Ele é Will escrita por Laís Cahill


Capítulo 16
Preparativos




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Era uma agitada tarde de quinta-feira. Às vésperas da Feira de Mistério, todos se ocupavam finalizando os preparativos. O chão da clareira estava limpo graças ao trabalho de Dipper e Bill no dia anterior. Havia várias pessoas contratadas para montar atrações maiores, como roda gigante e túnel do amor, e Stanley já estava brigando com Soos por não conseguir montar os brinquedos corretamente. Em um canto, fazendo os ajustes finais no robô, estava Bill Cipher.

Seu tornozelo ainda doía por conta da desastrada tentativa de fuga na noite anterior, o que tornava a tarefa atual especialmente difícil, pois precisava ficar agachado para regular as pernas do robô. Ele só precisava aguentar mais um pouco, estava quase terminando…

Droga, por que eu tive a maldita ideia de fugir pela janela? Poderia ter descido normalmente. E daí se o porco me visse e começasse a fazer barulho?

O novo portal, localizado no ferro-velho, estava em fase de construção, mas ainda havia muito a fazer. Tinha sido apenas no dia anterior que conseguira recolher todo o material radioativo necessário.

Dali a dois dias, ou seja, no dia seguinte à feira de mistério, faria três anos desde que Bill foi apagado da mente de Stan. Com ele, vinha o prazo da profecia. Até lá, ele deveria ter enfrentado a si mesmo e se libertado de sua prisão.

Depois de refletir, Bill tinha chegado à conclusão de que “a si mesmo enfrentar” significava desafiar os seus limites para terminar o portal a tempo e “se libertar de sua prisão” significava finalmente sair daquele corpo que o aprisionava. Por último, a profecia afirmava: “Se falhar, dirá adeus a toda realidade”.

Em resumo, Bill tinha pouco mais de um dia para terminar o portal e não ser apagado da existência. Seria uma corrida contra o relógio. Pensar nisso deixava Bill ansioso, então ele fazia o possível para esquecer disso enquanto estava preso com a família Pines.

A porta dos fundos da cabana se abriu. Assim que viu que era Dipper, Bill se escondeu atrás de uma árvore e ficou espiando. O garoto humano olhou para os lados, localizou o robô (carinhosamente apelidado de Stanbô) e se dirigiu para lá.

— Ei, Dipper! — Mabel apareceu, cumprimentando o irmão. — O que está fazendo?

— Ah, oi, Mabel! Você viu o Will? Parece que ele estava montando o robô por aqui…

— Ué, ele estava aqui até agora. Não se preocupa com ele, logo ele volta. Você me ajuda a pregar essas placas pela floresta?

Bill ouviu o amigo suspirar.

— Claro.

Os gêmeos se afastaram do local. Bill respirou aliviado e voltou para o trabalho assim que se sentiu seguro.

Bill não gostava de ter que fazer isso com Dipper. A cada resposta curta que dava para o amigo, cada desculpa inventada, sentia como se uma parte de si estivesse morrendo, mas ele não podia ceder. Depois de seu último sonho, tinha refletido e chegado à conclusão de que seria melhor desse jeito.

Sim, um sonho.

Sonhos não costumavam perturbar Bill, afinal, ele era o senhor dos sonhos. Podia controlá-los a seu bel-prazer, curvá-los à sua vontade, fazê-los trabalhar para si. Sonhos eram onde ele podia ser e fazer o que bem entendesse. Sempre fora assim… Até este último sonho.

Naquela noite, assim que se viu no campo da mente, Bill começou a pensar no que iria sonhar. Diferentemente das outras vezes, no entanto, sua mente não estava vazia, havia alguém lá. Era Dipper, de costas, no meio do vazio. Bill achou estranho, pois geralmente preferia usar seus sonhos para distanciar-se de seus problemas reais. Sentia-se como se alguém tivesse pegado o controle remoto da TV e colocado em um canal que ele não queria ver.

Ele até tentou mudar o sonho, mas, no segundo seguinte, Dipper surgiu muito mais perto, acabando com qualquer resquício de concentração.

— Você é impossível — o duplo etérico de Dipper falou com um sorriso lascivo no rosto.

— Sou? — Sorriu Bill em resposta, lembrando-se da conversa que tiveram durante o dia.

— Você sabe que é. — O garoto dos sonhos aproximou-se e apoiou as mãos em seu peito. Com uma delas, acariciou seu rosto. — Admite logo que você gosta de mim. Pode parar de fingir.

— Você está começando a soar como sua irmã.

Em um movimento, Dipper empurrou o demônio em uma enorme pilha de folhas. Ele então caiu, caiu, caiu, cercado por folhas impossivelmente macias, uma queda mais agradável que qualquer monte de folhas real.

O pouso foi suave como ser aparado por cinco camadas de travesseiro. Em um passe de mágica, Dipper tinha aparecido deitado na grama ao seu lado. Em meio a risadas, os dois rolaram pelo gramado verdejante enquanto folhas alaranjadas ainda caíam do céu. Quem ficou por cima quando pararam de rolar foi Bill. Dipper parou de lutar e ficou olhando-o com um sorrisinho obsceno, esperando por algo.

O demônio não sabia como aquele sonho tinha sido forçado em sua mente, mas sentiu-se incrivelmente grato por estar ali. Queria elogiar seu cérebro por ter criado uma réplica tão exata de Dipper. Seus cabelos macios, olhos com olheiras e ponta do nariz rosada estavam impecáveis.

Era como um transe. Seu subconsciente estava lhe pregando peças, trazendo à tona sentimentos e desejos que ele lutava para controlar na realidade. Mas, daquela vez, era só um sonho. O que de tão ruim pode acontecer em um sonho?

Que se dane.

Bill curvou-se para um beijo e, por um momento, o mundo pareceu ter congelado em uma cena perfeita.

No outro, todo o calor e luz havia se desvanecido. Bill foi atirado em um asfalto frio.

— O que você acha que está fazendo? — vociferou um Dipper furioso.

De repente, Bill tornou-se fraco. A gravidade pareceu aumentar e grudá-lo no chão. Ele não poderia fazer nem dizer nada, mesmo que quisesse.

— Você achou mesmo que ia chegar perto de mim desse jeito? Com essa sua forma de pirâmide e olho bizarro? Achou errado.

O demônio olhou para seu próprio corpo. Nem tinha reparado que estava em sua forma transcendental. Estivera assim o tempo todo?

— Nem ouse se aproximar de mim. Você é nojento — Dipper falou com arrogância, tirando o pó de sua camisa.

Bill estava sem palavras. Podia sentir um calor tomando conta de si, a mistura venenosa de vergonha e ódio.

— O que foi, Pinheirinho? — disse uma voz vindo de trás que soava estranhamente familiar.

Era uma réplica exata do Bill humano que se aproximava. Alto, esguio, bem-arrumado. Bem diferente da forma triangular.

— Esse pervertido tentou me beijar! — queixou-se Dipper, jogando-se nos braços do Bill humano e deixando o demônio real enojado.

— Oh, não olhe para ele, querido — falou a réplica, com um sorriso descarado, virando o rosto de Dipper para si. — Olhe só pra mim.

E os dois se beijaram.

Mesmo ciente de que aquelas não eram pessoas reais, a raiva que tomou conta de Bill foi tão forte que seu corpo ficou vermelho e todo o sonho começou a ruir. A cópia de Dipper e do Bill humano desvaneceram. Esmagado contra o chão, Bill só conseguia ouvir o grito ensurdecedor que ecoava de seu interior e reverberava no infinito, causando um terremoto e rasgando o tecido do sonho.

Bill acordou de supetão em meio a lágrimas e suor. O grito interior perdeu-se na atmosfera calma da cabana e no suave cricrilar dos grilos.

Novamente deitado em seu colchão, Bill apenas se enrolou nos cobertores e ficou de olhos abertos, encarando o vazio. Sentia-se só.

Foi preciso um pesadelo para fazê-lo entender.

Você é impossível”, dissera Dipper.

Não”, Bill queria refutar, “Nosso relacionamento é impossível”.

Dipper estava interessado na forma humana de Bill. Só que dentro daquele corpo bonito não existia um humano, existia um demônio que precisava desesperadamente voltar para sua dimensão. Pensar em Bill como humano era um erro terrível.

Restava pouco tempo até que Bill fosse obrigado a ir embora. Até lá, ele tinha duas opções: tentar ficar com Dipper, trair sua confiança e deixar ambos arrasados com a despedida; ou se afastar dele para que a separação fosse mais fácil.

Nenhum dos caminhos terminava bem, mas um deles terminava menos mal. Bill percebeu que, quanto mais se esforçasse para ficar com Dipper, mais dor e frustração causaria para ambos os lados.

Foi assim que chegou à conclusão de que o melhor era não tentar mais. Deveria distanciar-se de maneira sutil, de forma que Dipper quase não percebesse. Quando desse por si, os dois estariam distantes novamente e ninguém acabaria machucado.

Esse era o plano, cuja eficácia Bill agora questionava enquanto apertava parafusos. Seguir as regras à risca estava acabando com ele. Isso e aquele tornozelo maldito.

Stanley se aproximou da sua réplica de metal, sorrindo.

— Olha só! Quem é esse cara lindão? — perguntou ele, rindo e dando uns tapinhas na bochecha do robô. — Ah sim, sou eu!

Bill estava fazendo reparos na parte de trás do robô e lançou um olhar de desprezo para Stan. O velho se dirigiu a ele.

— Ei, garoto, eu tenho que admitir que achava que você não ia conseguir, mas você está de parabéns.

O menino lançou um sorriso forçado.

— Que gentileza a sua.

— Tenho certeza que aqueles vândalos mirins vão sair correndo de medo quando essa belezinha for atrás deles.

O som metálico de algo caindo chamou a atenção dos dois. Soos tinha deixado cair a estrutura de metal que estava montando.

— Soos! O que foi que eu te disse?

Assim que Stanley saiu da frente, o demônio notou que o outro irmão do mistério estava observando-o de longe, com uma cara não muito amigável. Era a primeira vez que Bill via Stanford naquele dia, apesar de toda a movimentação para o festival, o que não poderia significar coisa boa. Pelo jeito tinha passado a manhã no laboratório.

Para o desgosto de Bill, Stanford resolveu se aproximar e examinar a máquina.

— Olha só! — disse, dando um olhar geral na invenção. — Parece quase terminado.

— Hoje eu termino isso, com certeza.

— Tem como fazer uma demonstração para mim? — perguntou Ford.

— Estou mexendo no sistema de equilíbrio, então não posso mostrar os gestos que programei a não ser que queira que ele se espatife no chão —  disse Bill com visível má-vontade. — Mas posso mostrar o que ele fala quando vê um brinquedo sendo depredado.

Ele registrou um brinquedo como propriedade do robô e então o atirou no chão. Os dois observaram Stanbô soltar insultos e ameaças. Eles testaram mais algumas funções e, por fim, Ford deu seu parecer.

— Bom trabalho, garoto. Isto está realmente impressionante. Parece até com uma coisa que eu faria.

— É mesmo? — resmungou Bill. Como se ele ficasse feliz ao ser comparado com aquele cientista fracassado.

Stanford deu mais uma volta ao redor da máquina e então reparou no tornozelo torcido do menino.

— Onde você arranjou esse machucado? — franziu as sobrancelhas.

— Acabei de comprar. Tava baratinho.

O velho achou graça.

— Você é esperto. Poderia tentar ser meu aprendiz se quisesse, mas não foi com a minha cara desde o começo. Algum motivo especial para isso?

Quer dizer que Ford tinha começado a estranhar. É óbvio, quem não estranharia? Um garoto de rua que, por algum motivo, parece te odiar com todas as forças desde o primeiro momento. Talvez fosse melhor ter fingido que gostava dele. Por outro lado, Ford não era fácil de enganar e Bill era um péssimo ator.

— Eu não preciso da sua caridade — Bill rebateu, evitando olhar para o outro.

De garotos babando ovo pra você já basta o Dipper”, completou mentalmente.

Ford deu alguns passos e continuou a falar com calma.

— Bom, você esteve vivendo na minha propriedade durante este verão. Veste as roupas do meu sobrinho e algumas roupas que compramos especialmente pra você, come a nossa comida, toma banho no meu chuveiro. Então eu digo que, sim, você precisa da minha caridade.

Bill ficou ainda mais bravo porque não tinha como refutar os argumentos.

— Desde o momento que você me respondeu durante o jantar, eu soube que você não é a pessoa que diz ser. Um menino que perdeu a memória? — O velho deu uma risada. —  Parece uma história muito mal contada, vinda de algum filme. Se isso fosse verdade, já teríamos encontrado alguém que te conhece faz tempo.

— O que você quer? — Bill começou a ficar impaciente.

Ford olhava para ele com curiosidade, como se ele fosse um experimento de laboratório.

— Para mim, você é um menino que já fez coisas muito ruins na vida. Escolhas erradas. Algo que te obrigou a fugir para outra cidade, em busca de uma vida nova. Talvez você queira provar algo pra alguém. Meu irmão já foi banido da maioria dos estados americanos por fazer propaganda enganosa, contrabando, sonegação de impostos, entre outras picaretices. Tudo porque queria provar para os nossos pais que ele podia ser bem-sucedido e fazer dinheiro sozinho.

O demônio continuou olhando para ele, esperando a sua sentença. Se tentasse responder, provavelmente arranjaria ainda mais problemas. O velho mudou de assunto.

— Tenho detectado uma alta instabilidade em Gravity Falls, em níveis assustadores. Estudo esta cidade há décadas, e a única situação em que vi algo parecido terminou em acontecimentos catastróficos. Isso, somado ao fato de que encontrei o portal dimensional remontado no porão quando voltei de viagem, é extremamente preocupante.

— Portal dimensional? — Bill se fez de bobo.

O demônio já esperava que Ford tivesse notado o que andou fazendo no porão, pois tudo tinha ficado como deixaram, mas não fazia ideia de como ele media a instabilidade na cidade. Ao menos ele ainda não tinha descoberto sobre o outro portal em construção no ferro-velho.

— Isso mesmo. Se você não quer contar o que está escondendo, é sua escolha. Mas uma hora eu vou acabar descobrindo a verdade, e, quando isso acontecer, as coisas vão ficar feias.

O garoto encarou o rosto dele e controlou o medo crescente. Seu maior inimigo agora tinha poder o suficiente para acabar com sua vida e estava muito perto de descobrir seu disfarce.

Respondeu encolhendo os ombros, engolindo o nó que se formava em sua garganta.

— Você deve ter endoidado.

— Claro que sim.

Neste instante, Ford pareceu muito mais velho e cansado. Parecia alguém que só queria descansar, mas carregava o peso do mundo em suas costas. Ele então virou-se e voltou para a cabana.

Assim que o velho foi embora, a mente de Bill entrou em um frenesi. Precisava terminar o robô do Stan e terminar o novo portal até amanhã. E tudo isso discretamente, sem passar muito tempo fora e fugindo do radar de Stanford. A pressão era enorme e insuportável.

 Os versos da profecia talhada na pedra sempre voltavam à sua mente, como baladas de um sino.

Há três anos, encarcerado em sono profundo

A prece concedida sob uma condição

Seus poderes estavam desaparecendo. Nem conseguia mais controlar os próprios sonhos, e acessar os sonhos dos outros se tornava cada vez mais difícil. Os segredos do universo e a sabedoria infinita já estavam desvanecendo em sua mente. Ficava esquecendo-se das coisas o tempo todo, sentindo-se burro e frustrado.

Se falhar, dirá adeus a toda realidade

O demônio rangeu os dentes, instável. Por mais que seus poderes não funcionassem como antigamente, ele ainda era Bill Cipher, e não deixaria que Axolotl, Stanley e muito menos Ford se livrassem dele assim tão fácil.

Olhando para aquele robô do Stan, Bill pensou em quanto tempo tinha gastado naquele treco inútil. Uma máquina daquelas, utilizada apenas para espantar vândalos.

Quem sabe, no final das contas, ele conseguisse dar uma utilidade ao robô.

 

 

 

Naquela noite, Bill decidiu deitar-se cedo, a fim de não levantar suspeitas. Mabel ficou batendo papo com ele por um tempo, mas, apesar do entusiasmo da conversa, ela logo dormiu. Então ele esperou de olhos fechados até que Dipper entrasse no quarto, torcendo para não cair no sono no processo.

Quando uma luz mais forte entrou no quarto, Bill sabia que se tratava de Dipper. Ouviu o garoto fechar a porta e subir na sua cama com cuidado para não acordá-lo. Dipper geralmente se revirava na cama, o que dificultava o trabalho de identificar se já tinha dormido ou não, ainda mais agora, que tinha prometido não espiar seus sonhos. O tempo se passou, e aquela posição estava ficando desconfortável. Bill virou-se para o outro lado.

Não olhe a mente dele, não olhe a mente dele…”, ele repetia a si mesmo.

— Will? Você está acordado?

Deitado em seu colchão enfiado no meio das duas camas, Bill olhou para cima. Dipper apareceu com a cabeça em cima da cama. A luz do luar entrava pela janela e batia em seus cabelos. Bill sentiu as bochechas queimarem, pegou o travesseiro e enfiou na cara.

— Sim… — disse com a voz abafada.

— Quase não te vi hoje, onde você estava?

Bill sabia que ele perguntaria isso. Sentiu-se grato pelo travesseiro estar cobrindo seu rosto naquele momento.

— Você não me viu lá fora terminando o Stanbô? — murmurou.

— Eu vi o robô, mas você não estava lá.

— Deve ter sido coincidência.

Por favor, dorme logo”, pensou Bill.

De repente, Dipper arrancou o travesseiro da cara do amigo. Bill assustou-se, achando que ele ia começar a brigar e pedir satisfação, mas ele apenas sussurrou:

— Vem comigo, vou te mostrar um lugar aonde eu vou quando estou entediado.

Então se levantou e fez um gesto para chamá-lo. O demônio teve vontade de chorar porque não podia aceitar.

— Dipper, nós vamos acordar cedo amanhã — Bill tentou recusar.

O garoto rolou os olhos.

— Como se você se importasse com isso. Vem logo.

"Que ótimo", pensou Bill. Quanto mais ele tentava se afastar, mais parecia que Dipper queria se aproximar.

"Só dessa vez."

Bill seguiu o amigo porta afora. Os dois desceram as escadas de madeira e foram para a loja de presentes. Ali, Dipper abriu a cortina do provador e puxou uma escada do teto.

Voilá — disse ele.

Os dois subiram a escada e, por fim, chegaram a uma parte mais plana do telhado. Lá havia uma cadeira de praia, uma caixa de isopor e um guarda-sol, mas o verdadeiro espetáculo era o céu estrelado e a paisagem à sua frente. À luz da lua, tudo parecia diferente: O telhado, a imensidão coberta pelas copas dos pinheiros, as sombras no chão. Bill deu um passo para frente e sentiu a brisa suave de verão bater no rosto, o pijama macio ondulando ao vento.

— Bem legal, né? Foi a Wendy que me mostrou pela primeira vez.

Dipper sentou-se na beirada do telhado, seguido pelo demônio, e ficou balançando os pés. Era bom tirar um tempo para apenas refletir sobre a vida.

— Amanhã é a feira de mistério. O robô está pronto? — perguntou Dipper.

— Sim, terminei aquela geringonça hoje.

— O Stan deve ter ficado bem satisfeito.

— Você nem imagina o quanto ele ficou satisfeito em ver uma segunda réplica de si mesmo. É coisa de gêmeos, isso? Argh.

Dipper riu.

— Isso é coisa de Stan, eu juro.

— Bem, estou feliz por ter terminado. Nunca mais quero ver aquilo na minha frente.

Dipper desviou o olhar do topo dos pinheiros para olhar para o amigo.

— Você não parece muito feliz.

— Tem razão, palavras erradas. Estou menos infeliz.

— Ah.

O clima ficou mais pesado de repente. As corujas chirriavam ao longe.

— Falando sério, agora. Você é infeliz aqui?

O tom de preocupação na voz dele era genuíno. Bill achou irônico que Dipper se importasse com isso, já que tinha sido ele quem destruíra seu primeiro portal e o forçara a ficar ali.

— Bem — Ele deu de ombros —, podia ser mais agitado.

— Haha, cidade do interior é assim mesmo. Essa cidade aqui seria um tédio se não fosse as esquisitices.

O demônio quis rir do garoto por achar que qualquer experiência na Terra seria igual ao campo da mente.

— Só que é diferente. Nem a cidade mais agitada se compara à minha dimensão. Aqui é legal quando você acabou de chegar, mas depois que se acostuma é tipo... um limbo.

— Você não sente nenhum conforto na estabilidade?

— O que você esperava? Eu sou caos puro.

— Ok, já sabemos que você é caótico. — Dipper riu. — Agora só falta descobrir se é bom ou mau pra definir seu alinhamento de RPG.

— E o que você acha que eu sou?

— Vou ter que esperar pra descobrir.

Os dois se olharam por um segundo, mas na hora de se reacomodar no telhado, Dipper acabou encostando a mão na de Bill por engano. O humano quase deu um pulo e recolheu a mão.

— Hã, desculpe.

O demônio ficou meio confuso.

— Não foi nada.

Ele não entendeu o motivo da preocupação. Eram apenas mãos. Dipper se recuperou do momento constrangedor.

— Já pensou no que vai fazer no final do verão? — ele perguntou. — Quer dizer, se você vai querer arranjar um trabalho, ou ir pra escola, ou sei lá.

Bill engoliu em seco. Mal sabia Dipper que, para ele, não haveria final do verão.

— Não, ainda não pensei nisso.

A pergunta lhe fez voltar a pensar no portal e que precisava sair logo dali. Pensando numa forma de fazer o amigo dormir, ele deitou as costas no telhado, olhou para o céu e soltou um suspiro.

— Amanhã vai ser um dia legal.

Em seguida olhou de soslaio para o lado, esperando que Dipper fizesse o mesmo, e funcionou. Dipper também deitou.

— Sim. Um dia diferente.

Bill bocejou demoradamente e deu um sorriso de satisfação ao ouvir o amigo bocejando também. Ele olhou para Dipper e o observou olhar para o céu calmamente.

— Vai querer ir na roda-gigante? — perguntou Dipper.

O demônio nunca tinha ouvido falar do termo.

— É isso que as pessoas fazem em feiras?

— Bom, sim. É meio alto. Se você ficar com medo, posso ir com você.

Bill olhou para Dipper, achando que ele estava querendo lhe provocar, mas ele parecia calmo. Bill sorriu e cruzou os braços atrás da cabeça.

— Nah, sou um demônio adulto. Tenho certeza que consigo encarar qualquer brinquedo que vocês tenham.

Dipper soltou um sorrisinho.

— Tudo bem. Vamos em outro, então.

— Não, eu não ligo. Vamos para a roda-gigante, se você quiser.

— Combinado, então.

Os dois se encararam por um segundo, para então voltar sua atenção ao céu. Dipper bocejou novamente. Ficaram algum tempo sem dizer nada.

— Você costumava ter medo dessas coisas quando era criança? — perguntou Bill e esperou alguns segundos, sem resposta. — Dipper?

Então olhou para o lado e viu que o amigo estava de olhos fechados. Seu peito subia e descia calmamente com a respiração. Só então Bill percebeu que ele havia dormido e se virou, sorrindo, apoiando-se nos joelhos.

Geralmente Dipper dormia com menos facilidade. Desta vez seu rosto estava tranquilo e pálido sob a luz do luar, uma aparência que não podia contrastar mais com aqueles sonhos turbulentos que Bill sabia que ainda tinha.

Influenciar sonhos era diferente de vê-los, então Bill ainda tinha alguns truques na manga. Para garantir a Dipper uma boa noite de sono, o demônio encostou o dedo na testa dele e pensou em algum sonho que poderia lhe dar. Nesta noite, ele sonharia que estava caminhando na superfície lunar com um amigo. Os dois se divertiriam com a baixa gravidade até se cansarem e então estenderiam uma toalha xadrez no solo para uma pausa. Usariam uma faca para cortar um pedaço da lua e colocar dentro do pão, como se fosse queijo, e passariam o resto da noite desse jeito. Pronto, parecia um sonho bem agradável.

Poderia simplesmente ir embora agora, mas estavam no telhado, e Bill sabia como era passar a noite fora, no sereno. Por isso tirou seu casaco de lã, o amarelo com estampa de chaves que Mabel havia feito para ele, e usou para cobrir Dipper. Ficou parado, apenas observando-o por um tempo, e sentiu uma sensação estranha no peito.

"Ugh, Bill, já chega. Você tem um trabalho a fazer. Com certeza interagiu com ele mais do que devia", pensou ele.

Silenciosamente, Bill esgueirou-se para dentro da casa e saiu rumo ao ferro-velho.


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