Ele é Will escrita por Laís Cahill


Capítulo 14
Palavras mágicas




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No andar de baixo, a casa parecia deserta. Aonde tinham ido todos?

Dipper estava agitado, andando a passos largos de um lado para o outro. No andar de cima estava Bill, possesso. Ele tinha acabado de tentar agarrar Dipper a força, e era só questão de tempo para descer e continuar o que tinha começado. Aquele demônio era doente.

Tivô Ford, cadê você?” Dipper pensava, indo de cômodo em cômodo e encontrando ninguém.

— Dipper? Tudo bem com você? — disse Soos, que tinha ouvido o barulho e se dirigido à sala.

— Soos! — exclamou o garoto, aliviado. — Você viu o Ford?

— Não, ele foi pescar com o Stan. Por que você tá sem camisa?

Dipper voltou a suar frio.

— Ahh…Tá calor aqui, não acha?

— Não sei, cara, isso tá esquisito.

Sem dar tempo para resposta, Melody e Mabel chegaram do quintal, sorrindo e carregando material de costura. Elas imediatamente perceberam que algo estava errado.

—- Aconteceu alguma coisa?

— Não! — Dipper respondeu, tentando sorrir. Fez um gesto para não se preocuparem. — Não foi nada, eu me enganei.

Ninguém pareceu acreditar, mas logo começaram a se dispersar. Vendo-se longe dos adultos, Dipper agarrou o braço da irmã.

— Mabel, vem comigo lá pra cima.

— Hã? Tudo bem…

Os irmãos chegaram, mas não tinha ninguém no quarto. “Droga, ele fugiu.”, pensou Dipper. Mabel não estava entendendo nada.

— O que foi? Era pra ter alguma coisa aqui?

— Eu… Eu não sei.

O garoto se sentou na sua cama, um pouco mais calmo.

— Dipper, você tá estranho. Tem alguma coisa errada?

Ele não respondeu. Mabel ficou mais preocupada e sentou-se ao lado dele.

— Escuta, se tiver alguma coisa errada, você tem que contar pra mim. Sou sua mana. A gente vai enfrentar isso junto.

Dipper olhou para os olhos de sua irmã, determinados. Durante os anos, ele tinha aprendido a confiar nela com sua vida. Não havia por que esperar pelo Ford quando ele podia acabar com isso aqui e agora. Respirou fundo e preparou-se para o que devia ser dito.

— É o Will. Ele… ele…

As palavras travaram na garganta.

“Ele pirou. Começou a me beijar a força, a ir pra cima de mim. Ele tentou abaixar as minhas calças, caramba! Ele queria me… Ele ia me…”

— O que tem ele?

— É que ele…

Dipper respirou com dificuldade. Onde estava com a cabeça? Contar era uma péssima ideia. Os outros o olhariam com pena e o julgariam por ter deixado isso acontecer, por não ter agido mais rápido.

Não, ele não entraria em detalhes. Precisava lidar com isso sozinho.

— Ele foi embora. Disse que ia ficar um tempo fora.

— Ah! — Mabel pareceu aliviada. — Por quanto tempo?

— Eu não sei, mas acho que vai acabar se perdendo. Ele pode perder a memória de novo.

Ela assentiu.

— Verdade, coitadinho. Mas não se preocupe. Se ele não voltar, a gente vai atrás dele.

— Sim, boa ideia.

Como dizem, “Mantenha seus amigos perto, mas seus inimigos mais perto ainda”. Não dava para saber o que Bill estava fazendo se continuasse foragido.

Mabel se levantou, sorrindo.

— Não se preocupe — repetiu —, ele vai ficar bem.

Dipper concordou e deu um sorriso miúdo, embora a afirmação não o tranquilizasse. Pegou a camisa que tinha deixado estendida sobre sua cama e a vestiu.

Depois que tudo tinha passado, Dipper se sentia mais calmo e sua reação anterior lhe pareceu um pouco exagerada. Pelo menos agora ele tinha tempo para pensar e decidir o que faria em seguida.

 

 

 

A porta do elevador se abriu e Dipper entrou no compartimento subterrâneo. Esfregou os olhos, cansado. Já eram quase duas da manhã. Bill tinha voltado às oito da noite e Dipper não conseguia pregar os olhos desde então.

— Tivô Ford, você ainda está aí?

O homem se levantou e se virou com uma chave-inglesa em punhos, prestes a bater em alguém.

— Dipper! Já falei pra não entrar desse jeito!

Parecia que o tio-avô não tomava banho nem se arrumava fazia algum tempo. Tinha os cabelos bagunçados, estava cansado e preocupado. Ele se virou e recomeçou a arrumar suas coisas.

— O que você está fazendo, acordado a essas horas? E depois dizem que adolescentes dormem muito…

Dipper se aproximou.

— Não consegui dormir, daí vim ver o que você estava fazendo esse tempo todo.

— Ah, claro, pode vir. — Ford saiu da frente da bancada e mostrou um protótipo para o sobrinho. — Este é o meu mais novo projeto: o detector de anomalias gravitacionais.

Anotações e papéis velhos se espalhavam por toda a mesa, assim como algumas ferramentas. No centro, o protótipo de uma máquina, que se assemelhava visualmente com um sismógrafo, com uma espécie de antena parabólica e um monitor. Na frente dele, um rascunho da máquina pronta, todo rabiscado, com descrições e equações matemáticas ao redor.

— Uau — Dipper se curvou sobre a mesa e exclamou, maravilhado. — Parece tão complexo. Quanto vai demorar pra ficar pronto?

O tio-avô organizava a bancada, colocando as ferramentas em seu devido lugar.

— Agora parece um aparelho tão simples que não sei por que não construí antes. Trabalhando neste ritmo, consigo terminar ainda nesta semana. Quando estiver pronto, ele poderá detectar a localização de anomalias, dizendo quais áreas têm mais atividade anormal da gravidade, ou seja, estão mais suscetíveis a abrir fendas interdimensionais.

— Posso te ajudar? — Dipper pediu, animado, apesar do sono.

Ford deu um sorriso genuíno.

— Estava esperando que você dissesse isso. Pode sim. Vou voltar a trabalhar amanhã cedo, então é melhor você ir dormir agora pra acordar disposto.

O garoto revirou os olhos.

— Já tentei. Não posso obrigar meu cérebro a dormir.

— Entendo perfeitamente. É por isso tenho isso aqui. — Ford tirou uma arma de dardos tranquilizantes de uma gaveta. Dipper ficou boquiaberto. Ford riu. — O que foi? Como você acha que eu conseguia dormir na outra dimensão?

— Hum... Passo.

Os dois riram. O mais velho apertou o botão do elevador e desligou algumas lâmpadas. Dipper cruzou os braços para se esquentar um pouco e ficou tenso.

— Tivô Ford?

O tio-avô olhou para ele.

— Isso tudo ainda é por causa do portal?

A expressão de Ford se anuviou.

— Bem, alguém reconstruiu aquele portal, alguém que com certeza não tinha boas intenções. Tenho a sensação de que tem algo acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, talvez muito mais grave do que imaginamos. Nossa realidade pode estar em perigo novamente.

O elevador já tinha chegado, mas os dois não entraram. A luz que vinha do cubículo contrastava com a escuridão do porão.

— Você acha que tem alguma chance dele voltar? — Dipper acrescentou com receio.

 — A natureza dele é misteriosa, é impossível ter certeza de qualquer coisa que seja. O que sei é que não podemos permitir que haja brecha alguma, por menor que seja. Se aquela coisa voltar para cá, Gravity Falls pode não ser a única atingida. A humanidade inteira estará em perigo. É meu trabalho arcar com as consequências do meu passado e impedir que isso aconteça.

Dipper concordou com a cabeça, culpado.

Os dois entraram no elevador e subiram em silêncio. Apesar de não gostar de esconder algo tão importante de seu tio-avô, Dipper sabia que bastava contar a verdade para não ter mais controle nenhum do que aconteceria. Ford poderia simplesmente assassinar Bill, o que, depois de tudo que aconteceu, não parecia uma ideia absurda. Ou o caso poderia acabar sendo conhecido mundialmente. Os cidadãos de Gravity Falls se lembrariam de Bill e de toda a situação traumática, vídeos do Estranhagedon seriam desenterrados, e as autoridades não hesitariam em sentenciar à morte uma criatura que nem ao menos era humana. Um final em que Bill se arrependesse e aprendesse a conviver com os humanos parecia muito mais feliz e pacífico para todos.

Mesmo que tivesse decidido não contar a verdade, Dipper ainda podia ajudar seu tio-avô e ter certeza de que, de fato, Bill não estava querendo voltar para o seu mundo e destruir a terceira dimensão. Assim ele acalmaria sua consciência e saberia que estava fazendo a coisa certa.

 

 

 

No dia seguinte, Bill acordou com um focinho de porco fungando na sua cara.

— Ahhhhh!! — Sentou-se, desesperado. Ginga guinchou e saiu correndo.

— Haha! Tomou um susto aí, moleque? — zombou Stan, que tinha acabado de descer até a sala. Estava vestindo uma regata que deixava suas pelancas e ombros peludos à mostra.

Bill bufou com raiva e se levantou do colchão. Aquele cômodo era o pior de todos. Todo mundo saía e entrava à hora que quisesse, privacidade zero. Sem contar que o carpete estava todo encardido graças ao porco.

O velho abriu a geladeira, retirou alguma coisa e olhou para o garoto.

— Por que veio dormir aqui hoje?

Controlando a vontade de esbravejar, Bill forçou um sorriso.

— Eu prefiro dormir aqui. É mais espaçoso.

— Ah. Estranho.

O demônio guardou seu colchão atrás do sofá, dobrou o cobertor e colocou o travesseiro em cima dele. Quando estava subindo as escadas, encontrou Dipper vindo na direção contrária.

— Ei, Dipper — ele sussurrou. Foi seguindo o outro. — Desculpa por ontem, de verdade.

A reação de Dipper foi continuar descendo as escadas como se ninguém estivesse falando. Bill irritou-se. Estava acostumado a ser odiado, mas não ignorado.

— Qual é, vai ficar sem falar comigo?

Dipper chegou no piso inferior, com Bill em seu encalço. Nesse meio tempo, Stanford já tinha entrado pela porta que vinha da loja de presentes e estava se espreguiçando.

— Tivô Ford, já começou a trabalhar no localizador de anomalias? — o sobrinho perguntou, animado.

— Ainda não, garoto. Estava organizando tudo, esperando você. — Em seguida, reparou no outro menino atrás dele. — Will? Você sumiu ontem, ficamos preocupados.

Bill repetiu a mesma desculpa que tinha dado para Mabel e Soos:

— Eu fui procurar argila no rio, para moldar a cara do robô, mas no meio do caminho achei ter visto um urso e subi em uma árvore. Devia ter avisado vocês antes de sair.

O cientista se espantou.

— Tudo isso por causa de argila? Por que não faz com placas de metal? É o que eu faria.

— É, foi isso que pensei.

Dito isso, Bill montou um sanduíche de presunto e queijo com certa agressividade e foi para a varanda antes que lhe fizessem mais perguntas. Não havia tempo a perder.

Arrumou as coisas sobre sua bancada. Aquele humano idiota não sabia com quem estava mexendo, ninguém ignora Bill Cipher e sai impune. Rabiscou algumas coisas na sua folha de anotações e logo começou a trabalhar no projeto. Desta vez estava criando um dispositivo que detectasse a presença de vandalismo e fizesse o robô ir atrás dos responsáveis. Iniciou a construção de um protótipo.

Enquanto trabalhava, as cenas da noite anterior tomaram seus pensamentos. “Vai dormir na sala”, disse Dipper, atirando o travesseiro na sua cara. Bill tentara se justificar, mas não tinha adiantado. Não entendia o motivo de tanto rancor em primeiro lugar. Ele já estava arrependido, já tinha falado isso para o humano, mas ele insistia em tratá-lo daquele jeito. Foi só porque tinha lhe dado uns beijos? Humanos gostam de beijos, não é? Ainda por cima, tinha o sonho. “E pare de bisbilhotar os meus sonhos”, ele bateu a porta na cara de Bill.

O demônio irritou-se e deu um murro na bancada de trabalho. Respirou com força até se acalmar. Quando voltou a si, percebeu que acabara de esmagar seu protótipo.

Bill deixou-se cair no sofá e massageou as pálpebras. Estava claro que tentar trabalhar naquele estado não estava funcionando; era como tentar trabalhar enquanto estava com sono, sujo ou faminto, sua mente não cooperava. Nessas situações ele apenas ia e resolvia o problema, mas desta vez não era tão fácil. Agora ele dependia de alguém para voltar a ser produtivo. Boa estratégia, Dipper, muito boa.

 

 

 

Algumas horas se passaram, até que Bill finalmente desistiu de tentar adiantar seu trabalho. Quando subiu as escadas, ouviu alguém cantando no banheiro.

Disco girl, coming through, that girl is you!!

O demônio abriu a porta, que estava encostada, e deu de cara com Dipper cantando na frente do espelho, por sorte, vestido. O garoto arregalou os olhos, mas logo mostrou a cara irritada habitual.

— Ah. É só você.

— Só eu? Achei que fosse uma das amigas da Mabel cantando.

Dipper ignorou o comentário.

— Dá licença, eu vou tomar banho agora.

Ele tentou fechar a porta, mas Bill o impediu colocando o pé no caminho.

— Por que você tá assim comigo? Eu já pedi desculpas! O que você quer de mim?

— Eu quero que você me deixe tomar banho em paz! — Dipper disse, o encarando pelo vão da porta.

— Quantas vezes vou ter que me desculpar? Quer que eu implore perdão aos seus pés? Não vai acontecer!

— “Desculpa” não é uma palavra mágica que você diz e anula tudo o que você fez!

Os dois se encararam com raiva por um momento. Bill comprimiu os lábios.

— Quer sair daí? — Dipper pediu. O outro finalmente tirou o pé.

Assim que ouviu a porta ser trancada, Bill foi até o quarto de Dipper e Mabel, rosnando de raiva. Jogou-se de barriga para baixo em uma cama, e, quando se lembrou que era a de Dipper, deu um soco no travesseiro.

— Will? Tudo bem? — Mabel estava sentada na outra cama o tempo todo, de pernas cruzadas. Olhou para o amigo com preocupação. Do lado dela, no travesseiro,  havia papel de carta e caneta. — Por que o Dipper tá tão bravo com você?

Bill sentou-se devagar e limpou a garganta. Decidiu responder francamente.

— Se ele não te contou, acho que não quer que você saiba.

— Nossa, não sei pra que tanto segredo.

Apesar de tudo, Bill achava que compreendia o motivo. Lembrar do que aconteceu devia ser vergonhoso para Dipper. Se Bill o tivesse socado ou coisa do tipo, provavelmente ele já teria contado para Mabel. Mas o jeito que Bill fez aquilo tornou o momento íntimo demais, tão íntimo que, mesmo não tendo culpa, Dipper tinha vergonha de contar.

Por um momento, Bill viu sua ação por outros olhos e suas bochechas queimaram de vergonha.

— O que você estava escrevendo? — ele perguntou para Mabel, desviando de assunto.

— Ah, são cartas pro meu namorado. Estou respondendo. — Ela sorriu. — Eu gosto de mandar as fotos das férias pro Andrew.

Bill foi até a cama dela e olhou para as fotos. Havia um monte do luau, várias de Mabel com suas amigas e uma que tinham tirado juntos. A garota continuou falando:

— Eu contei pra ele do cara na festa que parecia o Mermando, e ele ficou com ciúmes — ela riu. — Mas, tipo, o Mermando tá no fundo do mar casado com uma sereia faz um tempão. Até parece. Tem essas outras fotos aqui, que eu tirei quando...

O olhar de Bill alternava-se entre as várias cartas enquanto ela tagarelava. Havia muitos corações, desenhos e figurinhas. Muito rosa.

— Você sabe bastante sobre essa coisa de relacionamentos, não é? — comentou.

— Hã, acho que sim. Por quê? — Ela parou por um segundo, então seus olhos brilharam de empolgação. — Precisa de conselhos?

— Não exatamente. É só que você vive falando das suas comédias românticas, e eu imagino umas situações meio diferentes. Sabe como é.

Mabel já tinha pegado seu caderno e estava fazendo anotações como uma terapeuta.

— Uhum.

— Então, imagine o seguinte: Tem esse cara, o personagem principal, e tem essa mina que ele gosta. Até aí tudo bem. Só que ele fica sabendo pelo amigo dele que a garota também gosta dele.

— Beleza. Já dá pra transformar em fanfic.

Bill não fazia a menor ideia do que seria fanfic, mas continuou falando.

— E aí tem esse episódio de praia. Todos os personagens estão se divertindo e tal, mas chega uma hora que o personagem principal e a garota ficam sozinhos. Já está escurecendo, e não tem ninguém por perto.

— Entendi.

— Daí o personagem principal agarra a garota e começa a beijar o pescoço dela!

— O quê? — Mabel se assustou e quase deixou sua caneta cair. — O cara é um vampiro?

— Não! — Bill levou a mão à testa. Ela entendeu tudo errado. — É um cara completamente normal.

Mabel encostou a caneta no queixo, pensativa.

— Deixa eu ver se entendi, ela não sabia que ele sabia dos sentimentos dela?

Bill ficou meio confuso, mas confirmou.

— Acho que é. Isso aí.

— E eles não tiveram nenhuma interação romântica antes?

— Não.

— Tem alguma coisa errada com esse cara. — Mabel riu. — A garota ficaria muito assustada, ainda mais por estarem sozinhos. Sua história precisa de uns ajustes.

— Eu não entendo. A garota gostava dele. Por que ficaria assustada?

— Você tá brincando? — ela ficou séria de repente. — As coisas não funcionam assim. Não é porque ela gosta dele que vai gostar que ele faça isso. Pode ser que numa dessas ela ache que ele é um pervertido e caia fora. Um relacionamento leva tempo e confiança pra ser construído.

Tempo e confiança.”, repetiu Bill em sua cabeça. Ele pensou na sua relação com Dipper e em como tudo foi por água abaixo com uma atitude errada. Seria isso uma quebra de confiança? Era isso o que Dipper achava que ele era, um pervertido?

— Certo. Já ajudou bastante, valeu. — Bill sorriu.

— De nada. Adoro dar conselhos! Agora deixa eu me arrumar. Vou dormir na casa da Grenda hoje!

A garota se levantou e deixou Bill com os próprios pensamentos.

 

 

 

Já era mais de meia-noite, e Dipper ainda não tinha conseguido dormir. Rolava de um lado para o outro na cama, mas não sossegava. Ficava pensando no projeto de seu tio-avô e, claro, em Bill, que agora agia como se Dipper fosse obrigado a perdoá-lo. A lembrança daquele momento depois do banho assombrava seus pensamentos o dia todo. Se não tivesse aprendido aquele golpe de luta e conseguido escapar, até onde Bill iria? Apesar do demônio não demonstrar mais intenções de fazer nada contra sua vontade, Dipper não confiava nele como antes.

Seus pensamentos foram interrompidos por batidas na porta do quarto. Virou-se em sua direção, desejando que não fosse quem ele estava pensando.

— Dipper. Eu sei que você ainda está acordado.

Suas suspeitas foram confirmadas. Dipper virou-se para o outro lado e se encolheu. A voz continuou, baixa e contida.

— Estou cansado, mas não consigo dormir. Eu estive pensando no que eu fiz. Foi realmente errado ficar vendo os seus sonhos. — Bill confessou do outro lado da porta. Estava encostado no batente, com a cabeça baixa. — Eu sempre faço isso, sempre fiz. Nunca pensei que poderia violar a privacidade alguém, ou, pelo menos, nunca me importei com isso. Nunca pensei que causaria uma situação como essa.

Ele suspirou.

— Mas agora prometo nunca mais ver seus sonhos sem sua permissão. Só vou saber deles se você me contar.

Isso era mais do que ele jamais havia prometido a um humano, a única promessa que ele tinha a intenção de cumprir, e não por benefício próprio. Estava se resguardando de um dos seus únicos poderes restantes, seus valiosos poderes. Esperava que Dipper percebesse isso e reconsiderasse.

Nenhum sinal de som ou movimentação do outro lado da porta. Justo. Bill ainda tinha mais o que se desculpar.

— Acho que também te devo desculpas por ter te… atacado. É, essa é a palavra certa. — Ele sentiu um aperto na garganta e engoliu em seco. — Eu não me orgulho daquilo. Posso ser muitas coisas, mas não sou um animal que só sabe seguir os próprios instintos; não quero que fique pensando isso de mim. Eu… sinto muito.

Cenas da tarde anterior voltaram à sua mente em flashbacks. Sua aproximação totalmente desavisada, o rosto de Dipper, aterrorizado, pedindo para ele parar. Como pôde não dar atenção a isso? Continuou fazendo o que queria, olhando para o próprio umbigo. E depois, quando o garoto conseguiu escapar, Bill ainda o ameaçou. Uma onda de vergonha atravessou o seu corpo em um forte arrepio. Alguns hábitos não mudam de uma hora para a outra.

— Eu fui nojento. Você tem o direito de ficar bravo comigo.

O demônio encostou a cabeça no batente da porta. Dipper tinha o direito de ficar bravo, mas Bill certamente não queria que continuasse assim.

— Mas sabe por que fiquei tão irritado quando você se recusou a falar comigo? Sim, meu orgulho foi ferido, eu admito. Só que, além disso, eu gosto muito de você, de um jeito que nunca gostei de nenhum outro humano. Eu não queria que a nossa amizade terminasse deste jeito.

“Nenhum outro humano” era pouco. Bill não queria admitir, mas Dipper talvez fosse a criatura de que ele mais gostava, incluindo os monstros de sua dimensão. A verdade é que ele nunca se importara muito com criaturas. Gostava delas quando lhe divertiam, quando lhe eram úteis, mas não apenas por aquilo que eram. Com Dipper, era diferente. Ele era inteligente, corajoso, sensato e tantas outras coisas boas. Ninguém antes tinha demonstrado tanta compaixão para com Bill. Era a segunda vez que ele fizera algo ruim o suficiente para merecer ser delatado, mas Dipper ainda assim lhe dera mais uma chance.

— Obrigado por não me denunciar. De verdade — disse o demônio. — Mas por que me deixou ficar aqui, se não vai me perdoar?

Nenhuma palavra do outro lado. Bill sentiu-se desamparado, sem conseguir acreditar que tinha feito algo tão horrível que nunca mais poderia ser reparado. Encostou as costas no batente e foi deslizando à medida que seu corpo perdia força até sentar no chão. Cobriu o rosto com as mãos.

— Estou sendo ridículo de novo, não estou?

Ficou um tempo agachado, pensando que merecia tudo o que estava acontecendo. Uma vontade de gritar começou a crescer em seu peito. Por que isso era tão importante? Por que não conseguia seguir em frente? Ele não precisava de Dipper, ele precisava continuar construindo seu portal. Emoções, emoções, emoções! Por que sempre tão complicadas e inúteis?

Um soluço escapou da garganta do demônio ao dar-se conta de que Dipper não o perdoaria e ele teria que lidar com isso. Seus olhos cor de mel assumiram um tom opaco, vazio. A vida seria diferente dali em diante, sem alguém que ele não sabia que precisava, mas o tempo continuaria a correr. Por mais que tentar consertar o erro não tenha adiantado, ele se sentia um pouco mais leve por saber que tinha feito o que podia.

Quando Bill se levantou, decidido a seguir em frente, reparou que a porta estava aberta e Dipper estava a segurando. Ficou olhando para ele com olhos espantados e atentos. Será que Dipper tinha aberto a porta só porque precisava sair e queria que desbloqueasse a passagem?

— Will? — disse o garoto.

Bill acenou com a cabeça.

— Tudo bem — Dipper disse, um pouco sem jeito.

Bill não estava acreditando.

— Você… Você me perdoa?

— Sim, Will, eu te perdoo.

Toda a angústia guardada no peito do demônio subiu pela garganta e começou a escorrer em forma de lágrimas. De poucas viraram muitas e começaram a escorrer de sua face. O coitado olhava para o chão, envergonhado, tentando enxugar o rosto vermelho e quente com as mãos.

— Will, tá tudo bem, não precisa chorar! — Dipper preocupou-se, sem saber o que fazer.

— Eu- Eu sei! — ele soluçou, mal conseguindo falar.

O garoto humano não encontrou outro remédio senão abraçar o demônio que se debulhava em lágrimas na sua frente. Bill retribuiu o gesto lentamente, ainda tremendo.

— Eu também gosto muito de você — Dipper murmurou, e as palavras provocaram uma nova onda de choro.

Mesmo depois que Bill se acalmou, os dois continuaram abraçados por um bom tempo. As emoções fortes haviam se dissipado e dado lugar a uma sensação calmante e gostosa, como as ondas suaves depois de uma tempestade. Bill descobriu que o cabelo de Dipper era tão macio quanto aparentava e tinha alguma coisa em seu abraço que ele não conseguia decifrar. Não entendia como, um dia, quis causar mal a ele. Dipper, por sua vez, estava surpreso com a própria reação ao ver Bill chorar. Estar tão perto dele lhe provocava todo tipo de pensamentos conflitantes, mas a sensação geral sem dúvidas era boa.

Em determinado momento, os dois tiveram que se soltar e se despedir. Bill voltou para o piso inferior, em que dormiria pela última noite. Desta vez, ambos conseguiram dormir bem.


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