A princesa proibida escrita por Helena Melbourne


Capítulo 23
O Leão e a Raposa




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“Entre todas as mulheres fui abençoada, me apaixonei pelo homem que estou destinada a casar. Scar não é nada do que eu esperava, não é obtuso como ouvi falar, é inteligente, carinhoso, doce e muito belo. Jamais pensei que pudesse me sentir assim, mal posso comer, dormir ou pensar em outra coisa que não seja seus olhos ou sorriso. Sinto minhas pernas bambas e comichões na barriga quando nos cruzamos nos corredores, é como estar enferma e ao mesmo tempo ter encontrado a cura de meus dias vazios.”

...

“Ficar longe dele nesses dois anos em que voltei para Xártis foi como ter deixado um pedaço de mim em Reichestein. O azul do mar já não era tão majestoso, a brisa da maresia se mostrava irritante, assim como a areia e os jardins do palácio, antes coloridos, pareciam cinza. Eu me perguntava se tudo não passara de uma doce fantasia ou ilusão de minha mente....”

Kiara lia faminta as páginas do diário de sua avó, os olhos tão abertos que lacrimejaram e ela notou que não piscava. A princesa simplesmente não conseguia acreditar que o exilado estava certo e sua avó realmente tivera algo com Scar antes de casar-se com o avô, que na verdade, estava prometida ao primeiro irmão. “Como isso pode ter acontecido?” Então, fechou abruptamente o livreto antigo, temerosa. O que mais descobriria com isso? Tinha medo de pensar em como a história que conhecia, e que era parte de si, poderia estar errada.

Bateu o pó impregnado na roupa por ter revirado prateleiras intocadas há anos naquela biblioteca e decidiu dormir. Agradeceu mentalmente por não ser Kovu a fazer a ronda em sua porta naquela noite, o guarda em plantão abriu a boca para avisar que ela já deveria estar dormindo, porém, apenas com um aceno de mão, ela o calou e adentrou o cômodo.

A princesa guardou o diário dentro do exemplar do Príncipe e achou que esta fora uma boa estratégia da avó para evitar os olhares curiosos de seus pensamentos, visto que aquele livro do senhor Maquiavel parecia ser tão impopular, ninguém o abriria. Ela o guardou debaixo do travesseiro e adormeceu com a mente inquieta.

Abriu os olhos com a voz de Razel a despertando, sentiu a sonolência a invadir, resultado de uma noite mal dormida como todas as anteriores desde que achou o bendito diário, porém, princesas não faziam hora na cama. Levantou-se, fez a higiene matinal e permitiu que a criada a ajudasse a se arrumar, pediu que colocasse roupas leves. Assim, vestiu um vestido verde liso solto do busto para baixo, o espartilho não ficou tão apertado e o cabelo parcialmente preso.

Então, saiu de seus aposentos com a cabeça baixa, deu graças a Deus por ser o último dia dos hóspedes no castelo, pois toda vez que cruzava com algum príncipe, ou outro convidado de sua festa, a olhavam como se houvesse cometido algum tipo de crime, quando fora ela a atacada.

Nos dias que se seguiram após a festa, o pai não foi ao desjejum da família real e dos membros da corte, mas ali estava ele agora, imponente como sempre, no salão principal, todos estavam em seus postos à mesa. Ela percebeu que seu lugar de costume à esquerda do pai estava ocupado por Timão e o único lugar livre era na outra ponta da longa mesa. Os homens se levantaram com sua chegada, inclusive o pai, apesar deste não ter lançado nenhum olhar a ela.

 A princesa sentiu o coração apertar e uma vontade enorme de chorar apoderou-se de seu peito, queria que o pai e a mãe a olhassem e distribuíssem o sorriso habitual, que a indicava que tudo estava bem e transcorreria perfeitamente. Ela precisava daquele olhar de aprovação para começar o dia devidamente. No entanto, nada estava bem e sentiu ainda mais mágoa por saber que o amor de seus pais só estava à disposição quando se comportasse segundo as expectativas. Engoliu seus sentimentos, não poderia ceder, não iria, ela tinha que aprender a ser forte, tanto com a espada quanto em seus posicionamentos. Pela primeira vez ela se escolheu e teria que se escolher todos os dias.

O desjejum foi feito em um silêncio mortal e quando Simba terminou a refeição e levantou, os membros da corte tiveram sua licença para retirarem-se também. Kiara saiu às pressas, evitando novos olhares desaprovadores. Do lado de fora do salão principal, seu guarda particular a aguardava impecavelmente como todas as manhãs desde que o nomeara.

— Princesa. – ele saudou.

— Kovu. – ele franziu o cenho e ela se corrigiu. – Senhor.

— Estás com pressa ou estás se aquecendo para treinar? – ele questionou divertido, seguindo suas passadas rápidas sem dificuldades.

— Vejo que seu humor não se afeta pelas manhãs. – devolveu ácida. Então cruzou com o príncipe Tristan, que enrugou o nariz como se cheirasse algo realmente ruim e seguiu seu caminho, ignorando seu aceno. Kiara suspirou e apertou os olhos, estava ficado farta daquilo.

— Levante a cabeça, princesa. – a voz rouca sussurrou.

— O quê? – ele estava lhe oferecendo um conselho?

— Fez vossa decisão, estes senhores estão em vossa terra, imponha respeito e não abaixe a face. – as esmeraldas estavam serenas como em qualquer momento em que não exibiam gozo.

— Por que o senhor se importaria? – estava confusa, a todo momento ele a humilhava. Kovu estava a treinando porque, de certa forma, isso o divertia sadicamente, mas por que oferecer um conselho gratuitamente? Ele a confundia tanto... A irritava e a salvava, menosprezava sua amizade e oferecia conselhos, tudo ao mesmo tempo.

— Não suponha coisas a meu respeito, Alteza. – aquilo não soava uma resposta, o que significava? Isso também a enraivecia. No entanto, quando a próxima pessoa passou com desaprovação no olhar, ela manteve-se ereta e fingiu não se afetar, Kovu balançou a cabeça em um elogio silencioso.

***

— O senhor está certo que não irão nos descobrir? – Kiara perguntou mais uma vez ao chegarem na cachoeira, ele revirou os olhos.

— Já disse, Alteza, apenas eu conheço esta passagem secreta pelo jardim sul.

— E como o senhor a conhece, por falar na questão? –cruzou os braços desconfiada.

— Meu pai a abriu quando ainda era jovem, ele o fez para escapar ocasionalmente, junto a vossa avó, para fora do castelo. – novamente a princesa sentiu-se incomodada com o assunto e ele ocultou um sorriso satisfeito por isso.

— Scar contou isso a ti? Como sabe de todas essas coisas? – indagou suspeita.

— De certa forma sim, eu descobri o diário de meu pai há alguns anos. – Kiara abriu a boca em um “o”, seria muita coincidência?      Passaram algum tempo fitando um ao outro até que ela balançou a cabeça, resolveu não se alongar no assunto, não queria pensar sobre isso no momento.

— E quais exercícios farei hoje? – perguntou.

— Os mesmos. – respondeu simplesmente. Ela revirou os olhos, já estava cansada de correr e fazer abdominais, assim como estava dolorida.

— Isso é inútil!! – bufou após conseguir fazer 10 abdominais de uma vez, seu máximo desde que começaram com os exercícios. – Quando aprenderei a lutar de verdade?

— Quando conseguir levantar uma espada sem que o peso a incomode. – ele revirou os olhos cansado das reclamações da garota.

— O senhor é um sádico! Não estás realmente me ajudando, estás apenas para me ver sofrer! – exclamou irritada. Kovu se levantou e aproximou-se sem paciência, os olhos crepitavam, o lado zombeteiro havia sumido e dado lugar ao exilado treinado por Zira. Com brutalidade ele retirou a camisa branca de linho que vestia, assustando a garota.

— Estás vendo isso? – apontou para o abdômen definido, mais especificamente para as cicatrizes, vários cortes desde mais profundos a mais superficiais, também os braços cheios de arranhões se confundiam com as veias que saltavam no antebraço. Kiara recuou, temerosa, foi remetida inevitavelmente à noite de seu aniversário em que quase fora violada. Ele estava agressivo, após perceber o que tinha feito e que Kiara se encolheu diante de sua movimentação, suavizou as expressões, ficando apenas sério. – Vê isso, princesa? – perguntou novamente, mais delicado.

— Recomponha-se, soldado. Isto é demasiadamente indecente, se alguém nos pega assim... – Kiara dizia nervosa e desconfortável.

—  Vossa Alteza já tirou as vestes na minha frente, pensei em equilibrarmos a situação. – Kiara ficou vermelha de repente de raiva e vergonha, ali estava o sorriso perverso novamente, antes que ela pudesse retrucar, ele continuou. – Contudo, minha nudez parcial possui um propósito, preste atenção, sou vosso mestre. – Relutantemente a princesa fitou o abdômen sem desviar o olhar.

— São cicatrizes de batalha? – perguntou incerta, ele negou com a cabeça.

— São de treinamento. – ela arregalou os olhos. – Sabes por que sou o melhor das Terras do Reino? – fez uma pausa e respondeu a própria pergunta. - Porque no exílio treinamos como num campo de batalha real. E quando começamos ainda crianças, treinamos vendados para fortalecer todos os sentidos, não só a visão. Há muito mais além do que os olhos podem oferecer, nem tudo é o que parece, princesa. –  Kiara sentiu um arrepio na espinha e piscou desnorteada, poderia imaginar centenas de interpretações para aquela frase e censurou-se mentalmente por isso. – Vossa Alteza pediu minha ajuda e estou aqui, correndo muitos riscos para treiná-la. Avisei no começo que não a trataria diferente por ser princesa, estou levando a sério nosso momento aqui, e a senhorita? Confiará em mim? – Os dois ficaram em silêncio por um tempo, castanho no esmeralda, Kiara mordeu os lábios procurando insinceridade na fala do homem, porém, não encontrou.

— Confiarei. – assentiu.

— Excelente, agora volte para os abdominais. – ordenou, pegando a camisa do chão e vestindo. Kiara acompanhou com os olhos todo o processo, tinha que admitir que não era de todo mal vê-lo com o tronco à mostra. Kovu ficava realmente belo com os cabelos ao vento e o ar de professor, ela achou-o menos detestável naquele momento. Após terminar de se vestir, o exilado se virou e a encontrou fitando-o com interesse. Ao se dar conta do que fazia, Kiara corou novamente e tentou achar algo a dizer, na verdade, não fora tão difícil, pois tinha uma pergunta entalada na garganta há tempos e como ele citara as outras cicatrizes, não imaginou que seria indelicado perguntar-lhe daquela curiosa no olho esquerdo.

— E esta aqui? – aproximou-se e tocou-lhe a face esquerda com a ponta dos dedos. Os dois pareceram surpresos com o toque, Kiara não sabia o porquê fizera aquilo, foi um impulso. Kovu sentiu o calor dos dedos suaves em seu rosto e curiosamente os achou reconfortante, eram tão leves que se assemelhavam ao soprar da brisa que os rondava.

— Esta, princesa, receio que seja por sua causa. – falou colocando a mão sobre a sua para afastar o toque gentilmente, Kiara sentiu a pele arrepiar com o roçar dos dedos, assim como no dia que quase lhe desferiu um tapa. Porém, ali estava diferente, havia uma atmosfera que quase a puxava para ficar mais perto dele. Então, sua sobrancelha fez um vinco procurando entender o que ele dizia.

— Minha causa? – se afastou um pouco, tomando consciência do quão inapropriada estava a situação. Ele sorriu sem muito humor lembrando daquele dia.

— Sim, a recebi logo após salvá-la a primeira vez quando éramos crianças. Zira não ficou muito contente com meu salvamento à filha de Simba. – ele recordou dizendo mais para si do que para ela, a culpa a invadiu imediatamente.

— Eu sinto muito, Kovu. – desejou sinceramente, refreando a vontade de tocar seu braço para passar conforto.

— Foi há muito tempo, Alteza. – Kovu frisou a última palavra e ela se deu conta de que o chamara pelo primeiro nome.

— Mesmo assim, esse tipo de tratamento, principalmente vindo de uma mãe, deixa marcas, não apenas na pele, mas na alma. – insistiu. Pensou em seu pai e sua mãe, por mais que estivessem desgostosos com ela, jamais fariam algo do tipo.

— Vamos voltar aos exercícios. – ele encerrou o assunto, claramente incomodado.

Então Kiara retornou à série de exercícios e Kovu ao livro que lia, ocasionalmente seus olhares se cruzavam, porém, não trocaram uma palavra até voltarem para o castelo. O sol estava apinhado no céu, indicando que o almoço no castelo logo seria servido.

Kovu olhou ao redor para verificar se não havia ninguém por perto e puxou a pequena corda fincada ao chão, levantando o alçapão camuflado por grama. Assim, entraram no túnel que passava por baixo do fosso e chegaram até o alçapão  dentro do castelo no jardim sul, aquela entrada era protegida pelo interior de um largo tronco de árvore oca, de modo que ninguém desconfiaria.

— Como Scar construiu isso? Deve ter levado anos para cavar o túnel! – ela comentou.

— Bom, ele apenas o finalizou. Logo que construíram o castelo, planejaram essa rota de fuga, contudo, desistiram na metade. Como deve saber, há outras espalhadas por aí e creio que acharam ser suficiente a proteção.

— Entendi. – Kiara ia destravar o alçapão, mas refreou-se ao ouvir vozes.

— Por que nos encontramos aqui, afastados de todos? – perguntou uma voz amedrontada.

— Já lhe disse, homem. Isso é uma missão secreta do rei. – respondeu o outro, impaciente. Kiara reconhecia as duas vozes, a primeira inegavelmente era do comandante Atom, que treinava o exército, a segunda, no entanto, não conseguia relacionar a um rosto.

— Isso não me cheira bem. E por que não envolver a Guarda? Kion lida com esse tipo de coisa, não eu.

— Kion está ocupado, o rei está lidando infernos com os príncipes que exigem desposar a princesa. Ele me deixou pessoalmente encarregado de lidar com essa situação. Simba me pediu para avisar que armasse e treinasse suas tropas para invadir o exílio em 2 semanas a fim de puni-los por saquearem o trigo. Será um ataque surpresa, por isso, ninguém deve ficar sabendo.

— Reichstein sempre teve uma política de paz para com o exílio, sendo rigoroso apenas na medida necessário. Isso me soa extremo. – Atom devolveu desconfiado.

— Claro, mas não percebe? O rei acredita que o exilado estar aqui dentro não é consciência, eles estão armando alguma coisa. Simba mandou colocar fogo nos estoques de trigo para colocar a culpa nos exilados e, assim, ter uma desculpa para atacar. -explicou o outro.  Kiara puxou o ar em surpresa, fazendo certo barulho. Kovu lhe tapou a boca com a mão, impedindo que ela denunciasse suas posições.

— O que foi isso? – perguntou Atom.

— Deve ter sido um pássaro, não mude de assunto, comandante. Isso não é um pedido, é uma ordem do rei. Porém, se não acredita, vou dizer a ele que você andou o questionando, Atom. Com o humor de Simba nos últimos dias não creio que ele ficará muito contente em saber que um subalterno como você o desacata pelas costas. – cuspiu.

— Não, não. Por favor, não foi o que quis dizer, apenas que não é do feitio do rei prejudicar o próprio povo. – tratou de se explicar, a voz trêmula.

— O rei está furioso com a presença do exilado, mas se atacasse o exílio sem motivos iriam chamá-lo de déspota. Estamos evitando um prejuízo maior no futuro, pense na finalidade, não nos danos colaterais. Eu mesmo estou cedendo ao rei vários sacos de trigo de minhas terras para encher o estoque do reino.

— Está bem, está bem. Avise ao rei que irei prepará-los. – Atom se deu por vencido.

— Avise seus homens para manter sigilo.

Kiara e Kovu se concentraram no barulho das folhas e galhos sendo pisoteados até que que não pudessem mais ouvir um ruído, esperaram quietos, imóveis. Os dois perdidos em pensamentos, nem se tocaram o quão próximos estavam, Kovu ainda com a mão sob os lábios da princesa, as respirações se fundindo. Ao se dar conta, o exilado se afastou abruptamente, enojado, ela era a filha de Simba, não poderia esquecer-se disso jamais. O homem que planejava destruir sua família, seus futuros súditos. Por estar escuro, a princesa não viu sua expressão, tomou aquilo como deixa para sair do esconderijo, Kovu foi logo em seguida.

— Kovu... Isso é horrível. – ela comentou ainda em choque. – Eu não acredito que meu pai faria algo assim.

— Ele é um rei. -soltou ácido, a mandíbula tensa em raiva, tentou se acalmar para não explodir. – E como disse o sir Maquiavel, princesa, o rei deve ser o leão e a raposa. Agora ele está agindo como leão.

— Não! Não! Meu pai não é assim! – choramingou como uma criança, incrédula.

— Não seja tola, Alteza, esses são os fatos. – e assim seguiu a passos duros para longe da menina, irritado demais para ser polido.

— Eu vou provar para o senhor! – mas Kovu não se virou. – Eu vou provar... – ela sussurrou. Se Kiara não tinha forças para pegar numa espada e agir como um leão, usaria sua mente, seria esperta como uma raposa. Aquilo não estava cheirando bem e ela iria provar.


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