Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 29
I’ll be the blood if you’ll be the bones.


Notas iniciais do capítulo

FAMÍLIAAAA!! Terminando esta braba sem falta!! Gente, não tenho nem o que dizer kkkkkkkk o título vem da musiquinha Wolves Without Teeth de of monster and men acredito. E assim.. era pra ter um epilogozinho depois desse mas não sei se vai rolar e caso não role considerem este o final!!! Boa leitura!



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A Capital nunca iria cair, era o que Cato pensava na maioria do tempo que passava acordado.

Illeana tinha completado um mês naquela semana e ele tinha acabado de invadir a casa de um Pacificador, uma casa que se parecia muito com a sua (sua casa, à propósito, era a casa da frente). Então Cato ficou parado na sala da casa por alguns minutos, tempo o bastante para seu esquadrão se dispersar e ir tratar de outros negócios na Vila.

Ele só precisava de alguns segundos antes de segui-los, foi o que ele tinha dito. Contudo, Cato se sentou no sofá macio e deixou suas mãos sobre os joelhos como se não quisesse mais nenhuma evidência de sua presença ali. Fazia muito tempo que ele não entrava em uma daquelas casas com as paredes brancas e as escadas com carpete. Ele já tinha adentrado todas da sua rua, contudo, em visitas sociais esquisitas com sua família.

Aquela dali pertencia ao Pacificador que chefiava a Patrus, um homem chamado Nicandro. Ele costumava castigar uma criança da Patrus a cada duas semanas, para dar o exemplo. Ele tinha uma esposa e um avô adoentado.

Cato permaneceu sentado por longos minutos, sua mente perfeitamente vazia uma vez que terminou de repassar as informações sobre sua última execução. Ele só precisava respirar por alguns segundos, observar o que poderia perfeitamente ser a sua casa. Só o que faltava era aquele quadro gigante que encimava a lareira; ele, Teo, Gaia e seus pais. Seu pai e uma gravata muito apertada, como se ela garantisse que seus demônios não escapariam bem ali no momento da fotografia e ele acabasse quebrando o nariz de alguém por respirar muito alto. Sua mãe e os olhos do Teo, com os braços ao redor de suas três crianças como se pudesse protegê-las do monstro ao lado.

Ela não podia, contudo. Ninguém podia. Outro monstro tinha sido criado. Ele tinha acabado de matar um dos amigos do seu pai e ter uma filha.

— A gente terminou – uma voz anunciou, do nada. Cato ouviu passos e então a figura de Teo adentrando a sala hesitantemente.  – A gente terminou aqui. O Orpherius vai pra Curia hoje à noite pra você e a Clove... O 13 vem pra gravar.

— E cadê os outros? – ele se forçou a perguntar.

— Mortos. Um aerodeslizador saiu mais cedo, também, então alguns fugiram.

Ele acenou com a cabeça, passando as mãos pelos cabelos. Sua vila tinha acabado de ser conquistada. Eles tinham acabado de derrubar a Capital no 2. E pareceu estranho, pareceu uma mentira. Aquelas casas ainda eram muito grandes e muito brancas e aquelas paredes ainda pareciam gritar que sangue estava sendo derramado ali.

A Capital não ia cair. Seu espírito iria permanecer ali, bem naquela vila, bem naquelas casas.

E Teo continuava ali, o encarando do canto da sala.

O silêncio com seu irmão mais novo era insuportável. Na mente de Cato, ele invocava uma confissão, uma redenção, alguma coisa. Aquilo pressionava a cabeça de Cato, fazia ele querer gritar até sua garganta explodir. Ele se perguntava o que Teo tanto falava por trás daqueles olhos esquisitos dele. Será que ele o culpava, será que ele dizia “eu te disse”, será que ele...

— Ele nunca encostou em você – Cato se ouviu cuspir. Teo teve a audácia de parecer surpreso com suas palavras, o garoto mimado que era.

— O quê? – ele perguntou, no mesmo tom muito mais controlado que o dele.

— Eu fiz o que deu e ele nunca encostou em você nem na Gaia. É tudo uma merda, mesmo, mas essa porra não é só minha culpa – Cato rosnou, sentindo alguma coisa esquisita acontecer com sua garganta. – Quando a mamãe morreu, eu larguei você com a Gaia porque eu achei que ia ser melhor. Você é melhor nessas coisas que eu e eu não queria... vocês no meio daquela merda com a Capital.

Teo continuou calado. Cato não lidava bem com nada daquilo, com o silêncio, com o não falar, com todos aqueles olhares. Enquanto eles cresciam, uma briga sempre iria eclodir no meio do quintal porque Teo encarava demais e Cato ficava nervoso. Ele era barulhento, nunca tinha sabido lidar com seu tamanho e era bem menos inteligente que Teo, que sempre pegava todo mundo de surpresa, cheio de jeito e boas maneiras.

Naqueles dias, então, Cato ainda sentia vontade de fazer o que fazia quando tinha nove anos – descer o punho no estômago de Teo só porque ele ficava encarando.

— Eu sei que você fez o que deu – foi o que seu irmão ridículo finalmente declarou.

E foi o bastante. Cato nunca tinha precisado de muito. Por alguns segundos, às vezes, as coisas paravam de arder tanto e Cato era grato por isso.

Teo tropeçou na escada saindo de uma das casas e eles riram enquanto caminhavam de volta pra Patrus.

Ele era grato à Illeana, também, que conseguia suavizar os olhos árduos de Clove. Ela estava trocando sua roupa quando ele adentrou a sala de Dom e Cato tinha certeza que mais nada conseguia fazer o olho de Clove brilhar tanto.

— Isso é estressante, tentar não te quebrar. Você é muito pequena – ela dizia, sorrindo quando Illeana emitiu um som aleatório. – Certa como sempre. É a genética.

Às vezes, Cato ainda esperava que Clove fosse largar Illeana em cima dele, que ela fosse olhar para ela com aqueles olhos frios, que ela fosse simplesmente se recusar a segurar sua bebê porque tudo aquilo se parecia mais com ela. Então ele ficava um pouco chocado, um pouco atônito, toda vez que a via com Illeana.

— Graças a Deus – ela resmungou, quando o viu.

Graças a Deus? Que eu cheguei? – Cato repetiu, arregalando os olhos. – Uau. Não vá amolecer, Kentwell.

— Vai se foder – Clove latiu em resposta, escondendo mal um sorriso enquanto se levantava segurando Illeana. – Sua vez.

Cato segurou sua bebê com satisfação. Ele notou o que Clove estava fazendo, então; quase com agressividade, ela estava prendendo seu cabelo e vestindo uma jaqueta.

— Pra onde você vai? 

— A Gaia está na casa da Ella aprendendo a costurar e você vai buscar ela mais tarde, antes da hora da Ella mexer com a comida pro pessoal. Vocês terminaram com a Vila? – foi o que Clove disse, em um tom muito firme, ignorando sua pergunta. Ele acenou positivamente com a cabeça. – Então mais tarde tem a coisa com o Orpherius.

— Minha pergunta, agora, Clove.

— Eu vou voltar na hora que ela for comer de novo.

— Não foi o que eu perguntei.

— Mas essa é a minha resposta – e essa foi a declaração final de Clove. Ela saiu Patrus afora, então, e Cato se sentou no sofá com Illeana. Não havia motivo para correr atrás de Clove. Não era assim que eles funcionavam. Se ela o quisesse lá, ela iria dizer. E Illeana era uma companhia tranquila, de qualquer forma e, mesmo que Cato morresse de medo de quebrá-la, era legal ficar com ela. Só havia algumas pessoas no mundo que ficavam tão confortáveis em sua presença e Illeana ainda não sabia de nada, mesmo, só que aquele homem ali aparecia bastante. Ela dormiu dez minutos depois. Cato dormiu, também, porque às vezes as coisas queimavam menos.

x

Clove atravessava a Patrus com passadas largas. Ela quase podia sentir que o chão ia se quebrar a cada passo que ela dava naquele caminho tão conhecido. Celebrações eclodiam por todo o distrito, mas, naquele momento, ela era alheia a cada uma delas.

Clove segurou sua respiração por alguns segundos antes de abrir a porta de vidro da loja. Um sininho tocou. A mulher no balcão levantou os olhos para ela.

E o mundo parou, por alguns minutos.

Os olhos de Clove não estavam se movendo, mas ela sabia que à esquerda ficavam as porcelanas e à direita ficavam as coisas de vidro e no balcão ficavam as joias. E que ela estava vendo os mesmos olhos de gelo que via sempre no espelho.

Ela não se moveu.

— Você teve um bebê – a mulher falou.

Clove sentiu alguma coisa pressionar seu peito ao ouvir a voz da sua mãe. Ela era bonita. De um jeito harmonioso, mas frio, só para que pudesse combinar com sua dona. Clytastra Kentwell não tinha exatamente o tipo de beleza que faziam pescoços se virar, mas ela tinha um nariz perfeito e olhos incrivelmente simétricos. Seus cachos castanhos ficavam sempre bem presos em um rabo de cavalo baixo e seus gestos eram cheios daquela graça altiva, ainda que não houvesse nada muito gracioso na vida de Clytastra, que havia sido criada na Patrus por sua tia doente e se casado com um rapaz deserdado por seus pais depois de falhar na Academia.

Clove deixou a porta se fechar atrás de si. Contudo, ela permaneceu parada lá, suas costas contra a porta, sua postura perfeita com esperança alertando sua mãe que as pessoas não mexiam mais com ela, agora – ou há muito tempo.

— Você usa isso agora? – Clytastra perguntou em seguida, apontando com a cabeça para o colar no pescoço de sua filha.

Clove tinha certeza que sua voz tinha desaparecido. Havia um caroço em sua garganta e um tanto de coisa nos seus olhos porque aquela mulher bem ali tinha decidido não dar uma foda para ela.

— O péssimo trabalho que eu fiz com a sua educação, Clove.

— Eu estou seguindo seu exemplo, mãe — Clove devia ser uma das únicas pessoas que conseguia fazer com que a palavra mãe soasse como um insulto, uma das piores provocações que podiam ser lançadas em uma discussão. Ela movimentou a língua pela boca como se sugasse o veneno. Ela assistiu sua mãe fazer a mesma coisa.

O silêncio preencheu a loja, de novo, do mesmo jeito que preenchia sua casa o tempo inteiro. Clove se perguntou se ainda era assim. Se eles ainda se sentavam à mesa sem emitir uma palavra, se eles passavam olhares desconfiados um para o outro agora que ela não estava mais lá.

Você sabe, o problema era que Clove não odiava seus pais. Ela não sentia nada a respeito deles. Ela via a casa cinza, a cama de madeira, a falta de qualquer sinal que uma criança vivia ali. O espectro do fracasso, do ressentimento que cada um deles sentia porque Clove não era nada como eles. Mas ela não sentia nada. O mundo desabou quando Cato a presenteou com um colar que tinha comprado bem ali, na loja em que o fantasma de sua mãe trabalhava, mas parava aí.

Ela não sentia nada.

Contudo, ela tinha sentido alguma coisa quando Ella anunciou que Clytastra queria conhecer sua neta. Alguma coisa ela tinha conseguido sentir, fervendo como óleo quente em suas veias. Mas Clove não conseguia realmente identificar o que diabos era que ela tinha sentido. Ela havia esperado Cato chegar e rumado pra cá, onde sua mãe trabalhava meio período desde o começo dos tempos.

Clove se perguntou quanto tempo ela iria conseguir manter aquele silêncio. Clove se perguntou se devia começar a gritar de uma vez, a fazer o que ela melhor fazia quando queria expulsar alguma coisa de si, se Clytastra iria falar alguma coisa se ela o fizesse, se ela iria sair detrás daquele balcão ridículo. 

Elas mantiveram o silêncio por longos minutos. Clove sentiu alguma coisa enrolar as garras ao redor de sua garganta.

— Você ter ido falar com a Ella sobre a Illeana é uma putaria – Clove disse, sobressaltando Clytastra um pouco. Ela ficou satisfeita de saber que ela era ao menos real, que ela vivia no mundo concreto e que coisas mundanas como sustos podiam atingi-la.

— Modos – sua voz era baixa, como sempre, fraca como ela, imperceptível como ela queria que Clove fosse.

— Modos? – Clove repetiu, sua voz escondendo uma risada sem humor. – Eu não sei que porra você tem, mas vai procurar um médico porque é impossível que você ache que eu vou deixar você conhecer ela.  

— Cato também tem uma boca suja, eu imagino. Eu não me lembro de te ouvir xingando antes.

— E como que você ia saber disso se nunca nem falou comigo? – Clove sibilou. Clytastra voltou a ficar em silêncio e Clove pensou que preferia mil vezes a falação surtada em que Cato entrava às vezes e toda aquela gritaria na casa de Dom àquilo. Ela tinha preferido muita coisa em sua vida toda àquela indiferença que parecia rasgar sua pele. Ela tinha preferido a atenção perigosa de pessoas erradas e todos os toques vedados porque ela não se lembrava de nenhum dos seus pais tocando nela uma vez sequer, nem para levantar uma mão contra ela, nem para distribuir tapinhas em suas costas quando ela chorava.

De repente, então, Clove realizou que tudo aquilo ainda era um pouco demais, que todo aquele silêncio ainda subia por seu pescoço e a sufocava de um jeito que mão nenhuma havia feito. Clove podia não ter ido para Capital, se seus pais pobres e supostamente decentes tivessem só reparado que ela existia. Só uma palavra, só um olhar, e ela teria ficado. Ela seria doce, ela seria gentil, ela seria que nem Attico e Fedra e Iana. Não haveria sangue em suas mãos, nem todos os mil corpos invadindo o seu, e nada daquilo teria acontecido. Ela não teria que temer por Illeana porque ela não seria uma assassina. Não haveria Wade nem Naevio nem nenhum dos outros. Cato e ela teriam se encontrado e talvez eles pudessem se consertar em vez de terminarem de se destruir.

— Para de perguntar merda pra Ella. Nenhum de nós existe pra você.

Tudo podia ter funcionado e, por essa falha, Clove jamais poderia perdoar Clytastra.

Então ela deixou a loja, sua mão pressionando seu pescoço.

“Clove, por favor. Deixa eu ver ela”, ela ouviu, enquanto o sino sacudia mais uma vez.

Clove caminhou de volta para casa de Dom secando as linhas salgadas que escorriam por seu rosto vermelho. Ela sentia alguma coisa agora. E aquela coisa doía, ardia, queimava. Clove sentia um monte de coisas, agora, e ela bateu a porta do quarto quando o adentrou, sobressaltando Cato.

Por que ela não me amou?, uma voz perguntava de novo e de novo, do mesmo jeito que Illeana tinha perguntado em sua cabeça uma vez. Mas a resposta agora era diferente. Ela não tinha uma, pra começar.

E doía como se alguém estivesse esmagando seu coração de novo e de novo.

Cato sabia o que ela tinha ido fazer, ela percebia agora, pelo jeito que ele a olhava. Clove tinha amolecido, ela tinha certeza em momentos como aquele. Ela só tinha vinte anos, você sabe, e sua adolescência – sua vida – tinha sido um borrão todo feito de sangue e desespero, e algumas vezes, ela precisava liberar alguma energia.

Clove chorou por alguns minutos, então, como quase sempre fazia quando ela e Cato passavam madrugadas sóbrios e ela estava destruída demais até para gritar. Cato nunca falava nada, ele nunca sabia o que podia dizer. Ele tinha passado o remédio pra ela depois do seu primeiro cliente e a deixado jogar facas na parede do seu quarto noite após noite, encarando o teto. Quase como se ele não pudesse olhá-la.

Naquela noite, contudo, Cato abaixou os olhos.

— O que aconteceu? – ele sussurrou, seu rosto firme escaneando o seu.

E Cato sempre a tocava, mesmo quando era proibido, mesmo quando ela não merecia, mesmo quando ela estava gritando e gritando. Suas mãos sempre eram muito cuidadosas.

— Eu odeio ela – Clove disse em resposta, sua voz um solavanco esquisito. – Puta merda, eu odeio ela.

Mães deviam ser boas com suas filhas, as coisas de meio centímetro que saiam de dentro delas. Elas deviam reconhecer suas existências e a contar sobre o amor e sobre os olhos admirados que iriam cercá-las quando elas se transformassem em mulheres como elas. Elas deviam pentear seus cabelos e mostrá-las o que havia de bom no mundo. Elas não deviam ter olhos de gelo e meias palavras.

Cato permaneceu em silêncio depois de sua réplica. Ele não podia realmente ajudá-la com isso, as coisas eram diferentes para meninos como ele, que tinham tido uma mãe gentil e sorrisos todos os dias.

Era uma coisa que permanecia entre Clytastra, ela e Illeana, ressonando profundamente à esquerda. Uma daquelas coisas que faziam Clove desejar voltar a não ter nenhum sentimento. Uma daquelas coisas que a faziam se lembrar do que era ter cinco anos e nenhuma mãe. Do que era ter quinze e um colar que tinha pertencido à Clytastra, mas que havia sido dado a ela por um garoto.

Então Clove chorou por duas horas, meio apoiada nos ombros do garoto que era um assassino e agora um pai e a única pessoa que tinha verdadeiramente a amado. O mundo acabava de novo e de novo e lá estavam eles dois, os mesmos de mil anos atrás, monstros e crianças, olhos assustados e mãos que destruíam.

Havia sempre alguma coisa que os puxavam para a realidade do momento. Daquela vez, foi Illeana, gritando daquele mesmo jeito desesperado que eles gritavam às vezes. Clove se levantou com suas pernas trêmulas e alcançou sua filha, uma criança que tinha seu nariz e seu cabelo e a promessa da esperança do seu pai, que podia consertar Clove às vezes.

A gente ainda vai casar, Clove. Ficar velho e a coisa toda. Você sabia disso?, Cato tinha dito uma vez, quando eles alcançaram o limiar entre a infância e adolescência. Sua voz já tinha aquela arrogância desdenhosa, mas ainda tinha aquele traço de sonho que preenche a conversa de crianças.

Clove agora tinha certeza de que eles estavam envelhecendo bem ali, a cada momento que Illeana respirava. E ela era grata pela oportunidade de pausar aquela juventude terrificante.

Eles eventualmente precisaram deixá-la, contudo. Eles deviam assumir outro papel, agora.

Seu povo os esperava lá embaixo. Eles se preparam para atentar mais uma vez contra a mão que tinha os alimentado, contra a mão que tinha os marcado, contra a mão que tinha os transformado em assassinos.

Eles entregaram sua filha para aqueles que sempre haviam recusado o poder funesto da Capital. Fedra segurou Illeana como o sinal de redenção que ela era. Em silêncio, ela assistiu seus pais se juntarem a multidão mais uma vez insurgida, com seus punhos e gritos e crianças perdidas.

Cato e Clove haviam se destruído mais vezes do que podiam se lembrar, como jovens geralmente fazem, e estado lá para forçar as peças a se juntarem de novo ainda mais vezes, como pessoas perdidas geralmente fazem. Por causa disso, eles caminharam de mãos dadas e a multidão quase pôde ver todos os fantasmas que os acompanhavam. Suas famílias aniquiladas, o sangue jovem derrubado, todas as lealdades corrompidas com exceção da que havia entre eles, tecida por ferro havia muitos anos.

E era quase como se eles fossem os próprios fantasmas, os fantasmas do que poderiam ter sido se a Capital não tivessem os matado de novo e de novo. A realidade e o que poderia ser se alternavam aos olhos da multidão e, por isso, ela os seguia. Cato teria sido um rapaz decente, um que ajudaria pessoas velhas e que colocaria um anel na mão de sua amante o mais cedo possível. Clove seria a mais doce e a mais inteligente e todo mundo amaria ouvir sua risada livre.

Mas eles não eram nada disso enquanto executavam Orpherius.

Orpherius, o dirigente oficial do distrito, o que havia possuído uma coroa feita de crueldade desde o começo dos tempos, e Cato e Clove em suas versões reais, com seus punhos brancos e seus batimentos acelerados e os mesmos mantras ressoando em suas cabeças; matar matar matar

Orpherius estava agora parado no pelourinho que havia construído com suas próprias mãos. Lyme se aproximou, com Dom e todos os outros líderes das vilas. Eles entregaram um revólver para Clove, a princesa redimida. Eles entregaram um revólver para Cato, que odiava segurá-los desde que sua mãe havia sido levada por um deles.

A equipe do 13 estava plantada lá, também, sustentando suas câmeras mais uma vez. Elas gravavam pais inexperientes e assassinos calejados (e crianças com pais assolados e mentes desordenadas).

Orpherius sustentou o olhar de Clove com os mesmos olhos escuros de sempre. Uma garota da Patrus, uma que tinha feições de pedra como as dele. Não havia nada mais apropriado.

Ela disparou antes do sinal.

Clove sentiu Cato se sobressaltar ao seu lado, como sempre fazia quando um daqueles era usado. Ela se lembrou de Megara e de Cato ajoelhado no quintal gigante de sua casa.

Cato disparou em seguida, fechando seus olhos assim que apertou o gatilho.

Como sempre acontecia, Cato sentiu que nada daquilo era real. Ele entregou o revólver para alguma mão estendida e ouviu vagamente os gritos da multidão que ele sempre havia temido. Eles tinham libertado seu distrito, agora, definitivamente, mas Cato continuava ouvindo os gritos de sua mãe no quarto do lado e ele conseguia ver os olhos de Teo por baixo da coberta e as mãos diabólicas de seu pai na manhã seguinte.

— Cato – a voz de Clove ecoou.

Clove gritou alguma coisa para alguém, do mesmo jeito que tinha feito naquela manhã, quando ela o arrastou pra longe da sua mãe mesmo que ele tivesse pedido para que ela não o fizesse porque ele podia resolver aquilo, sua vida podia ser conservada, ela iria se levantar se o visse daquele jeito, mas Clove sempre tinha sido cruel e Cato ainda não estava convencido de que ela não tinha...

 - Cato – sua voz disse, de novo.

E aí ele conseguiu ouvir. A mesma voz de sempre, a mesma única voz que ele conseguia ouvir nas noites difíceis na floresta atrás da Nêmeses. O rosto de Clove foi focalizado por sua visão, muito próximo do seu.

Ela permaneceu em silêncio por um tempo, observando o rosto confuso de Cato, seu próprio estampado com um temor muito raro.

Do lado de fora da casa do prefeito, a multidão continuava comemorando, de forma que ninguém tinha realmente sentido falta deles dois se embrenhando em um canto silencioso. O Distrito 2 estava acostumado com suas divindades reclusas se recusando a se misturar.

— Vamos embora – Clove disse. Há eras atrás, a Clove que estava obcecada com a rebelião amaria ser carregada pela multidão, adoraria ser exaltada por ter finalmente libertado o distrito (e provocado um pouquinho de caos). Mas aquela de agora segurou a mão de Cato e o guiou até a porta de fundos para que eles pudessem escapar de seu próprio povo.

Eles andaram em silêncio de volta pra Patrus, o caminho parecendo fantasmagórico com a maioria do povo aglomerado na Praça Principal. Clove não se atreveria a dizer nada sobre os olhos vazios de Cato nem sobre o jeito que sua respiração pareceu entalar no mesmo segundo que a cabeça de Orpherius pendeu para o lado.

Ela não iria se atrever a sequer reconhecer que aquilo tinha acontecido. Ela não podia, não de verdade, porque Cato já estava todo fodido e ele não precisava saber que ela também sabia disso e que sabia que ele nunca tinha deixado de estar fodido.

Cato, contudo, não parecia concordar com as conclusões de Clove. Ele começou a coçar o nariz no instante em que eles alcançaram a praça da Patrus, então Clove se virou para ele e esperou.

— Clove, isso nunca vai ter fim – foi o que finalmente veio, um decreto firme, mas baixo. Cato parou, se curvando levemente em sua direção em uma daquelas incontáveis reuniões que eles faziam desde sempre.

Clove esperou que ele elaborasse, em um silêncio cauteloso.

— Por que você acha isso? – ela perguntou.

— Porque eles não vão parar. Eles mataram o Orpherius, mas a Capital não vai cair enquanto a gente estiver aqui.

Clove manteve sua expressão neutra. Era claro como água. Porque Cato tinha ouvido os gritos ecoarem pela praça e ele sabia que eles não tinham a ver com justiça mas com aquele tipo de fúria que não pode ser aclamada sem que haja destruição absoluta. Ele conhecia a besta que movimentava seu povo, afinal.

— Eles não vão parar – ele repetiu.

— A gente não pode ir embora. Não tem nenhum lugar pra ir – foi o que Clove colocou, sua voz cautelosa escondendo aquele tipo de incredulidade que ela sempre carregava por aí. Mas sua assertiva tinha sido bem posta, Cato não podia negar. Não havia lugar nenhum pra ir, que nem nunca tinha havido.

— Mas você sabe, não sabe?

Porque Clove sempre sabia e porque Clove nunca fazia perguntas quando não sabia a resposta, ela só sustentou seu olhar por um tempo e ela soube. Que eles nunca mais estariam a salvo, que nem nunca tinham estado.

E que a Capital nunca iria cair.

Não enquanto eles permanecessem vivos.


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Notas finais do capítulo

Sem palavras... de verdade, era pra ter um textão aqui e tals falando das diversas Emoções que essa historinha me proporcionou Mas tenho fé que irei coisar o epílogo aí nóis deixa o textão pra depois. Não mas a vibe drama familiar está fortíssima nesse não é?? Sempre foi minha intenção!! Felicidade doméstica é o que importa nesses últimos e apenas isso!! Muito obrigadaaa.



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