Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 13
For you I would ruin myselfy a million little times.


Notas iniciais do capítulo

Ooi família!! kkkkkkkk
Ai gente, voltei, porque eu tinha muito pouco motivo pra não terminar de postar essa historinha, né não. Eu amo ela mais que tudo, ela é tudo pra mim, metade do meu autoconceito depende desta história que me concede os raros momentos em que sinto orgulho de mim e eu acabei escrevendo bastante por conta da pandemia e da falta do que fazer e tudo. Então eu volto humildemente com este capítulo que é tudo pra mim.
Veio aí o comeback.
Ah, o título é de Illicit Affairs, de Taylor Swift, porque ainda teve essa nesses tempos, a mulher lançou um álbum então obviamente tem que ter aqui!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/765680/chapter/13

Clove e Cato assistiram enquanto a manhã da Colheita se aproximava furtivamente, surgindo por entre as montanhas, enchendo a casa de uma luz que não era bem vinda. Clove encarava fixamente a parede, abraçando seus joelhos. Cato estava voltado para o teto, olhos estatelados assistindo seus pesadelos de uma volta à arena.

Ela sentia horror, náusea, culpa, e, por último, uma raiva desesperada que quase a fazia descer o punho contra o rosto de Cato, respirando de um jeito estranho ao seu lado.

A respiração de Cato estava irregular, curta, enquanto ele fingia passar cinco minutos escolhendo uma espada. Brutus ainda estava conversando com Wade em sua sala; ela tinha pouco tempo pra se decidir. Ela não tinha que dar nenhuma explicação, mas... Seus pés começaram a se movimentar na direção dele.

— Achei você! – Kizar exclamou, de repente, empurrando as portas da sala e a adentrando. Eles se viraram para encará-lo no mesmo segundo. O rosto de Cato estava cheio de um sarcasmo caustico. O rosto de Clove se iluminou por alguns segundos. Kizar agarrou seu rosto antes de beijá-la. – Falei que eu vinha. Não ia perder o grande dia. Minha princesa vai acabar com o grande Cato. E usando uma espada.

— É – Clove respondeu, lançando um olhar em sua direção. Cato sorriu, erguendo as sobrancelhas. – Eu vou.

Kizar soltou uma risada e colocou um braço ao redor de Clove, sussurrando todas suas preciosas dicas em seu ouvido. Brutus e Wade finalmente chegaram. Um apito foi assoprado e Cato avançou para o primeiro golpe. Porque Clove precisava da vantagem da velocidade, as coisas já não estavam muito boas pro seu lado. De novo. Ela permaneceu em silêncio, distante de seus joguinhos de sempre.

— Você vai perder – Cato sussurrou. – Quinta vez essa semana.

— Vai se foder, Cato.

— Então você teve todo esse esforço pra conseguir que seu namorado te ensinasse tudo que ele sabia e mesmo assim... – Cato tranquilamente desviou de um golpe. Ela conseguiu ver a coisa estranha nos olhos dele. – Quinta vez. Você não percebeu ainda que não está dando certo?

— Eu estou guardando para uma situação real de...

— Me poupa, Clove.

Cato terminou a luta. Sua espada caiu no chão. A dele encostou em seu pescoço. Um filete de sangue escapou. Clove recuou uns passos. Os olhos de Cato escureceram ainda mais.

— Só fala logo que você gosta dele. E que é só por isso que você ainda está com ele.

Kizar fazia parte de um passado desimportante, ordinário. Mas Cato continuava lá.

(E Cato estava sempre certo sobre todas aquelas coisas).

Suavemente, Clove esticou suas pernas, batendo com as mãos em seu colo. Não havia muito em seus olhos escuros, mas Cato, de qualquer forma, não precisava de muito. Ele deitou sua cabeça em seu colo, ainda fitando o teto, se perguntando se Brutus realmente iria se voluntariar. Se aquela história de empate era uma mera coincidência ou uma lição bem planejada sobre quão apertadas eram as garras do distrito ao redor dele, seu garoto de ouro. Se suas caminhadas pelo distrito toda quinta às cinco tinham sido seguras ou se suas missões cuidadosas na Capital estavam arruinadas agora que ele tinha reparado os olhos do distrito nele. No que ele iria fazer a respeito de Naevio e as marcas dele no corpo de Clove, parada lá, seu rosto parecendo deslocado naquela luz dourada enquanto ela vagarosamente corria as mãos pelo seu cabelo.

Era um pouco bom, mas um pouco estranho, porque eles nunca faziam essas coisas.

Cato ficou quieto, entretanto, aproveitando o que era seu horário favorito desde sempre. Eras atrás, ele já estaria de pé correndo pelo distrito, pegando um pouquinho de vida emprestada do Sol e daqueles primeiros ventos da manhã, reafirmando sua divindade para sua vila cheia de pessoas ricas e de vidas miseráveis. Naqueles tempos, Clove raramente fazia parte daquele cenário. Ela sempre se levantava antes de amanhecer, rindo um pouco enquanto o deixava antes que seus pais pudessem vê-la.

Mas, de alguma forma, aquilo dali parecia um pouco certo.

Ela o observava abertamente, muito apropriada daquele jeito, acima dele.

— Seja inteligente lá – Clove disse sombriamente, de repente, antes de empurrar sua cabeça sem muita cerimônia e se levantar.

Ela o observou pelo espelho enquanto terminava de pentear seu cabelo, decidindo não mencionar o jeito que Zenobia estava falando com Wade no dia da última reunião. Cato vestiu seu terno e se sentou na beira da cama, sustentando a cabeça com as mãos como se contemplasse o fim do mundo.

(Ele estava sempre certo).

Ela sentiu um arrepio descer por suas costas e se apressou em deixar a casa sem quaisquer últimas palavras. Clove andou devagar, sentindo o ar abafado e rarefeito, ouvindo o som que seus saltos altos faziam contra o concreto como se aquela fosse a única realidade que existia.

“Você vai acabar matando ele, garota. Ele não mexe com traidoras”.

Clove caminhou pelo distrito desejando com uma fúria morna que Cato jamais houvesse reparado a maneira com a qual ela observou a Everdeen atentar casualmente contra a Capital. Ele poderia ter ficado longe de tudo aquilo. Daquele jeito, com todas suas responsabilidades para com a rebelião (todos os clientes que ele teria que ter para justificar suas locomoções pela cidade) e a ciência de que estaria deixando Teo e Gaia para enfrentar mais alguma coisa terrível (que ele estava ajudando a criar), nada poderia funcionar.

(Cato havia passado um braço ao redor dela na noite anterior. Clove viu o rosto de Naevio piscar em sua mente; Clove viu a tragédia se consumar). 

Clove alcançou uma parte do distrito chamada de Remora, uma vila que também era o lar de alguns pedreiros, já com a postura que eles certamente esperavam de uma Vitoriosa. Ela era toda expressão de mármore e olhos vazios, mas, para sua surpresa, a vila estava silenciosa, muito distante do clima de festa que costumava cercar as outras edições. As casas de alvenaria construídas sem metade do afinco que era colocado nas construções destinadas à Capital estavam bem fechadas, as janelas cerradas como se obedecendo ao estabelecimento de um estado de luto. Ninguém nas ruas. Ninguém para saudar seus campeões.

Mais uma vez, um arrepio desceu pelas costas de Clove enquanto ela encarava os olhos de alguns moradores. Ela se perguntou se eles a seguiriam se ela dissesse que eles deviam dirigir sua fúria à Capital. Eles tinham olhos solenes, expressões respeitosas não para com a barbárie que ela suscitava às vezes, mas para com a pessoa que ela era. Naquelas partes do distrito, ninguém tinha se esquecido de que Clove havia crescido na Patrus. Clove então decidiu apressar seu passo. Aquele tipo de interação silenciosa não deveria acontecer em tempos como aquele.

A mudança de atmosfera veio com violência no segundo que ela pisou os pés na Curia; ela se deparou com a face do Distrito 2 que Panem conhecia. Lá, todos os cidadãos usavam máscaras de orgulho, excitação com a batalha épica que se seguiria, com mais uma provação do valor e da honra do distrito. As casas lá eram bem mais assentadas; gesso e tinta e a coisa toda. Seus moradores eram bem assentados também. Mãos macias de quem nunca trabalhava de verdade e sadismo brilhando nos olhos vidrados e a coisa toda.

Clove era a caçula deles; muito rapidamente, eles o cercaram. Como não podia deixar de ser, ela se desdobrou para atender o povo, dar toda a honra e dignidade que eles queriam, empurrando seu nariz para o alto, sorrindo muito contidamente. Ela empurrava para o fundo da sua mente o ódio que costumava sentir daquelas pessoas, a abominação fria que ela costumava sentir por qualquer um que tão casualmente se sentava em suas casas bem feitas e quentes. 

Eles pagavam para que crianças que engoliam as conversas da Capital fossem criadas. Ela pensou em Cato, todo quebrado e desesperado. Ela pensou em si mesma, tropeçando para fora do ringue da Academia cheia de hematomas.

Eles deram suas vidas à Capital antes mesmo que ela oficialmente as requisitasse.

Eles deviam ao menos saber no que estavam se metendo.

E, por isso, Clove sabia que jamais poderia realmente deixar de odiar seu distrito. A tudo aquilo, àquela traição, ela não poderia perdoar. Contudo, ela era a boa atriz. Ela era a melhor traidora. Ela era a única que podia tirar a atenção de Cato. E, por causa disso, Clove devia aceitar a adoração de qualquer um, em especial de seus patrocinadores mais fiéis. E eles adoravam Clove. A garota pequenininha que fazia céus e terra se curvarem com uma só palavra.

A Academia havia finalmente deixado sua marca de glória nela. Clove era boa. Ela pertencia a todos eles.

(Mas só ela. No mundo ideal, Cato estaria fora de tudo isso, longe de sua onda de destruição). 

Eles a olhavam com a adoração e o temor daqueles que observam um deus da guerra caminhar por terra, gritando e sacudindo seus punhos como se ela estivesse performando algum outro assassinato glorioso bem ali.

Mecanicamente, escoltada pelo povo que relutava a chamar de seu, seus passos rumaram para o Edifício da Justiça e ela foi acolhida pela escolta da Capital, Iovita Raven, se juntando aos outros Vitoriosos em uma sala adjacente. Alguns pares de olhos a olharam brevemente, desinteressados. Brutus, conversando em voz mais que alta com Magnus sobre suas estratégias, sequer notou sua presença. Lyme, sentada pacificamente no canto, demorou os olhos nela.

A Lyme tem perguntado sobre você. Ela te viu lá, com aquele homem estranho. Não dê motivo pra ela duvidar de você, menina. Se você é leal mesmo, mostra logo pra ela.

Clove não sabia como mostrar nada pra Lyme. Ela encarava demais. Seu rosto era muito rígido, como se Clove tivesse acabado de decepcioná-la mais uma vez. Conversando com Lyme, ela se sentia na Patrus de novo e de novo.

(No fim, Clove achava que Lyme preferia Cato).

Ela tinha assumido a responsabilidade pelos seus irmãos, garantindo que eles fossem ficar escondidos na casa de algum rebelde na Remora se alguma coisa acontecesse na Capital. Cato não tinha notado, mas Clove achava que aquilo era Lyme dizendo que alguma coisa iria acontecer na Capital. Então Clove não tinha aparecido na Academia nas últimas semanas. Ela não ia saber o que dizer pra Gaia, cujas mamadeiras tinha esquentado, que tinha ensinado a jogar facas. Ela não ia saber o que dizer para Teo, com seus olhos cheios daquela irritação casual, que tinha assistido os Jogos de seu irmão muito perto de Clove.

— Como está seu afilhado? – Clove perguntou, puxando uma cadeira ao seu lado, usando com casualidade a espécie de código que Cato muito seriamente havia a passado depois de sua última reunião.

“É sério, Clove. Não mexe com essa porra se você não vai levar a sério. A Lyme não compra suas palhaçadas”, ele tinha dito entredentes, enquanto ela ria um pouco porque ele era bonitinho, todo preocupado com o que Lyme iria achar.

Diferente dele, Clove nunca havia sido muito obcecada com os Vitoriosos, nunca havia possuído aquela ingenuidade que as crianças ricas se davam ao luxo de ter em suas ideias sobre honra e orgulho. Ela, na medida do possível, respeitava quem quer que conseguisse passar por uma arena e se erguer sobre os corpos mortos de outras vinte e três crianças. Mas eles eram só humanos, não eram deuses, não eram heróis.

Lyme, no entanto, merecia um crédito. Sua expressão séria parecia se encaixar perfeitamente no mármore do prédio. Enquanto ela a fitava friamente, Clove sentiu que nada na sua vida era um segredo mais.

— Bem. Se adaptando às novas condições – ela finalmente respondeu, seu tom com ares de oficialidade.

As palavras de Lyme significavam que a rebelião continuava firme apesar dos dramas intensos vividos pelos Vitoriosos do Distrito 2. Com todo o problema com aquela votação e Naevio estranhamente perguntando sobre o tempo que ela passava em casa, Clove havia precisado dar um tempo, se afastar de qualquer atividade que não afirmasse sua devoção à Capital.

— Bom saber.

— Bom contar.

Então outra camada de silêncio solene caiu sobre as duas, sentadas sem emitir uma palavra. Não havia nada a dizer. Se ela fosse ser alvejada pelos dois lados, Clove honestamente ia se importar muito pouco. Se ela era mesmo uma boa traidora, melhor que fosse ser dignamente executada por isso. Elas observaram as interações estranhas entre os outros Vitoriosos. Enobaria, usando sua coroa de louros dourada, polidamente conversava com Kurt e Zenobia, a cena gritante aos olhos; seus dentes que toda hora eram expostos em seus sorrisos arregalados eram interessantes de assistir. Brutus mostrava alguma posição de ataque para Leonis, fechando um braço ao redor do pescoço de Magnus.

Então a porta foi batida bruscamente contra o batente, sobressaltando todos levemente.

Era a entrada triunfal de Wade. Um cheiro insuportavelmente forte de álcool fez Clove franzir o nariz enquanto observava a figura surrada tropeçar pela sala, com suas roupas em frangalhos e dois cortes no rosto. Ela tinha tido suas noites, mas Wade fazia a coisa toda parecer ainda mais ridícula.

— Que porra é essa, Wade? – ela vagamente comentou, irritada com sua mera existência.

— Não deu pra se produzir para a ocasião? – Enobaria sibilou, o olhando por cima do ombro de Zenobia, que se apressou em ajudá-lo a se sustentar.  Com um baque, ela o depositou no sofá no canto da sala, de volta com seus sussurros suspeitos.

Vitoriosos iam ser Vitoriosos. Mas no Distrito 2... A história era diferente. A política era: roupa suja se lava em casa – atrás de portas fechadas e janelas cerradas.

— Você nem vai voltar lá pra dentro, seu covarde. Pra quê isso? – Brutus grunhiu, se aproximando da figura de Wade com os olhos estreitos de um animal. – Pra envergonhar o distrito?

— Quem disse que eu não vou voltar? – Wade balbuciou, seus olhos delirantes vagando pelo rosto de Brutus. A fala pareceu tão absurda que ninguém sequer a levou em consideração. Wade, contudo, continuava a balbuciar e Clove prestava muita atenção. Alguma coisa sobre Cato e a menina do 11 estando viva e Clove traindo. Ela estava quase se aproximando quando notou Brutus se movimentando na direção dele.

— Se eu fosse ficar aqui, garoto, você ia aprender uma lição importante – Brutus ameaçou, já fechando seus punhos com a mera ideia de castigar quem pretendia estragar o dia perfeito de seu distrito. Pesados segundos se arrastaram enquanto ele deixava seu ultimato perpetrar a mente bêbada de Wade. Ele dispensou Brutus com um aceno da mão e, numa insinuação idiota, bateu a mão no bolso da camisa imunda, onde o formato de uma faca se avolumava. – Magnus, me ajuda aqui.

Clove assistiu a cena deplorável que se seguiu com sobrancelhas levemente erguidas, porque Wade sempre tinha gostado de dar show; violentamente, Brutus e Magnus arrastaram sua figura decadente até o banheiro e o jogaram precariamente dentro do box, ligando o chuveiro. O tempo todo, Wade cuspia coisas sobre a Capital e Iana e Cato matando Bac enquanto a Academia estava fechada.

Clove olhou ao redor, checando se alguém estava prestando alguma atenção nas besteiras que Wade falava. Kurt sustentou seu olhar por alguns segundos. Ela sacudiu a cabeça; graças aos deuses, ninguém ligava muito para Wade, especialmente quando ele se dedicava a difamar Cato, sua conhecida especialidade.

Tudo certo”, Clove formou com os lábios. Claro que Wade precisaria adicionar mais emoção àquele dia tão bom.

Eles ficaram lá por alguns minutos, ouvindo Zenobia tentar convencê-lo a se levantar.

Não foi até que Wade começar a chorar sob os olhares de repreensão e desprezo dos outros Vitoriosos que Cato chegou, erguendo suas sobrancelhas com ironia para a comoção.

— Uau. Cheguei na hora certa – ele disse, para ninguém em particular. Talvez Clove, uma vez que tinha seus olhos grudados em sua figura bem ajambrada, fosse o alguém em particular, porque você sempre quer mais aquilo que lhe é negado. Clove tinha algumas longas noites esperando por ela na Capital. Ela precisava se lembrar que era exclusivamente a namorada de Naevio lá e que sua lealdade deveria parecer pertencer a ele. Mas Cato sorria do mesmo jeito que fazia na Academia, assistindo um dos seus oponentes fracassar. Clove se perguntou se alguém notaria se eles saíssem discretamente da sala, se Cato iria fechar as mãos ao redor de seu pescoço bem rápido, só para poder mordê-lo em seguida, se ele poderia bater seus ombros contra uma parede só para poder beijá-los depois.

Clove tinha um problema sério com regras. Sua mão passeou pelo seu pescoço, mas ela rapidamente as pousou de volta no colo.

Se recomponha.  

Ela precisava fazer com que todo aquele brilho que cercava o conceito de traição fosse apagado. Naqueles tempos, lealdade deveria deixar de ser um conceito abstrato.

Depois que a escandalizada Iovita apareceu com um terno para Wade e anunciou o início da cerimônia, um silêncio estrangeiro caiu na sala. Longos olhares foram trocados, as faces perturbadas dos heróis do distrito mais uma vez transformadas em pedras. Enquanto eles se encaminhavam para o palco, Brutus foi o único dos dois futuros tributos que apertou a mão de Cato e Clove, os mentores da edição.

Desconfiança brilhou nos olhos de Clove enquanto ela passava os olhos pela fileira de Vitoriosos nas suas costas, se demorando um pouco mais em Wade e Zenobia, a última passando a mão pelo braço dele de um jeito estranho, sussurrando algo. Alguma coisa em seus comportamentos remetia a algo que Clove conhecia bem. Lyme sustentou seu olhar por algum tempo. Ela reconheceu a mesma desconfiança em seu rosto.

O povo era apenas uma entidade selvagem, feroz, que gritava e clamava seus heróis tão alto que eles mal conseguiam se ouvir pensar. Lá não havia nada parecido com raiva empurrando suas razões. Eles simplesmente amavam seus Vitoriosos. E eles iam amar vê-los se digladiar pelo nome do distrito. 

Sentados por ordem de vitória, Clove estava no fim da fila. Cato estava a uns metros de distância, mas todo mundo em um raio de quilômetros podia sentir sua tensão, sua raiva.  Havia aquele bando de idiotas lá embaixo, todos estragados por conta da Capital, gritando por eles, que eram outro bando de idiotas que havia ganhado algum dinheiro para compensar a infelicidade que era ter sobrevivido aos Jogos. Havia Wade, pateticamente bêbado por nenhum motivo além de necessidade de atenção, se curvando para puxar conversa com Clove. E havia a própria, sendo a traidorazinha de sempre no canto, enchendo os olhos do distrito de orgulho, acenando e tudo.

Como ela faz essas coisas?

Cato só pôde concluir que Clove estava tentando com muito afinco arranjar uma acusação dupla de traição.

Quando Iovita e o prefeito terminaram com sua falação desnecessária e Cato terminou de se sentir ridículo por ter um dia levado tudo aquilo a sério, a Colheita de verdade tomou forma. Iovita rebolou até o recipiente com os nomes e ofereceu um sorriso para os Vitoriosos atrás de si. Ninguém retribuiu. Cato observou enquanto Clove e Lyme trocavam um olhar esquisito.

 - Eu tenho aqui o nome da sua Vitoriosa, Distrito 2, da campeã que te representará nessa marcante e inesquecível edição. Enobaria Golding!

Um longo rugido gutural foi emitido pela multidão, apaixonada pelo que talvez fosse sua Vitoriosa mais icônica. Mal dava para se ouvir pensar. Enobaria se levantou e rumou para a frente do palco, aceitando a mão de Iovita que ergueu a sua no ar.

Mas.

Em câmera lenta, longos minutos se arrastaram para aqueles sentados no canto.

Por que Zenobia não estava se voluntariando? Por que eles tinham gastado tempo a orientando por duas semanas inteiras e mesmo assim ela continuava sentada impassivelmente, um mero sorriso vago dançando em seu rosto, enquanto Enobaria era jogada aos leões, tão despreparada para a ocasião quanto uma Vitoriosa poderia estar?

Clove voltou seu pescoço para o lado. Ela viu Zenobia sorrindo. Ela viu Wade com um sorriso idêntico. Ela viu Cato cerrar o maxilar. Clove viu sua visão se tornar borrada enquanto ela se esforçava para pensar no que seria feito.

A confusão teceu suas linhas no rosto de cada um dos heróis do distrito. Eles não estavam acostumados com aqueles tipos de traição. Clove se perguntou se Brutus fazia parte daquilo. Do que seria feito se o nome de Cato fosse chamado e Brutus fizesse parte daquele teatro patético com aquele bando de filho da puta que...

Clove procurou o olhar do homem. Esperançosamente, ela julgou ter visto a mesma ira que os outros olhos refletiam. Era Brutus, afinal, certo? O Brutus cheio de honra e glória e desejo por orgulhar seu distrito. Certo? Ela fingiu que não viu o beijo que Wade lançou em sua direção e o sorriso que Cato ostentou enquanto empurrava a bochecha com a língua, como se soubesse de seu destino certo.

Para manter a ordem, ninguém fez nada. Nem Enobaria, que ainda fazia jus ao seu posto de Vitoriosa lá na frente, recebendo a aclamação do seu povo como se nada no mundo fosse mais certo que aquilo. O discreto trincar de dentes de Enobaria no segundo que ela se voltou para saudar os Vitoriosos foi tudo que houve.

A familiaridade que Clove havia sentido pelos comportamentos de Zenobia mais cedo residia no fato de que aqueles eram os comportamentos de uma traidora.

Uma traidora que estava torcendo para que fosse o nome de Clove ali, para que Cato pudesse voltar pra arena e Wade pudesse ter sua última palavra.

Clove sentiu que vomitaria no segundo que abrisse a boca. Com chances melhores, ela tinha visto coisas darem ridiculamente errado. Se ela soubesse como, Clove teria rezado. Pelo garoto quebrado a sua direta, o representante perfeito do distrito, que não pertencia realmente à morte, mas que tinha forçosamente trabalhado para ela por um tempo.

Cato continuava sorrindo com seus dentes cerrados, sacudindo a cabeça porque eles sabiam desde o começo. Um deles teria que pagar por toda aquela merda. Ela tinha tentado resolver tudo, mas não tinha sido o suficiente. Esse era o destino dele. Eles tinham traído Snow muito casualmente, alterado um contrato que sequer haviam assinado.

A cabeça de Clove latejava. Ela não pensou que seria capaz de sentir tanta culpa.  

— Agora, para representar seu distrito, um vencedor corajoso e honrado: Cato Hadley!

Eles sabiam o tempo todo, não sabiam? Um deles teria que ser sacrificado.

Wade sorriu largamente e Cato estava se levantando e Clove sentiu que estava em um daqueles pesadelos absurdos em que sua cabeça parece que vai voar pra longe e ela quase agarrou o pulso de Cato e pediu “por favor não vai fica aqui por favor por favor por favor” e todo mundo encarava muito.

Clove enxergou sorrisos desdenhosos da multidão. Ela viu seus clientes extasiados na Capital. Mais uma vez, ele iria ser destruído. Lágrimas se formaram em seus olhos escuros. Ela sentiu os olhos de Wade e o olhar pesaroso de Lyme, todos querendo ver se ela se atreveria a esticar seus dedos e implorar para que ele pudesse ficar.

Brutus, por favor, seus lábios conseguiram formar. Mas ninguém conseguiu ver. Todo mundo estava encarando Cato, agora, porque ele ainda tinha aquela glória ridícula vazando por todos seus poros e, no fundo, todo mundo queria ver o que o Poderoso Cato poderia fazer numa segunda arena.

Alguém socou o peito de Clove. Nada havia restado.

— Eu me voluntario!

Clove imediatamente sentiu o vômito voltar para onde pertencia com a declaração de Brutus. Sentindo a tensão desacelerar o tempo ao seu redor e pesar qualquer movimento que fizesse, Clove não conseguiu evitar trocar um olhar intenso com Cato, parado ao seu lado impassivelmente como se segundos atrás não estivesse se levantando para voltar para a arena.

Rostos pálidos e pulsos disparados era tudo que havia.

Eles assistiram Brutus tomar seu lugar com satisfação, imediatamente sendo ovacionado pela multidão delirante, segurando a mão de Enobaria e a erguendo no ar no que era uma clássica demonstração da força do distrito.

Lá atrás, ninguém se atreveu a sequer trocar olhares. Traição tinha acontecido debaixo de seus olhos. Eles falharam. Era o que era. Enobaria ia pros Jogos. Zenobia e Wade teriam que pagar.

— Você está morto. – Clove sentenciou Wade nos fundos, seus olhos escuros voltados para frente.

O caminho até a estação de trem era muito curto para ser feito de carro. Eles andaram, distantes, Brutus e Enobaria nas suas frentes, cada um deles ocupados com um lado do público. Clove não se sentia estranha em fingir, ela fazia muito bem, sorrisos e tudo a despeito da palidez ainda em seu rosto. A multidão só seguia seus campeões, como sempre, cantando as músicas do distrito, e, durante o percurso, eles deveriam saudar seu povo como os heróis que sempre seriam, vivos ou mortos. No trem, eles deveriam prestar as últimas saudações ao distrito, pegar flores e presentes, como oferendas deixadas num altar.

Eles ficaram lá na porta do trem pelo que pareceram horas. O prefeito apertou suas mãos de novo, o chefe dos Pacificadores e Leonis, o vencedor mais antigo, para representar as esferas de poder do distrito. (Pros pedreiros, representação nenhuma). Eles se curvaram e preencheram expressões solenes, recebendo os presentes. Se aquela fosse uma edição comum, os tributos ganhariam um símbolo do distrito, alguma pedra enrolado no que formaria uma pulseira ou um colar. Como Brutus e Enobaria ainda portavam seus símbolos da primeira arena, eles simplesmente se despediram uma vez que as homenagens estavam terminadas e adentraram o trem, seus passos tensos.

Demorou um total de quinze segundos de estrada para que Enobaria espatifasse um vaso de vidro contra uma das paredes.

— Aquela filha da puta covarde! Traidora fodida – ela gritou, transtornada, rugindo muito literalmente com seus dentes pontudos. Eles a deram espaço. Clove passou os olhos pelo infelizmente familiar trem e se encaminhou até o bar, querendo aliviar aquela coisa em sua cabeça. – Eu juro que vou matar aquela vadia.

Não era nenhuma ameaça vazia. Talvez não fosse Enobaria em pessoa que fosse resolver as coisas com Zenobia, mas ela certamente seria a causa pela qual a resolução aconteceria. Todos sacudiram a cabeça e concordaram, apoiando silenciosamente sua raiva.

— Wade, também. Ele estava com ela, ele estava... – Clove começou enquanto virava conhaque em um copo, sua voz trêmula cheia de ódio.

— Ele não teve nada a ver com isso.

Ela ouviu a voz de Cato proferir tais palavras, mas não acreditou até se virar rispidamente e encarar sua figura. Seus olhos queimaram os seus por alguns segundos. Cato cerrou o maxilar. Ele ficou lá, agindo como se ela devesse entender qualquer que fosse seu motivo oculto pra estar falando uma asneira daquelas.

Que porra é essa, agora?

— Vai se foder, Cato! – Clove exclamou, irada. – Que porra aconteceu, você ficou doido? Você sabe que a Zenobia não levantou a porra da mão dela porque eles estavam esperando que eu fosse...

— Eu falei com ele, Clove. – Cato a interrompeu, mais uma vez. Ele nunca tinha precisado gritar. Quando ele falava naquele tom, Clove não tendia a interrompê-lo. Como era habitual, ela apenas fixou seus olhos escuros em seu rosto, silenciosamente o dizendo que aquele era o jeito errado de fazer as coisas. Enobaria e Brutus desviaram o olhar, para os deixarem latir com privacidade. Cato não estava sequer piscando. Clove fez menção de voltar a falar; – Eu tenho certeza que passei minha mensagem. Ele não teve nada a ver com isso.

Cato sempre teve aquela coisa, aquela piedade ridícula que subia por baixo de sua pele como uma doença infecciosa, revirando seu julgamento até que tudo pudesse ser perdoado. Tudo era só mais uma traição pequena, uma daquelas que sequer o atingia em sua infinita divindade.  

Clove o encarou por um tempo, mas estava tão puta que o deixou ser. Que ele tivesse mais aquele desejo ridículo atendido, mais aquela demonstração de pena patética. Que ele poupasse Wade (o filho da puta do Wade, que tinha acabado de tentar foder com a vida deles de uma forma muito definitiva).

Eles quebraram o contato visual. Clove estava bufando. Só um soco na cara de Cato devia resolver.

— A gente vai ter que fazer uns ajustes agora. Isso vai ser resolvido lá em casa, Enobaria, tenho certeza. Vamos logo trabalhar – Brutus ordenou objetivamente assim que Enobaria terminou sua crise e Cato e Clove se separaram em direções diferentes, em seu mesmo tom raivoso de sempre.

Eles se sentaram e assistiram a reprise da Colheita.

O 1 tinha uma coincidência estranha em suas mãos; Cashmere e Gloss Ritchson, os irmãos que venceram consecutivamente. Cashmere, a quem Cato devia. Gloss, que havia tão naturalmente o acolhido como Vitorioso no seu primeiro ano, o ensinando a fazer bebidas e tudo. O 3, Pancada e Faísca, os queridinhos de Johanna Mason, Beetee e Wiress, que costumavam dar nos seus nervos durante os primeiros meses, mas que eram o porto seguro de qualquer festa desastrosa. O 4, com ninguém além do insuperável Finnick Odair em pessoa e a senhora que quase poderia ser sua mãe.

— Puta merda – Clove suspirou, engolindo mais conhaque.

— Ele não vai se aliar com a gente por conta da Mags – Enobaria grunhiu. – Ótimo.

— A gente derruba ele fácinho – Brutus rosnou maliciosamente. Cato olhou sua expressão doentiamente confiante e não pôde fazer nada além de rir.

É, ele consegue mesmo superar um cara que aos catorze anos recebeu de patrocínio a porra de um tridente.

Clove, como sempre, foi a única que compartilhou de seu pensamento. Eles trocaram olhares e sacudiram a cabeça, prendendo sorrisos com dificuldade. Clove foi a primeira a fechar a cara. Afinal, ele tinha deixado outro traidor escapar. 

— Ok, então – ela ronronou. – Vamos derrubar o Finnick. 

A essa altura, os drogados do Distrito 6 já haviam dado lugar à figura fulminante de Johanna Mason, rindo histericamente no palco do 7, acompanhada por Blight Jordan, o homem monstruoso, forte e infelizmente decente que havia sido seu mentor. Clove rolou os olhos, indisposta a lidar com a personalidade peculiar de Johanna como sempre estava desde sua vitória. Ela se lembrou da sua Turnê e das festas na Capital, eventos que culminaram em interações pouco satisfatórias entre as duas. Cato era todo amiguinho dela, muito fã do atrevimento exagerado da garota; Clove conseguiu notar a mágoa emanando dele, o jeito que ele tinha abaixado os olhos. Johanna ainda por cima iria pra lá com Finnick, seu alguma coisa. As linhas eram borradas, mas Clove sabia que eles estariam menos que felizes com aquele arranjo. Ela mal podia visualizar a figura de Johanna Mason sem a presença exagerada de Finnick Odair a tiracolo. A voz fina de Johanna ecoou em sua mente; “que seja, vadia”, ela dizia, quando elas terminavam de se medir mais uma vez.

Mesmo assim, Clove não queria que ela morresse. Não de verdade.

— Matem ela antes que ela faça aquela gracinha de fingir que é boazinha de novo – foi o que ela disse, empurrando mais conhaque para seu sistema. Cato se virou para ela, sacudindo a cabeça, porque ele era tão bondoso e tão decente e tão disposto a poupar o fodido do Wade que vivia pra apunhalar suas costas.

Então Cecelia apareceu, a mesma cara sonsa e quase amável de sempre, se livrando de crianças. Todo mundo sabia da existência dos pirralhos dela, mas. Deus. Enquanto se levantava e tomava posse de um dos quartos, cheia daquela palhaçada, Clove estupidamente cogitou pedir a Brutus e Enobaria para pegarem leve com a mulher. Mas Cato podia fazer isso, agora.

Clove raivosamente fechou os olhos e respirou o ar aromatizado e sufocante do trem.

Algumas horas – minutos – de viagem em sua mente confusa depois, ela ouviu os passos pesados e incertos de alguém do outro lado da porta. Devia ser Cato, meio bêbado, meio frenético, tropeçando de um lado pro outro decidindo se entrava ou não em seu quarto.

Ela pensou em abrir a porta e perguntar o quê de tão importante ele precisava falar com ela. Que ele fosse atrás de Wade, o sadomasoquista que era. No entanto, ela escolheu se arrastar até a banheira e ligar as torneiras barulhentas, se encolhendo embaixo delas em busca de não precisar debater sobre abrir ou não a porta. Ela iria abrir, claro. E aí, enquanto quebrava as regras impostas, Clove teria que refletir sobre sua bizarra e breve decisão de não contar para Cato sobre Snow sabendo mais do que devia sobre eles, dias atrás na Capital, uma decisão baseada em nada além de seu desejo — inconsciente? – de machucá-lo. Foi uma decisão mantida por cinco minutos; mas que existiu, pulsou no fundo da sua mente, a encheu de uma satisfação bárbara por alguns minutos. 

Cato tinha ficado muito perto de voltar à arena daquela vez, ele quase tinha morrido. Se ele acabasse morrendo, Clove tinha quase certeza que encontraria seu fim muito em breve. A aliança deles era feita de sangue, afinal, e ela se perguntava se não era ela que sustentava seus fios vitais.

Afinal, toda aquela trama tinha início na mera existência de Clove, que também estava destinada a ir pra arena.

Clove engoliu mais conhaque.

Ninguém ficava e ninguém deveria ficar entre eles. E, mesmo assim, Clove cogitou não avisá-lo sobre Snow. 

Mas Clove não era uma traidora, não de verdade. Ela sabia a quem ela era leal, no fundo. As palavras de Cato na madrugada não eram senão sua mente perturbada falando demais. Ele não sabia de nada, não sobre Naevio. Ele podia ter estado certo sobre Kizar e Hitiu e Cibele e todos os outros. Mas não sobre Naevio. Ela odiava Naevio.

Certo?

Ela se encolheu mais na banheira.

Lembrando da sensação desconhecida que atravessou seu corpo quando abriu o envelope de Snow alguns dias atrás, Clove se deitou até que a água cobrisse sua boca, seu nariz, seus olhos.

Lembrando da sensação de Naevio contra seu corpo, Clove ficou submersa por longos minutos (seus pulmões e narinas começaram a doer como se estivessem sendo esmagados).

Ouvindo embaixo da água o som de um punho batendo contra a porta finalmente, Clove se obrigou a emergir meramente para gritar:

— Porra, Cato, some daqui!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eta porraaaa o tamanhão do bicho kkkkkkkkkkk ai ai exagerei SIM. Devido ao fato de que eu sempre aumentava mais coisa nos capítulos conforme ia escrevendo ele e eu escrevi muito pois sempre que dou aquela dissociada é pra essa historinha que volto. Enfim... É isto. Vou tentar postar com frequência e tudo pra poder acabar e etc mas o futuro a Deus pertence kkkkkkk beijoooo



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Glory and Gore" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.