Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 22
I been out here trying to see my homecoming.


Notas iniciais do capítulo

Oi oi! Voltei um pouquinho mais cedo de novo, porque não ia conseguir no resto do feriado. E, ai, genteee. Esse daqui é um capítulo que eu gosto muito, sabe. Ele fala sobre uns negócios aí que apareceram rapidinho na história e dá uma explicada sobre o passado de madame Clove, o que é tudooo. O título vem de I am, uma musiquinha de Jorja Smith. Passem lá nas notinhas finais que tem uns negocinho pra nóis conversar. Boa leitura e tomara que cês gostem. (vou nem mais falar do tamanho, gente, o trem por aqui é assim mesmoooo se for DEMAIS leia em partes kkkkkk)



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Ódio.

Por mais improvável que possa parecer, o Distrito 2 não cultivava uma cultura em que tal sentimento fosse bem vindo. Para dizer o mínimo, o Distrito 2 cultivava uma cultura em que sentimento nenhum era bem vindo.

O conceito dele, no entanto, era bem disseminado. Todo mundo sabia o que o ódio era. Ele morava nas derrotas mais humilhantes e nos olhos dissimulados de um fracasso. Ele se vestia de vermelho e embaralhava o último dos pensamentos coerentes. Ele se deleitava na obsessão e no desespero.

Por causa disso, da má fama que o ódio tinha num distrito que formava vencedores perfeitos, todos sabiam que só vencia aquele que possuía uma mente clara, asséptica, aquele que fosse desprovido de paixão, de todas as pulsões que destruíam os planos mais brilhantes.

E, alguns anos atrás, Clove tinha o perfil de uma vencedora perfeita. Ela era familiarizada com todo aquele discurso que sem dúvidas iria trazer sua vitória, ela sabia como identificar aqueles que jamais poderiam suportar os Jogos, aqueles que se empolgavam demais nas atividades práticas, aqueles que abraçavam muito seus conhecidos, aqueles que pareciam muito familiarizados com o ódio e com seus companheiros fiéis.

Contudo, do nada, Clove sentiu a pontada de alguma coisa errada atravessar sua coerência, sua perfeição, e ela se viu na mais absoluta desordem. O que bagunçava tudo não era a raiva que ela sentia dos seus pais imprestáveis, não era a raiva dos seus colegas de treino, não era a raiva dos sorrisos dos moradores da Patrus; o ódio inaceitável vinha do descuido de um garoto loiro que tinha uma coisa que ela nunca tinha visto brilhando em seus olhos e um colar que a entregou no dia de seu aniversário (no meio da Academia lotada numa tarde de quarta feira).

O inferno veio à tona, de repente.

Por algum tempo, Clove enxergou em tons de vermelho. E ela conseguia entender o ódio. Não do ponto de vista de um estudioso que o abomina, mas de quem de repente odeia a tudo e a todos. E a isso, a ameaça que representava para sua vitória, ela odiava.

Então, Clove tomou uma decisão. Ela precisava canalizar aquele ódio, diminuí-lo. De repente, sua mente estava feita: a única coisa que ela odiava de verdade era Cato. Ele era o culpado, afinal.

Muitos anos haviam se passado, mas Clove, na medida do possível, se mantivera fiel a sua decisão. Não importava que ela fosse um pouco obcecada com o objeto de seu ódio, nem que fosse muito apegada a ele. Seu ódio era agora uma pessoa, uma coisa materializada, uma coisa sua. E, como tudo que era seu, o objeto de seu ódio merecia admiração. Merecia cuidado. Merecia seus olhares atentos e suas mãos suaves.

Merecia outros sentimentos, também, afinal.

Mas se você perguntasse Clove ali, naquele momento preciso, ela confirmaria; ela ainda odiava Cato com a mesma intensidade de anos atrás. Porque ele não estava ali e ele tinha quebrado seus tratos e ela tinha que dar um jeito de explicar isso para sua irmã, que a encarava com fúria.

— Como assim? Por que não? – Gaia exclamou, braços cruzados e uma expressão que parecia deslocada em seu rosto infantil.

— Porque merdas acontecem – Clove respondeu, quase querendo desviar o olhar. Talvez Cato estivesse certo, afinal. Ela não sabia mexer com aquelas coisas de “olhar” crianças.

Gaia estreitou mais os olhos.

— É sua culpa – Gaia disse. Clove continuou sentada lá, sem saber como reagir. A voz da irmã de Cato estava embargada e ela quase se levantou para se sentar ao seu lado, mas não pareceu que Gaia ia gostar de receber um abraço. – Não sei pra quê ele foi mexer com você. Eu falei pra ele que você só dá problema, só sabe ser idiota, só estraga tudo.  

Por uns segundos, enquanto o silêncio pesava o ar do dormitório 7b, Clove deixou um lapso de pesar escorregar por seus olhos. Gaia estava certa, ela tinha estragado tudo, incluindo seu irmão mais velho.

— Eu falei pra ele, também – foi o que ela respondeu.

— Você disse que estava namorando ele, sua mentirosa – Gaia continuou, seu rosto vermelho, suas mãos gordinhas virando punhos. – Então como que você não sabe onde ele está?

Gaia tinha o mesmo sangue de Cato, eram as palavras na mente de Clove. Havia o mesmo vermelho no rosto dele, o mesmo gelo nos olhos. Então ela nem pôde dizer nada. Gaia era muito bonita, muito perfeita, muito certa, ela poderia olhar para ela para sempre. Gaia não devia ficar perto de ninguém que nem ela. O que ela poderia dizer? Ela só poderia dar a ela o silêncio, algo que lembrasse de longe um sinal de respeito.

— Por que você não ficou com ele, Clove? Se você era tão apaixonada assim, por que você deixou ele lá?

“Se você odeia tanto o pessoal da Patrus por que você visita aquele homem? O Dom. Esse é o nome dele, não é, do homem que está mexendo com isso? Por que você fica mentindo?”, Cato tinha perguntado uma vez. As sentenças pareciam a mesma coisa, pareciam sair dos mesmos lábios, pareciam ter o mesmo tom.

Clove, com a mesma expressão vazia, deu de ombros. O que ela podia dizer?

— Fala alguma coisa! – Gaia gritou, deixando um tanto de lágrima escorrer por seu rosto.

Clove quis fechar os olhos, e ela o fez. (Do mesmo jeito ridículo e terrível que Cato fazia quando estava muito perturbado).

— Gaia, eu não... – ela começou, as mãos pressionando sua testa, seus olhos mirando o chão. (Sua voz embargada, sua garganta apertada, seu coração bem esmagado). – Que porra você quer que eu fale? Eu procurei ele, eu pedi pra ele não ir, eu...  

— Eu te odeio – Gaia cuspiu, a interrompendo, seu pequeno corpo tremendo levemente.

Era justo.

(Mas Clove ainda sentiu uma pontada esquisita em seu peito porque Gaia não devia odiar ela, Gaia ainda devia querer treinar com ela e deixar que ela trançasse seu cabelo e muito insolentemente colocar as pernas em cima do seu colo enquanto elas assistiam televisão).

Clove sustentou seu olhar e firmou sua expressão. Gaia a odiando ou não, ela era o que tinha.

— O 13 está tentando achar ele. Eu vou ficar te olhando até eles conseguirem. Eu e o Teo.

— Eu. Te. Odeio.

— É seu direito – ela afirmou simplesmente, depois de uns segundos observando a figura fulminante da criança a sua frente, sentada numa cama sem sequer alcançar o chão com os pés. Clove, empurrando a bochecha com a língua, calçou suas botas e se levantou. Ela já estava abrindo a porta quando voltou a olhar para Gaia, sentindo que tinha alguma coisa impedindo que ela respirasse direito. – Eu vou estar na sala de reunião.

Ela esperou o “foda-se”, mas lembrou que Gaia era muito nova e muito rica para saber certas coisas. Ela conseguiu silêncio. Gaia se deitou, encarou a parede e começou a chorar.

Clove continuou segurando a porta, imaginando se devia fazer alguma coisa, qualquer coisa que fosse, mas não se atrevendo a se mexer.  (Cato lidava melhor com essas coisas. Ele era muito mais bruto, mas muito mais sensível que ela).

— Seu irmão vai estar no dormitório da frente, como sempre. Você pode me chamar ou chamar ele se... precisar de alguma coisa.

Clove esperou mais alguns segundos, observando os ombros de Gaia se sacudindo, mordendo o interior de sua bochecha porque aquilo tudo era muito ruim, mas ela não sabia resolver, ela não conseguia. Gaia não ia parar de chorar com mamadeiras, agora, ela entendia direitinho porque o irmão dela não estava lá.  

— Eu sinto muito, Gaia.

— Me deixa em paz, Clove, só sai logo daqui.

Clove não ia poder fazer mais muita coisa, então ela simplesmente saiu do quarto.

Os irmãos de Cato eram exatamente as crianças ricas que ela costumava não suportar, mas que morreria pra ser. Teo dizia não apoiar a rebelião, mas seu protesto se limitava a se trancar no dormitório de uma base rebelde. Ele havia murmurado alguns comentários irônicos sobre Cato ficando na Capital, mas sua recepção às notícias tinha sido um pouco melhor que a de Gaia, que dividiria o dormitório com Clove por algumas longas noites que viriam. 

— Puta que pariu, Cato – Clove murmurava, correndo a mão pela testa. 

Dava trabalho sustentar aquela lealdade, às vezes.

Então Clove estava de volta e ela fez algumas descobertas interessantes na semana que se seguiu.

Havia Teo e Gaia sendo existências que demandavam muito da sua, que se sentavam com caras horrorosas na hora das refeições e que demonstravam sua insatisfação de formas muito caricatas, exatamente como Cato. Havia portas sendo batidas e braços cruzados e silêncios muito compridos.  Eles todos eram muito chegados em um drama, mas Clove já sabia disso.

E havia a descoberta da real e inesperada lealdade de Lyme. Desde sua intrigante recepção, ela tinha observado uma cautela impressionante emanar da outra Vitoriosa sempre que o assunto-Cato era trazido à tona. Mesmo que Clove estivesse no 2 e que sua vitória fosse recente e que seu rosto estivesse na cabeça de todo o distrito, Lyme não tinha a transformado ainda na voz mais alta da revolução. A mulher tinha vencido os Jogos porque não era nada menos de que uma das pessoas mais frias e mais inteligentes vivas e mesmo assim, mesmo sabendo que Clove poderia sentenciar a guerra a um fim muito mais rápido, vinha mudando de assunto e criando dificuldades em todo pequeno plano que envolvesse a figura de Clove, que, afinal, tinha dito que poderia conseguir o 2 se Cato voltasse. 

Clove estava... grata, ela pensou, procurando a palavra no fundo de sua mente. O sentimento era novo para ela, claro, e era estrangeira a ideia de que outras pessoas se importavam com o fato de que se o 13 entendesse que ela não necessariamente precisava de Cato para dobrar a aristocracia do distrito, seria o fim pra ele.

De novo.

Então Clove precisava enrolar, fingir que era útil mas não muito. O que podia ser difícil, às vezes.

Contudo, em um acordo tácito, toda vez que havia alguma reunião na base, ninguém mencionava Clove fazendo visitas e usando suas conversas suaves para conquistar o distrito. Era como se a possibilidade jamais existisse, nem sequer em olhares enviesados ou palavras interrompidas, a perfeita interdição.

E foi no meio da guerra, no Distrito 2, que Clove finalmente entendeu que havia outros tipos de lealdade além da que existia entre ela e Cato. E, por causa disso, em uma tarde, depois de encarar a floresta pelo décimo minuto, Clove decidiu descer a montanha por uma velha trilha que conhecia como cada uma das veias saltadas que corriam por seu braço. Ela atravessou a floresta implacável, suportou a neve alcançando suas botas e o vento fustigando sua pele até finalmente ver o lugar que costumava ser o cenário constantes de seus sonhos.

Como sempre, foi como se sua presença na Patrus despertasse algum alarme ensurdecedor. Em questão de segundos, sua caminhada lenta pela neve passou a ser assistida por uma diversidade de olhos atentos, admirados, cheios do tipo de ódio que só é dedicado a traidores (ou relutantes heróis) que escapam da ruína e encontram lugar numa realidade melhor.

Um que não conhecesse a dinâmica da vila poderia esperar as vaias, os gritos, os dedos apontados; qualquer coisa além do silêncio. Mas a Patrus, como ela bem sabia, havia sempre trilhado um caminho diferente do resto do distrito. Não havia nenhum Pacificador à vista, ninguém rumando para as montanhas. Não havia mais a escultura primorosa do busto do presidente no centro da praça. Havia, contudo, figuras de tordos pintados em uma ou duas portas.

A Patrus tinha sido a primeira vila a se rebelar. Clove não sabia como se sentir a respeito disso.

Ela sabia que estava sentindo alguma coisa, dessa vez. A sensação dos cem olhos a encarando queimava sua pele. Era alguma coisa. 

Clove deixou a rua principal e passou por entre a casa dos Kamp e uma loja de ferramentas para emergir na pequena rua detrás. Seus passos eram firmes, sua respiração era profunda. Clove parou na frente de uma casa composta pelos mesmos adornos singelos de gesso, a mesma simplicidade sufocante das outras, a mesma fachada cheia de dignidade e rigidez. Ela afundou a mão na neve acumulada entre os degraus de entrada para alcançar a chave em um buraco na madeira úmida.

E então, contorcendo seu pulso pelo buraco cheio de farpas de madeira, Clove conseguiu que um pequeno sinal de sangue manchasse sua pele pálida.

A dor, fina e pungente, por algum motivo pareceu estranha a ela. Chocante. Como se ela jamais houvesse sentido nada daquela natureza. Como se jamais houvesse sentido nada de natureza nenhuma e aquela fosse uma primeira vez. De repente, ela se viu esfregando o ferimento mínimo contra a neve, até que o vermelho vivo fosse misturado com uma pequena porção de neve que assumiu um tom diferente.

Um flashback forçou passagem por sua mente. Milhões de anos atrás, na vila que só era um pouco distante daquela, ela assistiu e reassistiu outro sangue manchar outra porção de neve. Com o mesmo choque, com o mesmo horror, ela desviou o olhar. Lá atrás e agora, bem ali.

Se você estiver vivo, por favor, espera mais um pouco, por favor, por favor.

Como se fosse bile voltando para seus lábios bem fechados, ela segurou o conteúdo no fundo de sua mente, limpou o pulso ferido no casaco, e adentrou a casa com naturalidade, empurrando a porta branca que costumava emperrar com um ar rotineiro.

A cena quase demandava o drama; os lençóis brancos que cobririam os móveis pareciam estar faltando, a contemplação saudosa e o uivar de uma corrente de vento, também.

Não havia nada disso, entretanto. Clove trancou a porta atrás de si e encarou a casa simples à sua frente sem muito interesse. Havia a sala, com uma televisão antiga, remendada, cercada por dois sofás cujas estruturas eram muito facilmente percebidas. A escada de madeira barulhenta no canto, as jaquetas largadas na mesa de canto. Ela se encaminhou para a cozinha pequena, nada em sua mente.

Porque ela sabia que não havia nada que pudesse anunciar sua presença, nada que pudesse amenizar o baque da coisa, Clove caminhou firmemente até se sentar no meio das três pessoas que se encontravam à mesa; Dom, Attico, Iana.

A conversa se transformou em um silêncio atônito em segundos.

O primeiro não esboçou reação nenhuma; com a mesma rigidez de sempre, ele meramente levantou mais o rosto e cerrou ainda mais os dentes, em sua maneira de demonstrar reprovação, mas mesmo assim um choque que quase negava a presença de Clove.

O segundo era um rapaz gentil, sempre havia sido. Erguendo as sobrancelhas para Clove com alguma espécie de humor, ele sorriu para ela, apesar de ser quem menos tinha motivo para tal ato. Ele, afinal, havia perdido um pé em um deslizamento nas pedreiras que muito possivelmente se relacionava com o convívio turbulento dos Vitoriosos com a Capital.

A terceira tinha cautela exalando de seus poros. E cautela, claro, em se tratando da presença de Clove Kentwell em algum lugar, significava desconfiança. Ela era uma mulher competente, forte, tudo que a Patrus procurava. Ela era uma pessoa boa, também, Clove sabia. Ela foi a primeira a cuspir:

— Por que você voltou?

— Uau. Que recepção, que modos — Clove respondeu, cerrando os olhos com ironia. Ela sabia que precisava se comportar bem, mas alguns hábitos são calcados muito firmemente em nossas peles. Ela assistiu por alguns segundos as expressões pouco receptivas do seu público e fechou ainda mais o próprio rosto, mudando o tom para um bem mais frio, mais intransigente (um que ela costumava usar com Cato). – Por que eu não voltaria, Iana, se eu disse que ia voltar?

— Já tem uma semana que você voltou do 13 e ninguém ouviu falar de você, Clove— a outra mulher respondeu, em um tom parecido. – Esse é o meu porquê. E o seu?

— Eu voltei porque eu não mudei de ideia sobre nada. E eu estava lá na base ajudando a Lyme – ela finalmente respondeu o que havia sido perguntado inicialmente, o que ela sabia que eles precisavam ouvir. – Que porra eu estaria fazendo em uma base rebelde, Iana? Continuando o culto ao Snow?

Uns segundos se seguiram em que os outros três trocaram olhares. Iana cruzou os braços.

— Tudo bem, então. É bom te ver – Attico disse, sorrindo mais abertamente.

— Bom te ver, também – ela resmungou contrafeita, forçando uma carranca. Uma pequena contração em seus lábios denunciou um sorriso bem escondido. Todo mundo ficou em silêncio, a observando. – Então. Como está tudo?

— A gente conseguiu aqui em casa. Fizemos greve, expulsamos os Pacificadores. Por pouco tempo, como você sabe, porque a vila deles é muito perto daqui pra gente segurar por muito tempo se eles realmente quiserem aqui de novo – Dom falou prontamente, em um relato objetivo, sem sequer considerar que ela poderia se referir a algo além da rebelião. 

— E eles não querem? – Clove foi forçada a perguntar, erguendo as sobrancelhas. Ela tinha discutido tudo aquilo com Lyme lá na base por uma semana inteira, mas não era da natureza dela deixar de dar umas cutucadas despretensiosas.

— Pra quê? Agora a gente não vale de nada. Eles redistribuíram o resto do pessoal pra cobrir o Gladiador. A gente está ilhado.

— Eles estão cercando a Montanha deles dia e noite, para evitar que a gente tome – Attico acrescentou.

— Eu ouvi dizer. Mas será que eles sabem que vocês só têm o pessoal daqui? – Clove falou, quase rindo com a improbabilidade de qualquer vitória naquelas situações. Eles deram de ombros, contrariados. Ela se viu obrigada a dar as más notícias. – Então eles vão tomar aqui de volta. Se estão realmente considerando a ideia de vocês avançarem pelo distrito.

— Provavelmente – Iana respondeu. – Orpherius executou três anteontem na Remora.

— A gente fortificou a vigilância nas entradas.

A falta de atenção que a Capital dedicava ao pequeno lado rebelde do 2 eram as carícias feitas por uma mão que estava prestes a estapear. Orpherius ia rumar pra lá em breve, mas Clove não disse nada. Pra quê, afinal? Era ela que deveria conseguir resolver tudo aquilo, certo?

— A comunicação está difícil. E eu tenho a impressão que essa história de Tordo não cola muito aqui.

Clove imediatamente cruzou os braços e se afastou mais da mesa, curvando sua cadeira frágil para trás.

— É? – ela cinicamente perguntou, erguendo as sobrancelhas.

— Surpreendente, não é? – Iana continuou, sorrindo um sorriso falso. Clove sacudiu os ombros e curvou os lábios para baixo, em uma expressão de mais completa confusão. – Não começa, Clove. Você ficou uma semana na porra da base e não te contaram quem vai ter que fazer a merda da campanha?

— Quem? – Clove perguntou, petulantemente.

Silêncio. Aquela parte do distrito não era chegada nos joguinhos de Clove.

Attico era o mais fácil de dobrar, ela sabia, então em questão de segundos ele verbalizou o que todos pareciam querer evitar.

— Você. Cato. Os outros estão sumidos, a Lyme não vende mais nada aqui nesse distrito. E ninguém é muito chegado na Katniss – ele cuidadosamente explicou, alheio aos seus cinismos hostis ou muito gentil para fazer qualquer outra coisa além de ser cuidadoso com ela. – A Arvina precisa de um empurrão. O pessoal da Dardelia, da Curia, eles nunca vão trair a Capital ao menos que um de vocês diga que é legal. E eles não precisam de nenhum incentivo do Snow pra cair matando na gente.

Ele era gentil, todo cheio de olhos brilhantes e emoção de verdade na voz. Então Clove não podia fazer jogos com ele, nunca pôde, nunca poderia.

— Escuta, eu não consigo fazer o pessoal daqui se rebelar – foi a resposta bem ensaiada de Clove. – Eu não consigo vender essa ideia de rebelde, eu vendi a coisa de queridinha da Capital por muito tempo e eu vendi muito bem. Eu não consigo.

— Mas alguém poderia conseguir? – Iana inferiu, mais uma vez em um tom insinuante. Clove sustentou seu olhar desconfiado, seguindo seus traços bonitos, seus olhos amarelados em contraste com a pele de ébano.

Clove decidiu respondê-la com um simples e hostil erguer de sobrancelhas. Foi apenas quando Dom soltou um bufo que elas quebraram o contato visual (por vários motivos, Clove e Iana não eram lá as melhores amigas). 

— Cadê o menino, Clove? O que é filho do Pacificador? Cadê o Cato? – ele perguntou repentinamente, coçando a cabeça, sempre impaciente com os rodeios de Clove.

— Com o Snow – Clove quase murmurou, quase... envergonhada. Ela estava sentada com pessoas muito dignas, muito fortes, muito heroicas. E ela não tinha conseguido salvar Cato, no final.  

— Você não disse que foi ele que começou essa coisa de rebelião?

— Ele não começou. Ele não começou nada. Eu fui lá e pedi pra ele meter a gente nisso. Ele não começou nada – Clove desatou, no mesmo tom de voz vazio. Havia a respiração entrecortada, os punhos fechados, a palidez em sua pele, então fez-se silêncio depois de sua declaração ambígua, que quase não tinha sido compreendida. Iana respirou uma palavra muito parecida com “traição”. Dom travou ainda mais o maxilar e dispensou um único olhar rígido a ela antes que Clove pudesse responde-la do jeito que ela estava querendo.

— Ele foi capturado, então. Certo? – Attico perguntou suavemente, após alguns minutos.

— Certo, é o que a Lyme acha. Tinha esse... Cara. Que eu estava saindo, vocês devem ter visto. – E foi o bastante. Eles assentiram com a cabeça imediatamente e desviaram o olhar porque eles tinham visto e eles tinham entendido muito rapidamente.

Nenhuma pergunta foi feita.

Clove agora entendia sua casa melhor e ela entendeu por que as perguntas não estavam sendo feitas, entendeu melhor a cabeça levemente abaixada de Dom e não odiou os olhos brandos de Attico nem empurrou o cotovelo de Iana triscando o seu rapidamente, à despeito de tudo.

— Eu pedi o 13 para conseguir ele de volta – Clove continuou, em um tom sombrio, olhando firmemente para cada um deles. – Se eles conseguirem ele, ele pode falar com o pessoal das outras vilas. No meio tempo, é a Everdeen ou nada – ela disse efusivamente, esperando que eles seguissem seu raciocínio em que intervir na situação das outras vilas seria assinar o desinteresse do 13 por Cato.

Eles seguiram. Imediatamente o assunto foi dado por encerrado. Attico se levantou para fazer chá. Iana voltou a morder sua maçã. Dom continuou encarando Clove.

Ela quase não conseguia sustentar seu olhar de volta, quase.

— Então. O que vocês têm planejado hoje? Sacrificar uns Pacificadores, arrombar alguma coisa, o quê?

— Nada – Dom respondeu seriamente. – A gente espera, a gente segura o que conseguiu até agora, a gente empurra essa coisa do Tordo. Reza pra que alguma coisa pra virar a mesa apareça.

— Mas é claro – Clove ironizou, espalmando as mãos na mesa, porque ela tinha acabado de dizer que faria absolutamente nada para virar aquela mesa.

Um silêncio pesado caiu no cômodo, enquanto eles contemplavam a situação que tinham em mãos. Discretamente, os olhares se voltaram para Clove, que estranhamente batucava os dedos na mesa sem nenhum sinal de seu ar de petulância de sempre. Eles entenderam melhor a gravidade da coisa quando observavam a garota lívida sentada de frente para eles, sentada ali com todas aquelas olheiras, todos aqueles quilos a menos, toda aquela palidez, a mesma que tinha vencido uma edição dos Jogos, a mesma que tinha forçado sua ascensão na Academia que definitivamente não parecia ser lugar para ela.

— Eu deixei uma coisa no quarto de hóspedes – ela finalmente disse, levantando os olhos. – Vocês se importam se eu for lá pegar? Não vou demorar.

Dom nem se importou em responder. Sacudindo a cabeça para a pergunta de Clove como se ela não só fosse irrelevante como também absurda, ele logo voltou a abaixar a cabeça e meditar sobre toda aquela complicação.

Clove então afastou sua cadeira da mesa e alcançou a escada. Os nhec nhec da madeira ecoaram pelo silêncio pesado da casa, do jeito que ela se lembrava. Clove alcançou o patamar e parou.  

Ela quase desceu as escadas de volta.

Clove sentiu seu coração querer pular para fora de sua caixa torácica enquanto passava os olhos pelo quadrado no qual três portas de madeira crua culminavam. O cheiro de pinho ainda parecia muito forte. Coçando o nariz de leve, ela girou a maçaneta gelada da porta da esquerda.

— Então, o quê, você finge que não vê eles?

Milhares de anos atrás, Cato estava sentado na ponta de um ringue na sala abandonada, assistindo Clove atirar facas em uns bonecos detonados.

— Eu não preciso fingir. Eu não vejo eles – ela sibilou, sem o olhar como quase sempre. Como quase sempre, também, Cato soltou uma risada que era metade exasperação, metade admiração.

— Você não volta pra lá nem nos feriados? – ele continuou, olhando sem interesse para a ponta afiada da espada que segurava vagamente, provavelmente tentando se furar.

— Não.

— Por quê?

Clove virou a cabeça bruscamente em sua direção e caminhou até ele como se tivesse um propósito muito claro. Ela viu Cato desviar os olhos da espada para observá-la. Contudo, ao se aproximar da plataforma precária do ringue onde ele estava, Clove continuou andando, quase rindo de sua expressão decepcionada; “eu vou deixar você criar uma tese”, ela disse.

Ela estava deixando a sala e voltando para seu dormitório quando ouviu a voz lenta, prepotente, de Cato, toda cheia de verdades absolutas:

— Aqui no 2 a gente mexe com um negócio chamado lealdade, sabia? Então se você ganhar, Clove, minha tese é que você vai dever tudo a Patrus. E a todo mundo de lá que você não vê.

Ela se sentou na cama de ferro que costumava dormir e contemplou a visão que tinha do quarto. As paredes, sem nenhuma surpresa, eram pintadas de um tom de gelo muito próximo do cinza. Do lado direito, havia uma cômoda pequena, de madeira escura, que quase nunca tinha suas gavetas preenchidas com roupas. Do lado esquerdo da cama, um pequeno criado mudo era uma das únicas coisas decoradas que Clove havia possuído, um dos únicos pertences que realmente pareciam pessoais; a superfície de madeira do pequeno móvel era decorado com pequenas flores vermelhas, pintadas para se assemelharem com cravos.

Clove permaneceu sentada na cama – mas não como Cato fazia, dramaticamente sentado na ponta, apoiando a cabeça com os braços como se contemplasse o fim do mundo—, cruzando os braços para tudo que via, tudo que ousava sentir.

Ela odiava ficar naquele lugar. Quando ela estava lá, tudo emergia, claro como água. Ela se lembrava com muita precisão dos detalhes de cada um de seus pais, Leto e Clytastra Kentwell, um casal de pessoas que mal existiam no mundo concreto, cujo mero matrimônio tinha assinado sua condenação. Eles não falavam muito, não faziam muito, não eram muito. Nada além de duas sombras caminhando por uma casa fria, negligenciando uma menina que estava fadada a não falar muito, não fazer muito, não existir muito. Então ela se lembrava da avalanche e do quão próxima a casa era do Gladiador e quão roxas suas mãos haviam ficado enquanto ela atravessava dias que não sabia bem como contar, mas que pareciam infinitos. Ela se lembrava de começar a odiar os olhos inusitados de sua mãe e então ser levada por um homem que via às vezes, um daqueles que perguntavam por ela, mas que não ligavam muito que seus pais não soubessem nunca responder.

Dom ligava um pouco mais e abriu as portas da sua casa para ela. Clove gostava, mas também gostaria que seus pais fossem... melhores. E a casa de Dom era sempre cheia de seus irmãos e os filhos deles e Clove não gostava muito de nenhum deles. Então ela se lembrava de transitar de uma casa pra outra, de conhecer todos os becos e todos os atalhos da Patrus como conhecia cada cicatriz em seu corpo.

Foi tarde da noite, na casa de seus pais, que ela ouviu seu chamado. Ela assistiu uma garota, uma que quase se parecia com ela, conversar com um garoto que não se parecia nada com os que ela conhecia. Clove a assistiu fazer pausas apropriadas, enrolar mechas de cabelo com o dedo, levantar os olhos em todos os momentos certos. Ouviu sua voz bem entoada, a conversa suave que ela teceu. Ela observou quando a garota cravou a faca no coração do garoto enquanto ele dormia.

No outro dia, ela descobriu que seu distrito tinha uma Academia que formava garotas como aquela e era cheia de garotos como aquele. A garota era um tributo bom. O garoto era uma criança rica (seus pais nunca tinham sido assim; sua mãe não era boa, seu pai não era rico).

Clove Kentwell se lembrava de pensar que conhecia o mundo inteiro. E ela conhecia, de certa forma.

Com um suspiro pesado, ela finalmente abriu a gaveta do criado mudo e encontrou o objeto que mais odiava no mundo inteiro. E lá estava, enterrado embaixo de um livro de estratégia, o mesmo colar dourado de sempre. Anos haviam se passado desde que Clove havia o recebido e anos haviam se passado desde que ele permanecia ali, escondido de tudo e todos. Contudo, ele era sempre uma presença pungente no fundo de sua mente; ela se lembrava com clareza de cada um dos detalhes que o compunham, cada uma das pedrinhas azuladas espalhadas por sua extensão, de como elas eram afiadas, ríspidas contra sua pele, mas que eram inegavelmente um trabalho cuidadoso. No começo, como sempre havia sido, ela sentiu o impulso de jogar o colar contra a parede; mas ela nunca tentava de verdade, porque sabia que ele nunca ia se quebrar. Então, ela se conformou; ela precisava usar aquele colar.

Ela sequer precisou se esforçar para parar de pensar em Wade dizendo “eu compro um mais caro”. Ela não fez esforço para parar de pensar em Naevio e suas mãos se fechando em volta do colar, o puxando bruscamente de seu pescoço e perguntando o que aquilo queria dizer.

Aquilo queria dizer que a aliança era firme como o ferro, pungente como o sangue e podia se materializar num colar bonito que ela nunca deveria ter recebido.

Todo mundo estava morto, todo mundo era história, todo mundo havia virado números, se transformado em códigos que ela jamais voltaria a ler. Mas algumas coisas permaneciam lá, como as contas afiadas incomodando a pele sensível de sua clavícula, pequenos salpicos de sangue manchando suas roupas escuras e uma lealdade que custava muito caro e que era muito firme. 

Clove desceu de volta as escadas e se sentou à mesa, apertando, finalmente, o colar contra sua clavícula.


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Notas finais do capítulo

Minha gente, esse trem de Clove mais Cato fazer campanha ou não, é o seguinte: no livro lá é todo um rolo porque demora pra conseguir o 2 e tals e aí eu creio que Katniss não vende muito lá e o povo é muito fechado com a Capital, então seriam nossos digníssimos que quebrariam o braço de Snow por lá, sabe. E outra: no livro tem uma história que é só Peeta que faz campanha pro Snow e os outros vitoriosos ficam tudo sumido, né, e aí capaz que nóis vai seguir com essa ideia mesmo. Mas enfim. Ai gente, Clove não se dá bem com ninguém porque ela é muito ENJOADA na moral!! KKKKKKKK sim e esse final é um negócio que parece doidão, mas é porque Clove tem muito essa mania de tá tocando o pescoço, apertando, sei lá e isso daí ganha outro significado com essa história do colar que o pobre do Cato foi dar pra ela de presente de aniversário…. Uma doida é uma doida!! E Clove de mamãe de Gaia mais Teo, apoiam este lacre? E a história da vida dela, o que cês acharam? A do Cato sempre esteve toda na mesa, né, mas a dela sempre foi mais misteriozinho. Enfim, família, é istoo. Beijão!



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