Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 4
Who’s counting? (one. two. three.)


Notas iniciais do capítulo

Oooi!!! Voltei uma hora dessa com outro capítulozinho pois DETERMINADA a postar essa histórias nos dias certos. Esse capítulo aqui é um pouco tudo e um pouco etc, pois é o último antes do enredo aparecer mesmo e o último que retrata um pouquinho das minhas tentativas de preencher CERTOS furos no plot. Eu sou 100% VICIADA no Distrito 2, de forma que volto para abordar ele aqui também (estudo de caso vibes) e da relação do Cato com ele e dele com a Clove........... O título foi porque eu quis mesmo (e o quê??? nada mais importa se não for minha opinião) e foi tirado de So It Goes, da reputada Taylor Swift.
Ah, tudo acontece naquele mesmo dia do último capítulo.
*Trigger Warning* O capítulo contem menções à prostituição e violência.



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Quando Clove estava na arena e Cato foi obrigado a ser seu mentor, ele jurou que nunca mais ia olhar na cara dela se ela chegasse a sair viva. Como seus treinadores sempre tinham previsto, ela era o tipo de tributo que só podia conseguir vitórias incrivelmente gloriosas ou mortes que devastavam o distrito por anos.

Com Clove, tinha sido a primeira opção. Mas a vitória dela, para Cato, não tinha tido nada a ver com glória. Tinha tido a ver com atitudes extremas sendo tomadas para garantir patrocínio e dez dias sem dormir mais que duas horas por noite. Mas ele sabia que seria assim e teria sido assim com quaisquer outros tributos que por ventura não tivessem sido seus inimigos no distrito. Ele era leal à sua casa, afinal.

De qualquer forma, Clove ainda tinha dezesseis anos quando foi escolhida pra se voluntariar. Ela era mais que boa, ela era perfeita, e não havia necessidade de esperar mais; a Academia queria apostar grande, mandar sua melhor jogadora. Ele ainda estava ajeitando os detalhes naquela realidade nova e encaixando tudo o melhor que podia para que seus problemas com a raiva não atrapalhassem muito quando descobriu. Ele não se importava muito, mas quando encontrou Brutus, que tinha o acompanhado em alguns níveis, ele disse:

— Eu estou te avisando: não escolhe a Kentwell para se voluntariar.

— Você não está pensando direito. A Kentwell é boa, ela precisa ir lá!  Ela é a nossa melhor chance de conseguir o bicampeonato, menino.

Ela era a melhor chance mesmo, mas Cato estava pensando direitinho quando entrou na sua recém designada sala de treino privada e tentou mais uma vez convencer Clove a desistir dessa história de Jogos. E se ele não tivesse que ser o mentor dela, Cato com certeza teria parado de verdade de olhar na cara dela depois daquele dia.

Ele não chegou a poder se dar a esse luxo, no entanto, porque toda noite dava um jeito de se esgueirar pro quarto dela. Cato passou aquela semana inteira recitando tudo que sabia sobre os Jogos, torcendo para que ela ao menos tentasse ouvi-lo. Afinal, ela não podia manchar o nome dele morrendo de um jeito vergonhoso.

Quando chegaram às vias de fato, contudo, Cato nem precisava ter se preocupado. Ela tinha sido feita para aquilo. Seus dias na Capital tinham sido gloriosos. Ele achou o ângulo perfeito para ela. Que abordagem funcionava melhor do que uma versão caricata da própria personalidade dela? Clove foi vestida como a adolescente mimada que poderia ter sido e era um rio de arrogância, educação perfeita e uma sinceridade perturbadora. Ela conseguiu com que Caesar ficasse na palma da sua mão e tudo que a Capital queria ouvir era sua voz sedosa, macia, falando sobre promessas de morte e despejando verdades dolorosas sobre todo mundo. Eles esconderam o fato de que Clove tinha sido deserdada, porque ela com certeza era uma filhinha do papai para a Capital, a boneca perfeita com seus traços aristocráticos e aquela ânsia por atormentar qualquer um.

Como uma provocação, uma piada interna que não agradava Cato, ela costumava usar um colar muito familiar o tempo inteiro enquanto estava lá.

A arena dela foi dividida entre uma floresta de árvores espinhentas e uma cidade industrial abandonada. Era tão ruim quanto qualquer outra. Ela estava aliada com o 1 e o 4, além de Jano, o outro menino do distrito que tinha sido mandado com ela. Obviamente, ela era a líder e o pessoal da Capital estava salivando com sua perfeição, com a eficácia com que ela sujava suas mãos com sangue e fornecia o entretenimento ideal o tempo todo. Clove era a princesa deles agora e Cato nunca conseguia dormir porque a via o tempo todo atravessando o estômago do garoto de doze anos do Distrito 7 no Banho de Sangue.

Mas ele imaginava que ia precisar parar de ficar remoendo aquelas memórias pra sempre. Cato sempre tinha sido muito bom em enterrar qualquer coisa que não lhe fosse conveniente – um pouco literalmente. Ele enterrou o nome de todos os tributos que tinha assassinado e eles quase nunca saíam das covas. Ele enterrou o fato de que se importava um pouquinho mais com sua parceira de treino do que deveria até ter atingido seu objetivo e ser autorizado a desenterrar (mas só mais ou menos). Ele enterrou tudo que seu pai fazia com ele até o dia que se cansou. E nisso ele foi perfeitamente bem sucedido.

Cato agora só precisava enterrar o ódio que sentia da Academia. Não havia sido ela que tinha destruído tudo. De qualquer forma, os Jogos ainda existiriam. É claro que ele não teria se tornado um assassino aos nove anos e não teria todas aquelas marcas nas costas por conta de “desacatos” se ela não existisse, mas. O que seria dele se não tivesse sido treinado?

Ele precisava engolir aquela ingratidão dele. Ele costumava ser o garoto de ouro deles, o que era aquilo agora? Cato colocou um casaco e decidiu visitar a Academia. Para manter a memória de todo mundo fresca sobre ele e sua gloriosa existência.

Não. Ele não podia mais ser irônico sobre isso, agora.

Era a Capital, era a Capital que merecia seu ódio.

No entanto, esse lema era difícil de ser mantido. Quando Cato decidiu tomar o atalho pela Patrus, aquela raiva persistente e inquieta que ele costumava sentir o tempo todo tomou seus sentidos mais uma vez. Ele observou os pedreiros enormes, monstruosos, subindo e descendo a montanha, os mais pobres seguindo para a que era o centro de operações da Capital.

Ele não podia acreditar neles.

Os pedreiros, aqueles que estabeleciam suas casas ao redor das montanhas, nunca poderiam cair naquela conversa da Capital sobre honra. Como eles podiam, quando os terrenos instáveis e violentos se despejavam dia após dia nas suas costas, quando eles viam o que a Capital fazia com os que morriam dentro de suas montanhas pedreiras, quando eles examinavam as costas e as mentes dos seus filhos que eram dispensados da Academia e encontravam mais hematomas e estrago do que eram capazes de sequer conceber? Eles viam que não tinha honra nenhuma ali. Porque eles sabiam o que honra de verdade significava.

E mesmo assim, eram eles que gritavam mais alto quando os Vitoriosos voltavam e passeavam pelo distrito. Eles se atreviam a ficar orgulhosos.

Aquelas montanhas não tinham sido nomeadas daquele jeito à toa. Elas eram violentas, imponentes, cruéis, cada uma delas. O Gladiador, a Nêmeses, o Voivode e todas as outras. Elas esmagavam quem quer que não tivesse a força de suportá-las, a persistência de reconstruir tudo depois de cada avalanche. Elas eram cruéis, mas aparentemente mais dignas que a que era destinada aos assuntos privados da Capital. Ela era a única que não havia sido batizada pelo povo do distrito. E aquela recusa deles de sequer nomear a montanha mais alta, a que era o lembrete constante do poder da Capital, o lugar onde as coisas ruins de verdade aconteciam, não era nenhuma coincidência, muito menos um ato sem significado.   

Então como eles se atreviam?                                                           

Cato observou os trabalhadores de olhos opacos e mãos calejadas, um ou outro aleijado por conta de algum deslizamento, com uma frieza que podia superar a das montanhas que lá de cima julgavam e oprimiam os moradores.

Ele sentiu vontade de quebrar a estátua do busto do Snow na praça da vila e jogar os destroços nos moradores de lá, todos o olhando com uma admiração que o enfurecia.

Cato podia tentar se controlar o quanto quisesse, mas nada apagava a raiva que ele sentia do seu distrito.

Ele parecia uma força de outro mundo quando chegou na Academia. Cato e a neve formavam uma combinação duvidosa. Os alunos que o viram primeiro pararam de se mexer, absorvendo sua figura imponente, calada, sumida dali desde sua vitória. Ele era uma espécie de lenda lá. A história que essa lenda contava não era das mais doces. Era cheia de delírios, sangue, traições. Mas era o que embalava as crianças mais ricas na hora de dormir.

O garoto continuou lá, sem retribuir os olhares admirados (amedrontados?) dos alunos e dos outros treinadores. Ele observou o salão cinzento, os ringues e os tapetes de treino; ouviu o barulho das lâminas se chocando, dos alvos sendo atingidos, aquele som nauseante de punho contra carne e osso se partindo; ele sentiu o cheiro de determinação, mas, acima de tudo, de desespero.

Cato respirou fundo e tirou o casaco. Ali tinha sido o território dele. Ele ia tomá-lo de volta.

Ele avançou pelo salão, elegendo uma memória menos pior pra cada estação. Na das espadas, ele viu seu grupo de supostos amigos barulhentos o saudando depois de mais uma sessão de prática perfeita. Na das lanças, Bac todo humilhado, perdendo pra ele depois de uma aposta sussurrada no vestiário. Na das facas...

— Oi, aberração.

Clove, obviamente.

Ali ela parecia exatamente a mesma de uns quatro anos atrás. O mesmo rubor nas bochechas, o mesmo rabo de cavalo apertado, o mesmo brilho nos olhos que gritavam que ela estava se divertindo mais do que devia depois de quebrar os dedos de alguém. Mas não era bem isso. Ela não sorria desse tanto, não que nem antes. Ela até parecia muito sóbria quando se juntou a ele para observar uma luta no ringue de corpo a corpo. Os garotos hesitaram um pouco com sua presença, mas continuaram.

— Oi, bebê.

— Entrada triunfal, a sua.

Ele riu. Só um pouco. Não muito abertamente. Clove ainda estava encarando, sobrancelhas franzidas e tudo.

— O que você está fazendo aqui?

— Fazendo uma visita.

Cato escolheu ignorar o olhar persistente de Clove, tentando o forçar a revelar o que quer que fosse. Ela sempre queria saber demais. De braços cruzados, ele observou a luta se desenrolar. O menino moreno tinha vantagem, mas só porque o padrão de comparação era fraco. Ele não tinha nada de especial. Ele seria muito ruim se colocado contra ele.

Tudo ainda era um pouco fascinante – o desespero, a força quase animal, o esforço que os competidores faziam para meramente sentir que sabiam fazer alguma coisa –, mas Clove ficava entediada rápido.

— Ok, então. Como você pode ver, tem muito trabalho a ser feito por aqui. Então continua sua visita. Você sabe onde me achar.

— Ok, então.

Clove saiu sustentando um sorrisinho leve, sacudindo a cabeça. Cato fingiu que não viu.

Quando os garotos tinham terminado, ele bateu palmas vagarosamente. Ironicamente.

— Senhor – eles emitiram, abaixando a cabeça levemente. Era assim que funcionava desde sempre, todo mundo tinha que abaixar a cabeça para um Vitorioso ou até mesmo para um treinador. Ele estava acostumado a receber respeito, também, mesmo antes de tudo. Mas aquilo ali era diferente. Cato sentiu vontade de rir vendo aqueles garotos no máximo um ou dois anos mais novos que ele se comportando daquela forma ao seu redor. Seria um riso motivado, claro, pelo agrado que ele estava sentindo. Cato sempre tinha gostado muito disso, de dominar, de mandar em tudo e todos ao seu redor. Não era ruim de todo, a visão. Imagina o tanto de poder que ele poderia exercer ali?

Ainda havia raiva borbulhando dentro dele, no entanto.

— Aquilo foi uma merda. Isso aí é coisa que gente de dez anos faz melhor. Não era pra vocês estarem aqui se só conseguem fazer essa porra aí.   

Eles assentiram imediatamente. Porque era como todo mundo no 2 era criado. Existia uma quantidade certa de ameaça, lembretes do jogo de poder, que era necessária para criar um assassino ou um Pacificador (e as opções não se excluíam mutuamente).

Os garotos abaixaram os rostos até que seus queixos estivessem encostados em seus peitos.

É a Capital, só a Capital.

— Primeiro de tudo, se você acha que é mais rápido, você ataca primeiro.

Cato ficou lá sendo observado com uma admiração impossível, com adoração, enquanto repassava os conhecimentos que tinha naturalmente aprendido. Não tinha sido difícil pra ele, que tinha um talento, mas ele ainda tinha toda aquela teoria insuportável marcada na sua cabeça desde sempre, então por que não?   

Aqueles meninos iriam marcar suas palavras pra sempre, como ele tinha marcado as preciosas palavras dos Vitoriosos sobre ele, quando tinha sido seu tempo. Zenobia o ensinou a ter velocidade. Lyme sabia mais sobre calcular melhor seus movimentos (isso ele tinha aprendido reassistindo seus Jogos; Lyme não era muito fã da Academia). Brutus pregava sobre força concentrada nos lugares certos. Wade... a dar um bom show pra Capital.  

Todo mundo – todos os Vitoriosos – fazia comentários rápidos sobre os alunos quando eventualmente passeava pela Academia. No entanto, depois de um certo nível, se você valesse muito a pena e passasse muito tempo no topo da classificação, talvez um deles se interessasse em te acompanhar com mais frequência, informalmente e de forma paralela com o seu treinador, que lhe era designado nas mesmas condições – as de sucesso absoluto.

Clove tinha pego Wade, que tinha ganhado os Jogos não havia muito tempo e tinha ficado encantado com ela e ele tinha pego o Brutus, que era o coordenador da Academia, porque era obcecado com os Jogos de uma forma que agora inquietava Cato um pouco. Uma coisa era ele, sendo iludido aos dezesseis. Outra era Brutus aos cinquenta, ainda rememorando saudosamente sua arena, ainda se envolvendo muito com os alunos com potencial, ainda animado com cada edição dos Jogos.

— Eu já consertei você duas vezes, garoto, qual é a porra do seu problema?

Cato ainda estava prestando atenção na interação turbulenta entre Clove e um aluno de uns catorze anos, cujo único problema era o medo que a presença intimidante dela exercia, quando alguém cruzou o braço no seu.

— Oi, Cato. Me acompanha num passeio.

Ele estava todo pronto para passar um aviso para o louco que tinha se atrevido a encostar nele quando reparou quem era.

Era Lyme.

Lyme. Lyme, que nem existia de verdade para a Academia. Lyme, que era rígida demais para tolerar cordialidades até com os outros Vitoriosos. Lyme, que tinha votado para que ele não fosse mandado para os Jogos anos atrás e que tinha aparecido no enterro de sua mãe.

O cérebro dele ficou em branco por uns segundos. Cato não sentia muita coisa, de verdade, mas àquele tipo de vazio súbito na sua mente ele não estava acostumado.

Coisa boa não podia ser. Quando ele era um aluno da Academia, sempre ia rindo quando um Vitorioso o chamava para uma “conversa” porque sabia que alguma das suas contravenções bem planejadas tinha sido descoberta. Era simples assim. Uma briguinha à noite, um nariz quebrado, alguém dedurando uma visita ao dormitório das meninas, o uso indevido de uma sala abandonada.

Ele ia ganhar umas cicatrizes novas. Geralmente três, cada uma em uma parte diferente das suas costas para que ele não fosse muito danificado, porque afinal eles tinham planos de exibi-lo pra Capital. O que restava além de simplesmente aceitar seu destino? Ele sempre devia alguma coisa, mesmo.

O destino de Cato, dessa vez, era muito menos claro. O que Lyme, em nome de Deus, ia querer falar com ele, ainda por cima fora da Academia? 

Mas que opção ele tinha além de acompanhá-la no passeio? Ele se concentrou em observá-la cautelosamente – ela era quase tão alta quanto ele – enquanto ela os guiava para fora da Academia, adentrando a beira da floresta de pinheiros que a escondia e que era tão familiar a ele. Alguma coisa parecida com raiva exalava dos poros dela.

Bruscamente, então, ela se soltou:

— Você seguiu Indigo Weaver.

Cato se limitou a levantar as sobrancelhas e piscar um pouco, sem fazer qualquer conexão entre as palavras dela e seus significados.

— Isso é uma pergunta?

— É uma afirmação. Você seguiu ele. Estou te perguntando o porquê. 

Lyme era muito intensa. E ele respeitava ela demais. Mas não confiava nela. Que tipo de burrice era confiar em alguém, de qualquer modo? Ele sabia seguir ordens, mas não confiar. Por que ela sabia disso? O que ela queria arrancando um porquê dele?

Ele cruzou os braços e se recostou numa árvore.

— Como você sabe disso?

— Você é uma merda em espionagem.

Na cabeça dele, a resposta foi válida. Cato não estava sequer sentindo alguma coisa. Se suas conversinhas sobre derrubar a Capital tinham sido descobertas, ele pensou que não poderia se importar menos.

Ele ficou lá, sustentando o olhar da Vitoriosa, passeando em sua própria mente vazia como se mal existisse no mundo real.

— Ok. Então por que você quer saber?

— Por que você seguiu o Indigo?

— Por que você quer saber?

Lyme rosnou bem baixinho e fechou os olhos e os punhos. Não era só ele que tinha problemas com raiva.

Ela sempre tinha parecido muito exclusa de toda aquela lógica da Capital. Ela quase nunca era mentora, quase nunca era vista no distrito, quase nunca aparecia em lugar nenhum. Pensar nela envolvida com os joguinhos do Snow exigia muita imaginação.

— Seja lá no que você esteja se metendo, garoto, você precisa entender a magnitude disso antes. Você acabou de voltar dos Jogos, morrer ia ser um desperdício. Então meu conselho pra você é parar com essas gracinhas com o Snow. Não gasta o tempo dele reportando dois velhos bêbados conversando num bar esquisito. Você vai acabar sendo demitido.  

Com o Snow. Não com a escória do 12 ou com o louco do 8. Com o Snow.

Eles estavam no lugar que há tempo havia sido definido como o espaço oficial das transgressões (porque todo lugar precisa de um, claro). Não era a Montanha da Capital, não era um dos galpões esquisito que o Snow arranjava pras suas conversas.

Ele decidiu arriscar, então. O que ele tinha pra perder?

Cato botou as engrenagens do seu cérebro para funcionar e pensou em um jeito de falar algo significativo para Lyme sem se comprometer muito. Mas Clove sempre tinha dito que as engrenagens do cérebro dele eram um pouco enferrujadas. Então ele se ouviu cuspir:

— Eu ouvi sobre uns levantes no 8.

— E o Indigo é de lá? – Lyme falou, à guisa de quem completa uma fala, tentando seguir seu pensamento.

— Sim – Cato respondeu, dando de ombros.

— Quem na Capital foi burro o bastante pra te contratar pra um trabalho de espionagem?

— Ninguém.

— Garoto, eu não estou no clima para...

Eu ouvi sobre uns levantes no 8 – ele repetiu, esperando a lendária inteligência de Lyme entrar em ação. Esperando que tudo desandasse de uma vez ou se encaminhasse pra fora daquele impasse ridículo.

Se Lyme fosse colega do Snow, ia ser melhor que ele simplesmente aparecesse e passasse a mensagem dele de uma vez. Se ela fosse chegada nessa coisa de rebelião, ele não podia esperar pra que ela começasse logo.

Cato, na verdade, era muito chegado naquela coisa chamada apatia. Talvez patologicamente.

E Lyme com certeza tinha pego as implicações na sua fala. No entanto, a Vitoriosa estava tendo problemas meramente em acreditar nelas.

— Você...

— Eu. Eu encontrei o Chaff e a gente comentou sobre o 11 também. Eu achei interessante.

Não podia ficar mais explicado. Estava quase certo que Lyme só saberia da sua coisa com o Indigo se estivesse envolvida de alguma forma. Cato ergueu as sobrancelhas, esperando.

Lyme fechou os olhos e sacudiu a cabeça em negação.

— Que Deus me ajude se...

Cato decidiu pegar a deixa. Como se para se justificar para aquela Vitoriosa que ele quase idolatrava, de novo com doze anos e uma adoração doentia por qualquer Vitorioso, ele começou a falar:

— Aqueles 12 começaram alguma coisa, todo mundo viu. Eu queria ver... Eu e a Clove, na verdade, a gente queria ver até onde vai.

Lyme infelizmente não era estranha àquela dinâmica peculiar. Ela tapou o rosto com a mão para evitar olhá-lo, esperando com isso controlar a raiva, e abaixou mais a voz, cerrando os dentes. 

— Então Kentwell teve a brilhante ideia de te mandar seguir o Indigo?

— Não foi ideia da Clove. Ele estava lá, eu sei sobre o que está acontecendo, eu fiquei curioso para saber o porquê.

— Ok. E o que você descobriu? – o tom dela era debochado, como se ela soubesse perfeitamente bem o que ele havia descoberto e perguntasse apenas com fins de testá-lo. Como quando alguém te desafia a falar alguma coisa incriminadoramente idiota sabendo que você não vai o fazer.

Cato o fez.

— Nada. Eu vi ele e o Haymitch conversando.

Lyme ficou parada respirando pesadamente, tentada a dar um tapa na cara do garoto na sua frente. Ela odiava burrice, odiava ingenuidade. Como eles ainda eram assim depois de tudo? Por que as pessoas do distrito dela eram arrogantes assim, presunçosas assim? Lyme não entendia, não acreditava.

Cato ficou parado, dando de ombros, sem entender nada sobre a magnitude que ela havia falado sobre, achando que o mundo se curvaria à sua mera força bruta. Ela cansou:

— Não segue mais ninguém ou você está morto porque eu não vou mais me mover para salvar sua carinha rica e imbecil. E não se atreva a falar nada sobre isso. Não é a Capital que produz os Avoxes, você sabe – isso era Lyme o ameaçando em vários níveis. Mas Cato tinha acabado de descobrir mais uma coisa interessante (Cato 3 x Clove 2) e estava muito mais confiante quando delicadamente, quase com medo de tocar nela, com todo o respeito, segurou o braço da Vitoriosa que já se afastava.  

— Lyme. A senhora não está entendendo por que eu segui eles. Eu quero...

— Não termina essa porra de frase.  

— Eu quero participar dessa coisa – Cato disparou.

Diferente do que ele havia pensado, Lyme não decidiu sentar a mão na sua cara ou gritar com ele por ser burro e leviano e tudo o mais. Ela parou exatamente de frente para ele e sustentou seu olhar como se ele nem tivesse acabado de desobedecer a uma espécie de ordem dela.

— Por quê? – foi o que ela disse depois de vários minutos, muito séria, impassível como geralmente era.

Por quê? Cato não sabia o porquê.

— Porque sim.

— É porque você está entediado? – Lyme, mais uma vez, infelizmente, era muito familiar às famosas explicações que Clove dava para justificar seus comportamentos mais absurdos. Agora, de qualquer forma, Panem toda era.

Cato não sabia muito bem como elaborar sentenças sofisticadas, impactantes. Mas ele sabia uma coisa ou duas sobre seus motivos. Não tinha nada a ver com tédio. Tinha a ver com ódio.

— Não, é porque eu odeio tudo isso, eu odeio a Capital, eu odeio tudo. Eles mentem, traem, estragam e eu odeio essa porra. Eu quero fazer qualquer coisa que destrua o Snow.

A Vitoriosa continuou a observá-lo calculadamente, como se refletisse sobre a veracidade dos seus motivos e a validade deles, tentando lê-lo. Felizmente, Cato não era um livro complicado. Todo o distrito tinha visto ele antes dos Jogos, ele na arena e ele depois, aparecendo agora pela primeira vez na Academia, seu habitat natural, depois de anos. E Lyme infelizmente havia visto tudo de muito perto.  

E ódio... Cato sabia como odiar.

Ela assentiu.

Os olhos do garoto se arregalaram por um segundo, e uma Lyme relutante viu, porque ele era só um garoto – do Distrito 2, que oscilava muito bruscamente entre saber de mais e saber de menos – e estava verdadeiramente atônito com o que tinha acabado de acontecer.

Então o ocorreu: e a Clove?

Ela aparentemente teve o mesmo pensamento. Dois pares de olhos azuis trocaram um olhar preocupado, quase em sintonia. Cato coçou o nariz, desviando o olhar.

— E a sua parceira? De treino — ela completou depois de uns segundos constrangedores em que eles se deram conta das implicações em sua muito inapropriada colocação. – Você tem alguma ideia sobre uma possível posição da Kentwell, já que ela também quer “ver até onde isso vai”?

Cato notou então que precisou pensar antes de falar sobre ela. Ele tinha uma ideia muito boa. Ainda assim, ele estava hesitando ao fornecer a posição de Clove numa rebelião que ia destruir muitas coisas. Essa era mais uma surpresa.

Pra quê que eu fui colocar o nome da Clove nisso?

— Hadley.

— Ela foi arranjada com um cantor. Vendida. Pelo Snow, que aparentemente é muito chegado nela. Ele quer abafar a coisa do 12 usando ela e o namorado dela. Ela deve ver muito ele nesses tempos, você sabe. Muitas reuniões pra ver como tudo está indo entre eles.

De volta nos dias de treino, nas vezes que Lyme zanzava contrariada por entre os alunos destaques dos níveis elevados, Clove sempre tinha sido quem aparecia com as ideias mais inteligentes, mas mais perigosas. Quase suicidas.

Ela não tinha mudado, aparentemente. Lyme ergueu as sobrancelhas pra ele mais uma vez, captando o subtendido. Admirada e horrorizada (um pouco agradada, também) com essa ideia deles. O que uma arena não fazia com uma pessoa? O que uma vida como Vitorioso não fazia?

— Ela tem noção de que ele não gosta tanto assim de nenhum Vitorioso? De ninguém, eu me atrevo.

— Deve ter – ele deu de ombros. – Eu não sei.

— A Clove não tem noção nenhuma — a Vitoriosa estabeleceu, com ar de quem coloca os pingos nos is.

 — Talvez. Mas ela quer.

Sem entender bem aonde ele queria chegar – ou não concordando com esse lugar estabelecido –, Lyme deu de ombros e sacudiu a cabeça. Franziu as sobrancelhas.

— E é isso? Porque ela quer, mesmo sem entender o que estaria sendo pedido dela, ela vai?

— É ela quem sabe, Lyme. Eu só estou comunicando o que ela me disse – havia uma defensiva muito evidente na sua frase.

Ela desconfiou de que fosse porque ela estava supondo algum laço entre ele e Clove. Mas, afinal, eles não eram o que com ressalvas formava a definição de amigos?

A Academia sabe como formar umas pessoas esquisitas.

Lyme ficou parada mais uns segundos, o observando com atenção.

— Ela vai fazer isso, então?

— Ela já está fazendo.

Claro que aquilo tudo era perigoso. Havia um grande espaço entre a realidade e como Cato compreendia ela. Aparentemente, ele não conseguia entender bem a proporção das coisas, a complexidade de se envolver numa coisa daquela. Ele estava sendo movido por ódio, puro e cego. E aquilo era perigoso. Ia precisar só de um gatilho para que tudo fosse por água abaixo. Ele nunca poderia deixar de ser considerado uma ameaça.

E aí ainda tinha Clove. Sua mente, sua proximidade com a Capital, sua mera existência; tudo nela significada prejuízo, prenúncio de que alguma coisa ia ser destruída, ainda mais se ela estivesse trabalhando com o Cato (de novo). O ideal era que ela sequer desconfiasse da coisa toda, mas isso era exigir muita burrice dela. Pedir que ela não tomasse partido também parecia loucura, ela era do 2 que nem eles. Ela também daria uma boa agente dupla.

Contudo, Lyme se encontrou presa em uma armadilha. O que mais se havia a fazer? Deixar os dois soltos, conspirando sozinhos, sabendo muita coisa, de um lado pro outro murmurando sobre destruir a Capital? Eles eram do distrito dela, eles tinham que ter alguma rigidez, alguma disciplina restante; no fim das contas, era só mais uma responsabilidade para assumir.

— Ok – ela assentiu mais uma vez, suas feições novamente duras como se ela jamais fosse capaz de expressar alguma emoção. – Os dois vão ser mortos imediatamente se houver traição, se considere avisado.

— Ok.

— Eu espero que você entenda que vai estar lutando contra seu próprio povo. O Distrito 2 não vai trair a Capital com facilidade.

— Eu entendo, senhora.

Como se aquela conversa não tivesse sido nada além de sua mente brincando com ele, Lyme se afastou, tomando o mesmo atalho pela Patrus que ele tinha pego mais cedo, com uma casualidade impressionante, cumprimentando solenemente algumas pessoas.

E Cato ficou sozinho na floresta de pinheiros, refletindo sobre a vez que ele e Clove tinham quebrado os dois braços de um menino que tinha avançado demais com ela no ringue (e fora dele) exatamente ali; pensando que, apesar do aparente sucesso na sua empreitada mais recente, às vezes ser morto imediatamente não iria ser tão ruim assim.


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Notas finais do capítulo

Creio que É Isto. Não tem muita coisa pra falar porque esse capítulo é relativamente leve (é?? não sei mais pois doida e já metida com essa história há muito tempo) e sem nada Muito Assim, diferente de todos os outros. Penso que falou mais do Cato mesmo, né, este personagem que eu jamais saberei o que acho DE VERDADE, mas que falo bastante a respeito. Espero que vocês tenham gostado e BEIJÃO!!! ♥



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