Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 5
Hell-raising, wheel-chasing, new worldy possessions.


Notas iniciais do capítulo

Oooi! Tudo bem? Cheguei aqui com outro capítulo um tiquinho antes porque não vou conseguir postar amanhã e qual é a diferença né? E eu também quero demais que chegue no próximo logo porque eu gosto demais dele e esse, apesar do que eu disse, ainda é um pouco mais sobre background, ainda que as coisas já comecem a ficar Brabas. Nesse aqui a gente conversa um pouco sobre a Clove e vemos um tiquinho mais dos SentimentosTM dela. E também aparece um personagem MUITO importante para a trama.
O título vem de PRIDE., do Kendrick Lamar porque o DAMN. é literalmente o melhor álbum já produzido por uma pessoa e também porque esse trechinho conversa um pouco sobre o que a Clove pensa ser. Boa leituraaaa!
*Trigger Warning* O capítulo contém menções a assassinato, assédio, conteúdo sexual e violência.



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Enquanto Cato repassava a cena com Lyme na sua cabeça em busca de resgatar algo nas entrelinhas, Clove estava mais uma vez se divertindo um pouquinho mais do que devia humilhando e aterrorizando todo e qualquer aluno, só para manter a tradição viva.

Quando ela se cansou, e ela estava entediada, Clove rumou para a sala de reunião, o lugar onde geralmente os Vitoriosos ficavam quando marcavam presença por lá. A despeito da sua antiga sala privada, ela tinha decidido que aquele era seu lugar preferido na Academia agora. Ainda que não tivesse nada de mais, ainda que fosse composto e ocupado pelos mesmos materiais ordinários e cinzentos do resto da Academia, todo o cômodo cheirava a poder.

E poder era o cheiro preferido de Clove – Cato, desde quando eles tinham uns catorze anos, tinha começado a exalar um aroma parecido com aquele.

Ela imaginou se todos os nove Vitoriosos vivos que tinham vindo antes dela haviam mesmo se reunido ali para decidir se ela iria mesmo pros Jogos, porque parecia irreal, um dos delírios que ela tinha antes de vencer. Os mais velhos, claro, eram os mais difíceis de convencer, porque achavam defeitos na perfeição. Cato, se tivesse estado mesmo ali, absolutamente teria votado que não. Kurt Bonatz, cujo irmão era uma espécie de amigo dele, também devia ter alegado ter encontrado algum falha nela, porque era mais leal a ele. Devia ter sido uma votação apertada.

Clove se recostou na cadeira da ponta, a de Brutus, fechando os olhos.

Ela refletiu sobre aquele projeto de rebelião, sobre as informações estranhas e provavelmente erradas que Cato tinha fornecido, bem rapidinho, porque fazer aquilo ali também era uma espécie de traição e era bom. Então ela se dedicou a pensar sobre Cato e sobre as chances que havia dele aparecer ali e eles trancarem a porta e ela poder contar as marcas nas costas dele que haviam sido ocasionadas por ela e causar mais algumas, bem ali, na mesa da sala de reuniões, Brutus caminhando pela Academia sem nem fazer ideia e Cato quase com desespero pedindo para ela não gritar muito alto e mesmo assim...

A porta foi aberta. Não tinha sido trancada em primeiro lugar. Clove soltou o ar pela boca.

Quem entrou por ela não era nada parecido com Cato Hadley. Ele era alto e forte, mas seus músculos se distribuíam de forma muito diferente. Ele não tinha olhos azuis nem cabelos loiros; Clove leu uma vez que, antes de Panem, pessoas como ele eram chamadas de asiáticas. Agora, ali no Distrito 2, ele meramente tinha olhos puxados e pequenos e aquela era a única forma de descrevê-lo.

Wade Rankine fechou a porta atrás de si casualmente.

Ele tinha sido seu Vitorioso designado, mas Clove sempre havia tido um problema em respeitá-lo. Claro, ela era uma menina das pedreiras e era muito boa em seguir ordens com perfeição, mas alguma coisa em Wade não inspirava seu respeito.

Ele tinha ganhado seus Jogos numa espécie de deserto, ainda que aquela não fosse bem a palavra que descrevia o ambiente criado pela Capital. Metade dos tributos sobreviventes ao Banho de Sangue havia morrido de desidratação em um período de tempo muito curto; os Jogos duraram meros quatro dias, mas eles os esticaram na arena de forma que todos perdessem a noção de tempo. Ele era o mais bem preparado e o mais bem patrocinado e a desidratação se contentou em desenhar traços de uma loucura suicida nele. Ele vagou e vagou. A Capital ficou entediada; quando um dos clássicos lagartos deles o causou uma alucinação, sua primeira visão aparentemente tinha envolvido o tributo restante bebendo um restinho de água, então, na vida real, tudo muito fisicamente, Wade arrancou as entranhas da garota do 11 num rompante.

Clove não havia tido nenhum contato com ele até atingir o nível 12, quando tinha quinze anos e ele começou a rondar o espaço do nível. Como se ele nunca houvesse deixado a Academia para vencer os Jogos Vorazes, Wade tinha começado a se comportar de um jeito que não possuía ares de vitória perto de Clove. E ela pegou a deixa.

Por um tempo, então, Clove havia aproveitado a vontade de Wade de cair numa armadilha dela. Eles nunca tinham feito nada ou falado uma palavra sobre isso – Clove sabia que ela não tinha –, mas era provável que aquelas encenaçõezinhas dele a tratando como “a irmã mais nova dele” enquanto corria as mãos em um ponto muito baixo em suas costas não haviam enganado ninguém.

Fica subtendido que talvez Clove não respeitasse Wade porque nada em sua masculinidade parecia certo pra ela.

Ele nunca tinha tocado nela de verdade e até onde Clove sabia, em nenhuma outra aluna. Mas Clove também sabia interpretar muito bem certos olhares e modos. E em achar porquês para a existência deles.

— Oi.

— Oi.

Wade se sentou em uma das cadeiras e alcançou as pastas de arquivos que ficavam atrás delas.

— Como tudo está indo?

— Bem. Obrigada – Clove continuava levemente recostada na cadeira. Sua postura, se você lesse bem, parecia muito a de quem ou desafiava uma pessoa ou estava despreocupada ao máximo com a existência dela.

— Eu vou bem, também, obrigado.

— Desculpa. Eu ando um pouco esquecida esses dias.

— Se esqueceu de como ser educada?

— Acredita nisso? Mas acho que esqueci sim – ela manteve seus olhos fechados, a voz arrastada forçando um tom afetado, mas Wade mal a olhava enquanto fuçava nas pastas.

— Você pediu pro Cato vim aqui?

— Por que eu pediria?

— Para ver a irmã dele.

— Para completar minha cota de boas ações diárias, eu prefiro distribuir flores no distrito do que me envolver com a família dos outros.

— Bom, você deu mamadeira pra menina. Você não quer ajudar ela nessa caminhada?

Clove abriu os olhos e se sentou reta na cadeira, mas não apressadamente, porque ela odiava demais quando meninos burros tentavam usar do seu sagrado sarcasmo para implicar qualquer uma daquelas idiotices inúteis. Ela distraidamente coçou sua clavícula, aguardando.

Agora ele tinha a atenção dela, porque tinha ultrapassado seu nível de idiotice regular.

No entanto, ela não falou nada. Ele continuava procurando alguma coisa nas pastas, despejando as outras do lado, então não tinha acabado ainda. Ela esperou o segundo round. Wade finalmente achou o que queria. Ele posicionou o arquivo de algum aluno na altura dos olhos e se recostou na cadeira, relaxado. Como se houvesse vencido alguma coisa.

— Aqui. Tem a Enobaria falando de quando você foi tirar ele do tronco depois que ele admitiu ter quebrado os braços de um menino pra ela e foi castigado. Ela escreveu em vermelho, circulou, e eu cito: ponto de interrogação.

Clove se manteve inexpressiva encarando o rosto sorridente de Wade.

— Tem mais. Tem o Brutus, também, obviamente, relatando sobre a vez que vocês dois foram mandados para atividades de campo. Primeira vez, doze anos, na Nêmeses por sete dias, desidratação aconteceu. Na outra, ele voltou com um braço quebrado porque tentou alcançar uma das flechas que vocês tinham que achar em uma das árvores. Na última, uns meses antes de ele ir pra arena, sucesso total. Os dois inteiros.

— Esse é o arquivo do Cato? Uau. Você é um fã muito dedicado.

Ele não foi perturbado. Wade levantou a mão e continuou.

— Aí tem eu, falando sobre o problema com as facas. Tem o Magnus, até a Zenobia. Mas não tem a Lyme.

Agora Wade se dedicava a olhar para ela, como se houvesse acabado de entregá-la a prova irrefutável de um crime. Clove nem se prestou a decifrar seu olhar. Ele era muito despropositado, muito limitado intelectualmente para ela se dar ao trabalho. O sol da sua arena tinha derretido seus miolos.

— E eu com isso?

— Bom, nada.

— Ok. Se divirta, então. Eu vou tirar um cochilo. Fale sobre o Cato bem baixinho, pode ser?

Ela ouviu Wade rir agora, de certo com aquele mesmo brilho estranho nos olhos. Daquele jeito, achando graça demais nas coisas, ele parecia muito com a aparência que se era imaginada para uma pessoa que tinha arrancado as entranhas de alguém.

Mesmo assim, ele ainda se prestava a tentar falar macio com ela.

Acima de tudo, e Clove desconfiava que até mesmo antes da Academia entrar na vida dele, Wade era um animal. Ele só se movia sob necessidades instintivas, bestiais, pouco inseridas no âmbito da razão. Ele não tinha sido feito para sutilezas como aquela e suas tentativas de provar algo intelectualmente, presumir conexões, pareciam sempre deslocadas. Mesmo assim, ele tentava às vezes. Como resultado, ele parecia cada vez mais louco. E Clove começava a pensar sobre talvez não se configurar como a pessoa que mais se divertia em bater palma pra maluco dançar.

— Lyme nunca teve nenhum contato com ele, aparentemente, e mesmo assim eu juro que vi ela de braços dados com o Cato saindo pro lado de fora.

Ele tinha um objetivo, afinal. Denegrir – se fosse esse o caso, porque ela ainda não sabia bem – Cato. Como sempre. De um jeito que ainda não estava muito claro para Clove.

— Melhor você ir ver alguém para tratar dessas alucinações. Você viu o que aconteceu da última vez.

— Não. Eu vi de verdade eles – ele agora se curvava levemente na mesa, tentando estabelecer algum contato visual mais intenso com ela, incutir uma verdade simplificada que parecesse mais com ele.

Os olhos de Clove se arregalaram por alguns segundos, enquanto seus batimentos cardíacos aumentaram um pouquinho. Ela sorriu para ele, daquele jeito que não convencia ninguém.

— Ok. Obrigada por me avisar. Eu vou ver com o Cato se ele está tendo um caso com ela.

A parte mais perturbadora nisso tudo era que Wade não costumava mentir.

No entanto, Clove não iria nem sequer pensar sobre nada incriminador na frente dele. Sabe se lá o que ele havia aprendido sobre ela com o passar do tempo. Às vezes as pessoas podiam ler a mente umas das outras. Era difícil espairecer seus pensamentos perigosos com aquela revelaçãozinha enrolada e confusa de agora, mas a garota se esforçou muito para desviar sua mente para outros assuntos. Ela fechou os olhos e se recostou de novo, mas.

Será que o Cato tinha falado demais, sido burro demais?

Será que ele estava na Montanha da Capital respondendo perguntas?

Será que ele estava morto

— E se ele estiver? – Wade perguntou debochadamente, de olhos arregalados. 

— Aí eu vou ter que trocar de parceiro – Clove ficou confusa por uns segundos com a pergunta sugestiva de Wade, que se parecia muito com a resposta para as perguntas que ela mesma estava se fazendo no momento. No entanto, ela o respondeu no mesmo tom. – Parceiro de treino. Porque Lyme ia ocupar a maior parte do tempo dele e eu não ia querer ficar no meio de nada.

Uma torrente de xingamentos passava pela mente de Clove, agora. Como ela tinha acabado daquele jeito? Se aquele filho da puta tivesse sido burro daquele jeito... Tudo por conta daquela ideia ridícula de espionar. Cato pensava que era tão bom, tão onipotente que conseguia ter tudo e se safar de tudo. 

Talvez ele estivesse na praça da Curia. Talvez Snow tivesse mandado o Pacificador Chefe deles, o Orpherius, lidar com ele. Ia ser um show interessante, muito familiar.

Não. Era muito extravagante. Ele era um Vitorioso, ia passar a mensagem errada. Ele devia estar em um lugar escondido. Ou então outra pessoa dele tinha sido levada. Cato ia virar um animal se soubesse que algum dos irmãos dele haviam sido sequer tocados.

Não iria ter mais conserto pra ele.

Obviamente, Lyme podia estar simplesmente interessada em bater um papo com ele. Conversar sobre os Jogos e sobre o porquê da sua ausência na Academia, sobre seus irmãos...

Será que ele estava sendo levado pra Capital?                         

Uma corrente de ferro invisível pressionou a cabeça de Clove, apertando tudo até que ela sentisse que estava a beira de viver a situação de sentir seu cérebro implodindo.

E Wade continuava rindo. Como sempre, ele parecia pensar que eles estavam flertando. Nem era possível que ele se divertisse tanto assim com as respostas escusas delas.

— Primeira opção?

— Não você. Você vai morrer muito antes de mim.

Por que ele era burro daquele jeito? Por que ela tinha se prestado ao papel de se relacionar com uma pessoa daquela? No segundo que ele tivesse sido mandado pros Jogos, Clove tinha que ter enterrado ele. Ela devia ter enterrado ele desde sempre, ela não devia ter ficado obcecada com a força dele quando eles viraram adolescentes, não devia ter se trancado com ele em salas de treino.  

Porra, Cato.

Quando Wade terminou com suas respostinhas atrevidas, Clove se levantou calculadamente, mantendo o olho nele, que se dedicava a guardar os arquivos nas pastas.

— Não fala pro Cato que eu dedurei ele. Você sabe. Ele é meu melhor amigo – ele disse, sorrindo, enquanto ela abria a porta.

— Não sonharia em estragar a amizade.

Clove pensava rápido. Assim que ela fechou a porta da sala e deixou Wade e seus devaneios perigosos, seus próximos passos estavam decididos. Ela atravessou a Academia até a porta e passou uns minutos lá, talvez esperando o fim do mundo, os Pacificadores que eram seus ex-colegas de Academia aparecerem e tentarem alguma coisa.

Eles não vieram; objetivamente, ela procurou Gaia, que era o alvo fácil oficial. Ela estava lá, relativamente bem, falhando numa prova de corrida e recebendo gritos de um treinador qualquer. E aí o Teo, a versão light do irmão dele, mexendo com um arco e flecha enquanto era observado por uma mulher de olhos apertados. Tudo exatamente do jeito errado que devia ser.

Clove disparou pela vila que costumava morar, mantendo suas passadas tão rápidas quanto o possível para não chamar muita atenção.

Mas era a Patrus e ela era relutantemente uma deles, então a atenção era muito natural. Ninguém falava nada, ninguém se atrevia desde que ficaram sabendo que Clove era muito boa na Academia; era, logo, uma espécie rara, porque os meninos da Patrus eram bonzinhos demais para conseguir sucesso lá. Criança nenhuma era autorizada a chegar perto dela desde seus treze anos, mas olhares eram bons medidores. Ela pensava que odiava aquele lugar. Se Clove olhasse para a direita e inclinasse um pouco a cabeça, conseguiria ver a casa onde havia morado na infância; cimento puro e mal acabado construindo paredes finas demais.

Ela não correu, mas seu passo apressado a deixou na porta de sua casa na Aldeia dos Vitoriosos em poucos minutos, apesar da neve. Fingindo não observar que seu tremor podia não ter relação unicamente com o frio, Clove se lançou para dentro de casa, muito ciente dos recados que Snow costumava deixar para suas estrelas. Eles eram sempre muito visíveis e se ela pensasse bem, eram a única opção ideal de verdade para a situação. A garota olhou por todos os lugares, mas não havia nada. Nem cheiro de sangue, nem rosas, nem bilhetes. Nem um corpo.

Nada.

Sensação nenhuma a ocorreu depois que ela terminou de examinar a casa de Cato e sair de mãos vazias. Era bom, era ruim? Ela ia ter que esperar pra ver em que estado Cato ia voltar pra casa. Se voltasse.

Ela ponderou sobre as incontáveis vezes em que ele tinha encoberto ela, sempre dizendo que ia cobrar os favores. Ele nunca tinha o feito.

O ar mais uma vez pareceu insuportavelmente pesado. Ela ficou sentada no sofá por compridos minutos, impaciente e de braços cruzados como se ele fosse aparecer a qualquer segundo. Quando se deu conta, Clove quase letargicamente decidiu se ocupar. Ela achou no topo de uma pilha a reprise dos Jogos dele.

Por que não?

Destaque no desfile, nota dez nos treinamentos, entrevista que prometeu sangue, tudo no melhor estilo garoto de escola, do jeito que a Capital gostava. No entanto, o Cato da Capital era todo estranho, todo desconfortável, retraído. Como se não suportasse a atenção dela, um pouquinho aterrorizado com a multidão psicótica tentando ter algum contato com o sacrifício antes que ele fosse executado, um pouquinho incomodado com o desespero que eles tinham para meramente tocá-lo. Ele só fazia o estritamente necessário; mesmo assim, era o perfeito gladiador deles e eles estavam encantados com o profissionalismo que ele transmitia. 

Aquele comportamento dele era uma boa dica do que viria nos próximos anos, Clove inferiu, pensando na criatura estranha em que Cato havia se transformado após sua edição dos Jogos, uma criatura que o distrito não conseguia reconhecer, uma criatura com quem a Capital flertava, mas nunca recebia nada em troca.

Ela tinha odiado aquela arena desde que tinha colocado os olhos nela, anos atrás na praça da vila principal que eles chamavam de Curia. A neve sempre tinha destruído tudo; sua casa, seu corpo hipotérmico às vezes, Cato.

O contraste entre o sangue e toda aquela brancura surreal a repugnava. Era muito limpo, muito séptico. A morte não devia parecer explícita assim. Cato foi o primeiro a executar; um garoto do 6 foi jogado para o lado como um mero obstáculo resolvido, depois que uma espada e um garoto loiro destruíram seu peito.

Mas Cato parou por um segundo e olhou de volta para o menino. Só um segundo. Clove viu mais uma vez a coisa estranha preencher seu olhar, seus olhos se transformando bem ali na frente dela, com o close que a Capital tinha dado. Ela odiava aquela cena, sua cabeça se sacudia em reprovação inconscientemente, porque eles jamais deviam ter deixado a Capital vê-los em seus piores momentos. Nenhum deles. Mesmo assim, ela não se moveu. Talvez a obsessão dela dos tempos de Academia ainda estivesse viva.

Só um segundo e foi isso. O próximo foi o menino do 9. Limpo e rápido.

A arena não permitia praticamente nenhum esconderijo, mas era enorme. Ocasionais tempestades ou meras geadas tornavam impossível ver qualquer coisa que fosse, mesmo que debaixo do seu nariz. Punhaladas nas costas foram comuns. Depois que Dandara, o outro tributo do 2, foi morta dessa forma enquanto caminhava pacificamente ao seu lado, Cato não falou mais nenhuma palavra durante seus Jogos.

Clove imaginou se teria sido pelo fato de que ele precisou de algumas horas para reencontrar o assassino e vingar sua aliada. O fato de que, talvez, ele estivesse magoado porque não exerceu seu poder suficientemente bem para evitar que um tributo qualquer ousasse não apenas chegar perto dele, mas também assassinar sua aliada na sua frente.

Ego ferido. 

Quando a próxima cena o mostrou, nariz quase congelado, mãos e lábios roxos, encarando o horizonte impossivelmente branco com a expressão mais vazia que Clove jamais havia visto, ela mudou de ideia, como sempre. Ela odiava essa cena ainda mais.

Não era ego ferido. Era mais coisa.

Clove suspirou e se ajeitou no sofá, sentindo que algum peso havia sido bruscamente despejado no fim do seu estômago por uns segundos. Talvez aquela história de revolta não fosse feita pra alguém como o Cato. Ninguém devia machucar aliados até o último segundo, era o que era ensinado. Ela talvez estivesse machucando aliados antes do necessário. Numa tentativa de se confortar, suas mãos se fecharam brevemente ao redor de seu pescoço.

Naquela noite, de volta no tempo da septuagésima segunda edição e Cato dando ares de desistência, Wade tinha largado Gaia no sofá ao lado dela e dito “ele não vai conseguir, Clove”. Porque, claro, se Cato morresse lá, Wade não iria querer ficar preso com uma criança de quatro anos e uma garota de quinze forçada a honrar a aliança que era inferida pela Academia junto com a parceria no treino. Clove também não queria, mas ela mandou Gaia ir dormir. Ela não ninava crianças, que Deus proibisse, mas ela subiu as escadas com a menina, que na época podia ser descrita como um bebê.

E ela permaneceu observando a janela do quarto de Gaia até que ela dormisse. No Distrito 2 nevava também. Cato e suas mãos roxas cruzaram sua mente de novo. Quando ela tinha uns cinco anos, naquela mesma faixa de tempo, uma avalanche tinha desconstruído sua casa uma outra vez. Seus pais eram fracos demais e ela, hipotérmica por um tempo, havia ficado com as mãos iguais às dele (Clove, em um movimento rápido, puxou o cobertor até que Gaia estivesse coberta até as orelhas).

De volta à realidade, ocorreu à Clove que Cato mesmo assim lidava com a neve muito melhor que ela.

Não havia sido sorte que tinha garantido a volta de Cato para casa. Tinha sido o desespero de um animal debandado. Enobaria e Kurt, seus mentores, o mandaram uma faca. A espada era a coisa dele e a lança era extensão do seu corpo, mas quando a última das nevascas caiu, ficou claro que era de uma arma curta que pudesse ser afundada em superfícies com um mero movimento do punho que ele precisava.

Era sua última gota de energia. Vestido com uma espécie de capa feita com a pele de um animal, presente de algum patrocinador esperançoso e encantado com seus olhos selvagens, Cato caçou por horas o que quer que se movesse, porque, claro, tinha perdido a conta com os canhões.

Havia mais três tributos. 3, 4 e 7. Em vinte e quatro horas, todos tinham sido mortos por aquela deslumbrante faca incrustada com pequenas pedras coloridas. Por causa das cores, Cato havia ficado um pouco obcecado com ela e passava horas a encarando. As cores, também, Clove acreditava, tinham forçado alguma realidade na sua mente. 

Para apimentar a gloriosa vitória, uma mutação em formato de urso apareceu. Cato, igualmente uma besta, o derrotou ao som das trombetas da vitória.

Quando a entrevista depois da vitória começou, Cato se reclinou no sofá de Caesar e, como se nunca houvesse perdido a cabeça, inventou alguma mentira sobre uma tradição do distrito dele tê-lo feito não emitir nenhuma palavra, nada além de ruídos e sons animalescos.

Só a Capital comprou aquela conversinha.

Clove, na Curia junto com todo o distrito, ficou calada. Ninguém falaria uma palavra sobre aquela tradição inventada. Até o presente dia, não o tinham feito.

Quando Clove se deitou no sofá e encarou o teto, ela tinha se convencido de que Cato não estava morto. Ela era muito boa em criar verdades confortáveis. E ele era muito bom. Em matar, em mentir, em ser um vencedor (sobrevivente?). Destruir ele ia ser difícil. Clove aceitou que não havia nada a ser feito além de esperar e ele merecia o crédito que ela o dava, então... Vergonha tinha passado ela ao se deixar ser perturbada por Wade.

De qualquer modo, o fato de que Wade tinha literalmente alimentado os irmãos de Cato e mesmo assim se prestava a ser esquisito daquele jeito enquanto falava sobre ele era o que perturbava Clove de verdade. Ela não conseguia seguir a linha de raciocínio de alguém que sentiu a necessidade de provar para ela que não havia nenhum registro de contato entre Lyme e Cato. E o que isso significava, afinal? O que isso poderia realmente falar sobre duas pessoas? Lyme não havia feito nenhuma anotação em seu arquivo, que nem nunca fazia, mas...? Era uma insinuação sobre a falta de um contato formal entre eles? O que na cabeça dele poderia indicar alguma coisa íntima? Se aquilo fosse o que Wade queria dizer, Clove sentia pena dele.

Imagina se ele soubesse que sua ceninha tinha sido bem sucedida em inquietar Clove por pura sorte?

Clove contou duas horas até abrirem a porta da casa. Teria sido um interrogatório bem rápido. No entanto, ainda que consciente disso, ela quase pulou do sofá. Ela estava pronta para gritar, porque ele era muito idiota, para correr na direção dele, porque ele merecia um empurrão, para tocar o rosto dele porque...? Clove não sabia. No último segundo, capturando seus olhos um pouco estranhados, ela pensou melhor e ficou longe.

— Pensa no dinheiro que eles gastaram construindo sua casa, bebê, a gente devia usar ela às vezes.

As mãos dele não estavam roxas, mas ainda havia flocos de neve por todo seu cabelo. Clove estava na Academia quando ele havia voltado dos Jogos. Era a tour pelo distrito, claro, mas na Academia os Vitoriosos sempre passavam algum tempo a mais para exalar poder e inspirar os alunos. Observando Cato da estação de facas, sendo seguido por uma pequena multidão e guiado por Brutus como se não tivesse passado sua vida lá, Clove pensou que ele fosse voltar a não pronunciar uma palavra agora que as cerimônias com a Capital haviam acabado. No entanto, quando ele encontrou seu olhar, ele murmurou um “oi”.

Clove não gostava muito de enrolar. Não com ele, de qualquer modo:

— Wade te viu com a Lyme.

Cato sorriu um pouco enquanto se deitava no sofá e fechava os olhos. Havia uma aura estranha ao redor dele, uma que Clove reconheceu muito rápido; todos os pedreiros do distrito possuíam ela. No fim de cada dia, a Patrus praticamente exalava essa aura. Ele estava orgulhoso, como se tivesse acabado de cumprir o dever mais importante do mundo.

Clove, contendo sua irritação, cautelosamente se sentou perto dele.

— Ele viu o quê, exatamente? – ele perguntou, quando a notou.

— Eu tenho cara de quem ia perder meu tempo questionando o Wade?

— Bom. Mas ele com certeza te contaria tudo que você quisesse saber.

— Contanto que eu desse pra ele.

— Não deixa de ser verdade – ele disse despreocupadamente, dando de ombros. – Ele me viu com ela e saiu correndo pra te contar esperando o quê?

— Ele olhou seu arquivo e ficou dizendo que não tinha nenhum relatório da Lyme e mesmo assim vocês estavam andando de braços dados e alguma merda assim – ela respondeu, cruzando os braços para a figura excessivamente relaxada de Cato. – Essa informação vale alguma coisa? O que ele quis dizer?

— Eu não sei, mas isso aconteceu. Ela...

Aí as lembranças do dia atingiram Clove. Morte e caos e aquele vazio sufocante. O lugar de Cato não era no meio daquelas coisas. Ela tinha que levar as coisas a sério, porque ele que não ia levar. Ele nem conseguia. Ela segurou seu braço, o interrompendo:

— Não é a melhor ideia conversar aqui.

Cato se curvou mais no sofá de modo a ver Clove melhor e deixar ela ver sua careta de estranhamento. Ele a olhava como se ela fosse uma lunática.

— Ok, a gente não conversa aqui. Você nem sabe o que eu ia falar.

— Não fala. É sério. A gente não vai conversar aqui mais.

Silêncio.

Clove não costumava ser preocupada assim. Mas ele não costumava estar envolvido numa coisa verdadeiramente grande e errada que nem aquela. Ainda mais agora, que essa coisa grande e errada assumia um contorno claro, virava verdade na frente dos olhos deles. De sobrancelhas franzidas, Cato apertou os olhos para a garota. Impassível ela estava, impassível ela continuou. Movido por um desejo peculiar, Cato decidiu que iria tirar aquela impassividade do rosto dela de qualquer forma. Ele estava pronto para surpreender Clove com todas suas novidades. Wade e suas insinuações vagas podiam esperar.

Cato deu de ombros.

— É melhor a gente dar um passeio, então. Tem muita coisa pra conversar à respeito, bebê.


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Notas finais do capítulo

Ow, essa coisa da arena do Cato e dos Jogos dele é 100% inspirada em Vikings, porque o cenário pareceu muito apropriado pro ator que interpretou ele nos filmes e que aparece aqui na capa e etc (uma pessoa que eu Não Gosto MuitoTM) E É ISTOOOOOOO. Eu tenho muita pouca coisa pra falar, em tese, então assim...... Espero que vocês tenham gostado e que voltem pro próximo porque ele é pesadão mas também muito babadeiro e porque Cato e Clove são TUDO. Obrigada por ler, que sua semana seja muito incrível e beijão ♥



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