado. Arrisco abrir os olhos e, encarando o chão do corredor, vejo uma carta de baralho perdida no assoalho de madeira. Jack tinha um baralho no bolso. Funciona como um gatilho, tal qual a interrupção do casal aristocrata, e retomo o controle do meu corpo.

Testo um passo à frente e, ao conseguir, agacho e pego a carta. É a Rainha de Copas. Olho para o fim do corredor, em direção à proa, e a figura de Jack já sumiu de vista.

Tranco a porta atrás de mim e respiro aliviada, a primeira vez desde que acordei nesse lugar. Obrigada, memória fotográfica. O caminho até a suíte de Rose se entremeava exatamente como nos dossiês, mas Ben também merecia um beijo especial de agradecimento. Nunca me importei com o par de brincos que ele me deu em nossa última viagem, para o Brasil. Duas pérolas que, unidas, se transformam em uma chave universal. Ele nunca mostrou essa invenção para os pais, mas sei que é seu maior orgulho.

A ideia era descobrirmos juntos se realmente funcionava, e prometemos que só iriam testar na próxima viagem, lá pelo fim do ano. Nem tínhamos visto o destino ainda. Destino. Pensar nessa palavra tem um sentido totalmente diferente agora. Mas não pude esperar, e, graças à chave, consegui retrair as trancas do miolo na porta. Me perdoe, Ben.

O bálsamo cálido das rosas na cabine de Rose substitui o aroma salgado dos corredores externos. Pude perceber que o balanço das ondas também diminuiu no caminho, fruto da localização central no navio. Os luxos da Primeira Classe não pareciam acabar, bem no instante em que identifico não estar exatamente no quarto de Rose. Estou na sala de estar.

Paredes de madeira reluzente me rondam, imponentes com seus ornamentos dourados. Avisto as flores cujo perfume me recebeu, rosas brancas e vermelhas em vasos de porcelana. Os jarros não estão posicionados com esmero, mas adornam um belo espelho sobre a lareira. Um relógio cheio de arabescos fica entre as flores e temo que, a qualquer momento, ele implore que eu quebre a maldição da Fera no castelo.

Quadros, mesinhas, sofás estão espalhados pelo lugar – aquilo é um Monet? —, que se amplia para minha frente, um acesso levando ao próximo cômodo. Apesar disso, não vejo nenhuma caixa de joias ou algo emprumado o bastante que se assemelhe com isso. Os segundos silenciosos de observação me certificam que estou sozinha na cabine, talvez não por muito tempo. No bolso, a carta de Jack pesa com o lembrete de que ele pode me flagrar aqui. Rose também pode voltar a qualquer momento.

Consigo atravessar o mais rápido possível até o novo ambiente, o entorno amadeirado dá lugar a um papel de parede que combina com a estampa dos sofás na sala anterior. Mais móveis luxuosos acompanham meu olhar e sigo caminhando, os passos se firmando, até que chego a uma entrada à direita. Ao fundo dela, um cofre verde-musgo surge sobre uma bancada. Sinto os batimentos cardíacos crescerem no pescoço.

Passo pela porta já aberta e chego ao cofre, ajoelhando para enxergá-lo de perto. Há um “VALE” escrito no disco de senha, que nem ouso tentar. As pérolas já estão em minhas mãos, recém-usadas na entrada da cabine, e as acoplo novamente. A chave universal se destaca da joia e a insiro na tranca, girando em sentido antihorário. Ouço o maquinário do objeto acordar e se espalhar dentro do cofre. Em alguns segundos, um som metálico me convida a abrir a portinhola. O Coração do Oceano me encara como se batesse tão forte quanto o meu.


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